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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A VONTADE DE DEUS[1]



Atribuir vontade a Deus é uma forma de antropatizá-lo[2]; é atribuir à divindade uma disposição mental, característica do próprio homem. Ao proceder desta forma, o homem cria um problema de ordem teológica em relação ao próprio conceito de Deus, conceito este elaborado pelo próprio homem. Não é o caso de se proibir emprego de uma linguagem antropatizadora quando se falar sobre a divindade. Na verdade, é o caso de não se permitir que esta linguagem chegue a pontos de borrar a devida imagem teológica. No momento, alguns pontos são pertinentes para se exemplificar este problema.

Dizer que “a vontade divina não possui limites e é livre de todo obstáculo”[3], e com isto uma grande maioria de cristãos concorda, parece conter em si um problema de ordem lógica, pois que para Deus diz-se ser impossível praticar a maldade. Logo, a sua vontade já possuiria um limite em face de sua natureza, como apregoada pelo pelos próprios teólogos. Mas isso não seria ainda um grande problema. O agravo surge quando se diz que “a Deus basta querer para fazer”[4]; e isto é dito entendendo-se que Deus continua agindo na criação[5]. Ora, se em Deus há perfeição absoluta, não há mais nada a querer, pois que tudo já está consumado. Pois que, se alguma vez ele desejou algo, desejou de uma vez por todas. Não sendo mais necessária qualquer intervenção de uma vontade subsequente.

Vontade implica necessidade. Por mais metafórica que seja a linguagem empregada, o conceito teológico de Deus, no cristianismo, não comporta o atributo da necessidade. Na verdade, só a criatura tem vontade, e isto revela sua necessidade. Assim é, pois que a criatura não possui a perfeição do criador, é limitada e contingente; contingência essa que implica em necessidade de decidir. Atribuir necessidade de decisão a Deus é atribuir-lhe contingência; contingência de necessitar de algo. Ter vontade expressa a contingência do agente da vontade. Ter vontade relativiza o ser, pois que toda vontade está relacionada a um desejo. Disto decorre a impossibilidade de uma vontade isolada. Não há uma vontade que não se referira a coisa alguma. Seria um absurdo. Decorre disto a necessidade de verificar se o falar antropático sobre Deus não está em contexto de senso comum[6]; se assim acontece, não atende a uma reflexão séria e merecedora de status teológico mais avançado. Neste sentido, toda linguagem de senso comum atende apenas a uma compreensão de neófitos no conhecimento da divindade e a uma reflexão meramente devocional; o que desmerece consideravelmente uma compreensão propriamente teológica, embora se faça certa concessão a essa linguagem, face à condição da grande maioria de cultuantes da divindade.

Fora do âmbito da vontade de algo, pode-se ainda falar sobre a vontade de si mesmo. Enquanto aquela implica em insatisfação, esta não teria a mesma implicação. Na verdade, a vontade de si mesmo é vontade de nada; e já não seria mais vontade, visto desejar-se o que já se possui. Descaracteriza-se a vontade. Portanto, Deus não pode ter vontade, a não ser a vontade de si mesmo. Isso é o mesmo que ter vontade de nada. Assim, ter vontade de nada é vontade de algo absoluto. O nada é absoluto. Sendo Deus absoluto, não teria vontade de coisa alguma. E enquanto vontade de si mesmo, já estaria satisfeito. Se vigora o pressuposto de que em Deus tudo é perfeito, depreende-se que na divindade não se requer nenhuma alteração ou mudança. Teria Deus, portanto, vontade de algo além de si mesmo, de vez que isso o colocaria como um ser dependente daquele algo desejado? Não ficaria descaracterizada a sua divindade?

Ora, se tudo estiver em Deus (essa era a poética dos gregos advogada pelo apóstolo Paulo em Atos 17), então qualquer vontade de Deus é vontade de si mesmo. A vontade de si mesmo é a vontade de tudo e, por consequência, vontade de nada, pois que estaria estabelecida imediatamente a satisfação do desejo. Será possível, portanto, uma vontade em Deus nos termos em que o senso comum a explora em seus discursos?
Por esse caminho, todo e qualquer discurso humano sobre a vontade de Deus, com implicações teológicas dogmático-fundamentalistas, não seria mera inflamação mental? Se o falar antropotático for fundamentalmente metafórico para um dizer existencial, possuirá talvez sua viabilidade e pertinência, embora passível de caducidade e crítica. Se esta condição for considerada, quanto ao antropotatismo[7], parece ser aceitável falar-se sobre vontade de Deus, sem perder de vista sua comprometedora limitação. O que passar disso seria procustear[8] a própria divindade sem os devidos fundamentos teológico-filosóficos.

De uma possível perspectiva teológica, talvez a melhor abordagem sobre a vontade de Deus seja considerá-la como a finalidade para a qual as coisas e os seres existem. É uma abordagem que segue um princípio hermenêutico bem aristotélico[9], embora esta não mereça apologia, mas vá lá que seja. Disso decorreria que a vontade de Deus é a finalidade para a qual a criação veio a existir[10]. O mais seria especulação. Considerando-se ainda que, sendo essa finalidade, pela perspectiva da criatura, algo puramente temporal, da perspectiva divina já não vigora, pois que para Deus, não havendo tempo, tudo já está consumado.

Ora, partindo do pressuposto de que qualquer abordagem é resultante de pressupostos e interpretação condicionados (estes, por sua vez, relativos à limitada abrangência de nosso conhecimento de causa), quando poderemos dizer que conhecemos a vontade de Deus?[11] Por que não assumirmos antes os riscos de uma vida que procura levar em consideração toda uma abordagem de princípios extraídos da existência humana?

Se assim é, abram-se os portões para o desfile de abordagens diversas e até mesmo contrárias que tentem esgotar o assunto.

[1] A leitura deste texto deve levar em consideração as notas de rodapé.
[2] Antropopatizar procede de duas palavras gregas, “ântropos” (homem) e “patos” (emoção, sentimento, ou disposição mental). No caso deste artigo, refere-se especificamente à atribuição das condições humanas de emoções ao próprio Deus.
[3] http://www.bsb.netium.com.br/regis/natureza.htm em 15 de outubro de 2008.
[4] Idem.
[5] Um texto que pode ser usado para fundamentar esta afirmação é a palavra de Jesus, quando diz: “meu Pai trabalha até hoje e eu trabalho também” (João 5:17). Essa afirmação do Mestre está inserida em um contexto literário-apologético e é limitado pela seu próprio contexto teológico-existencial. Jesus não estava necessariamente teologando, mas falando a indivíduo fora de uma contexto teológico científico. Portanto, naquelas circunstâncias, um discurso limitado por balizas extritamente teológicas não seria o caso. Não se deve esquecer o fato de que a figura de um deus que trabalha é também antropomórfica.
[6] Se não em um contexto de imaturidade teológica.
[7] E antropomorfismo também.
[8] Referência ao mito grego do leito de Procusto.
[9] Em Aristóटेल्स todas as coisas tendem a um fim, ao passo que este fim pode se reduzir à felicidade.
[10] Claro que alguém argumentará que os meios para esta finalidade, desde que se coadunassem com a natureza divina, seriam também, por consequência, a sua vontade. Mesmo assim, essa reflexão fica por conta da interpretação humana.
[11] Isso significa dizer que toda e qualquer abordagem é passível de revisão.

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