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terça-feira, 21 de outubro de 2008

UM NOVO TESTAMENTO INACABADO



Quando escrevi este artigo pela primeira vez, eu disse que: quanto ao aspecto autoritativo de uma literatura dada pelos seus antecedentes, a igreja do primeiro século parece consideravelmente mais inteligente em relação aos cristãos que lhe sucederam. Os autores do Novo Testamento foram eficientes e eficazes na criação de uma literatura supridora das necessidades imediatas a partir de uma literatura já existente.[1] Relendo este texto agora[2], ocorre-me uma outra reflexão: Na verdade, aqueles cristãos não abriram mão do AT e o consideravam mesmo de autoridade máxima. Na verdade, os escritos dos discípulos de Jesus influenciaram os seus circunstantes, mas não tinham o significado de texto inspirado. E pode ser dito mesmo que não foram os cristãos dos tempos apostólicos que foram abertos a novas escrituras, mas antes os cristãos pós-apóstolos do século II ao século IV. Estes abriram espaço para novos textos inspirados, mas, lamentavelmente, fecharam as portas para os seus irmãos subsequentes, quanto ao mesmo direito de incluir novos textos no cânon.

Os escritores neotestamentários aconselharam suas igrejas; deram-lhes rumos; fizeram-nas ver novas possibilidades de compreensão do mundo; passaram-lhes a nova mensagem que, embora embrionária no Velho Testamento, viera à luz com uma nova visão teológica.[3]

Os escritores e os leitores do Novo Testamente foram flexíveis e abertos a uma nova dimensão da revelação. Para eles, a medida de aferição era o Velho Testamento; natural que assim fosse: eram judeus que prezavam a Lei, os Profetas e os Escritos (Atos 17:10-12). Mas isto não anulou a sua capacidade de diálogo e de absorção da “nova” visão teológica dos missionários. Os cristãos não-judeus receberam mais facilmente a mensagem em face de uma formação cultural mais aberta para a reflexão, devido à influência helenista, que, de certa forma, preparou o mundo do primeiro século para a mensagem cristã.

O acima dito explica porque Paulo se sentiu à vontade para poder escrever que a Lei servira de aio (Gálatas 3:23-25): “depois que a fé veio, já não estamos debaixo de aio”. Paulo estava ensinando que os cristãos não estavam sujeitos a uma letra dogmatizada, absolutizada, como verdade inverificável. Assim, os escritos dos apóstolos puderam servir de textos de orientação para a comunidade nascente.

Evidentemente que os escritos do Velho Testamento eram usados na medida de sua aplicação possível à nova situação do povo de Deus. Os princípios formativos dos aios ou pais podem continuar com os filhos, mesmo depois que estes crescem e se tornam independentes. Respeita-se (não se venera) os ascendentes e tutores sem que isto implique em obstáculo a uma nova visão de mundo.

Claro está que os afeitos à letra do Antigo Testamento não gostaram do que Paulo escreveu quanto à Lei.[4] Ora, as necessidades da Igreja precisavam de suprimento e não seria por motivos de mentes conservadoras, talvez fundamentalistas, que o processo seria interrompido. Resultado: o aparecimento de escritos que supriram coerente e concretamente as necessidades da Igreja.

Por que dizer que aqueles cristãos usaram melhor a sua inteligência?

A partir do século II, a Igreja começou a enfrentar situações novas e, para vencê-las, foi buscar respaldo nos escritos dos cristãos do século I, além do texto veterotestamentário. Passou-se a respeitar aquela literatura na conta do sagrado, absolutizando o seu conteúdo e, concomitantemente, tolhendo os contemporâneos de usarem a sua criatividade para inocularem as necessidades que posteriormente surgiriam com novos textos. Enquanto os cristãos do século I absorveram o “espírito” do Velho Testamento e escreveram novos documentos, os cristãos subsequentes caíram num fundamentalismo inconsequente, considerando inspirada uma literatura já produzida e interromperam a elaboração de uma nova literatura “inspirada”, que seria fruto de reflexões sempre vitalizadas por novas situações e que fomentaria novas compreensões da situação da Igreja, mesmo que para isto chegassem a considerar os escritos do Novo Testamento como aios seus, assim como Paulo considerou o Velho Testamento (a Lei). Sem dúvida que os cristãos posteriores aos do século I encontraram saídas para os seus problemas. Mas poderiam ter evitado muitos transtornos subseqüentes na Igreja, se não tivessem absolutizado ao extremo a letra dos dois Testamentos já conhecidos. Claro está que “tudo quanto dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito” (Romanos 15:4). Mas este fato não proibiu Paulo de ser um teólogo e criador de novas perspectivas para a Igreja, através de novos textos.

Como resultado daquela atitude eclesiástica primitiva dos cristãos subseqüentes ao século I, os teólogos têm perdido terreno; e os mais corajosos são estereotipados e, como o próprio Cristo, muitas vezes martirizados pela pena dos adoradores da letra do VT e do NT.

Precisamos, pois, de inteligências despreconceituosas, livres de compromissos com algum sistema humano; inteligências afeitas, exclusivamente, à busca da verdade e dispostas a interpretar o fenômeno divino para suprimento das necessidades humanas, mesmo que para isto corram o perigo de serem martirizadas.

Temos um acervo literário elaborado durante o decorrer da história eclesiástica, do qual também podemos dizer, tanto quanto dos Velho e Novo Testamentos, que “para o nosso ensino foi escrito”. Cairns, em seu “O Cristianismo através dos séculos”, diz: “Ao demonstrar o desenvolvimento genético do cristianismo, a história da Igreja é para o Novo Testamento o que o Novo Testamento é para o Velho. O cristão precisa se conscientizar dos principais desenvolvimentos do crescimento e progresso do cristianismo assim como da verdade bíblica. Desse modo, ele se sentirá parte do Corpo de Cristo, que inclui um Paulo, um Bernardo de Claraval, um Agostinho, um Lutero, um Wesley ou um Booth”.[5]

Sejamos sábios e usufruamos da liberdade cristã no suprimento de nossas necessidades, possibilitando a continuação do surgimento de uma literatura que componha um Novo Testamento sempre inacabado.

[1] O Velho Testamento teve finalizada a sua definição canônica nos anos 90 do século I, com o domínio maciço dos fariseus. Com a destruição do templo de Jerusalém em 70 d.C. os saduceus desapareceram consideravelmente.
[2] 06-10-2008.
[3] Visão teológica a partir do evento Jesus.
[4] Os saduceus eram os conservadores do século I. Aceitavam apenas a Lei escrita como autoridade religiosa. Os fariseus eram, de certo modo, liberais. Além da Lei escrita, adotavam também uma Lei oral (midrashim – halakah e haggada). Gonzalez, Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (págs. 32-33). 382 págs. Talvez a abertura de Paulo se explique por ser ele um fariseu.
[5] CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. Pág. 18. 508 págs.

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