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quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

QUAIS OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO?
DEUS DESEJA SER CULTUADO?

Culto, segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural, é a “homenagem, honra prestada a Deus”.
Quem está afeito à religião, entende que culto acontece quando o homem coloca-se diante de sua divindade, para adorá-la e servi-la, não se tratando meramente de prestar honras, homenagens. O religioso entende que o seu objeto de culto merece ser o centro de suas atenções e a sua vida gira em torno do objeto cultuado. O religioso integrado não consegue tirar a sua atenção de divindade. Sua vida só tem sentido se assim for articulada. Cria-se uma dependência quase que praticamente absoluta.

Os humanos começaram a cultuar nas cavernas. Os testemunhos da arte pré-histórica, os objetos talhados em pedra e outros indícios indicam que nossos ancestrais já nutriam essa índole de se centralizarem em algo que considerassem superior a si mesmo. Toda esta disposição para o culto encontra-se na motivação para receber algo que compensasse a própria vida ou minimizasse as suas dificuldades enquanto neste mundo. Era assim e não é diferente no presente. Por mais que se sublime os desejos ou se suprima a consciência, encontra-se sempre no homem uma motivação para uma auto-realização ou auto-satisfação.

A imagem da divindade cultuada passa mesmo a idéia de que não gosta de estar no mesmo nível de outros objetos de culto. A Bíblia passa esta visão quando um profeta repassa a palavra divina: “A minha glória a outrem não darei” (Is. 42:8). O Novo Testamento reflete esta linha de exigência na Carta do apóstolo Tiago, Capítulo IV, versos 1 a 6: “O Espírito de Deus tem ciúmes”. A informação bíblica é que a divindade não aceita concorrência por parte de outros objetos de culto; como também dá a entender o texto que aqueles que assumem a direção da própria vida, à revelia da divindade adorada, deixam de ter “amizade” com Deus e são considerados soberbos. O indivíduo é obrigado a manter um relacionamento, por forças circunstanciais, mesmo que não esteja interessado.
Torna-se complicado entender que um deus (um ser perfeito) nutra sentimentos que expressem imaturidade. Se alguém não sabe aceitar que outros façam escolhas que refutem os seus desejos, então este está precisando de ajustes emocionais.


Será mesmo que o soberano criador do universo comporta em si tais desejos? Se o Criador faz exigências autoritárias às suas criaturas, surge a pergunta: Para que as criou com a capacidade de escolha? E se as criou com a capacidade de escolha, seria divino prendê-las a si, não deixando escapatória, a não ser a desgraça? Ora, se a alguém são lhe dadas apenas duas alternativas: ou ama a divindade ou sofre, qual alternativa, naturalmente, a pessoa sensata escolheria? No entanto, não seria uma escolha de amor; seria antes uma escolha que visaria livrar a própria pele do sofrimento; tirar vantagem na decisão. Mesmo assim, pode-se entender que a própria escolha de amor envolve prioritariamente a auto-realização - a realização do amante no objeto amado - (o que não deixa de ser uma escolha egoísta, voltada para si mesmo; uma busca de vantagem).
Uma divindade que deseja cercear as suas criaturas para que lhe devotem culto, não passaria de um ser neurótico em busca de saciar a fome dos seus orgulho e egoísmo. O narcisismo seria a tônica de sua personalidade.


Diante do exposto, cabem aqui alguns questionamentos: Será que Deus realmente quer ser considerado como um deus? A compreensão de divindade não estaria merecendo uma revisão? Será que a imagem de Deus, forjada pelo homem, não reflete antes uma projeção antropológica? Em outras palavras: Não será Deus mera projeção que o homem faz de si mesmo? Não estaria ocorrendo o fato de que tudo quanto este homem pensa, deseja, diz, faz ou deixa de fazer, generalizadamente é em função de si mesmo? Busca-se, “no final das contas”, o próprio bem-estar, o próprio proveito. O homem diz adorar a Deus, mas, na verdade, isto faz se for beneficiado. Mesmo que seja mártir, sofra ou perca algo, fá-lo pelo prazer interior de um ideal vivido. Deseja-se o céu! Por quê? Deseja-se Deus! Para quê? Que divindade que se preza se deixaria relacionar nestas condições? O homem busca ou não busca a sua própria realização interior e isto mesmo é o que projeta na sua divindade? Isto parece ser tão verdade que o homem projeta um Deus que também busca a Sua própria glória e a outrem não a dá (Is. 42:8). Dai a pergunta: O homem é a imagem de Deus ou Deus é a imagem do próprio homem?

Willians Moreira

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

QUAL O FUNDAMENTO DA AUTORIDADE DA BÍBLIA


Weldon E. Viertel, em seu livro “A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA”, editado em português pela JUERP, diz: “Durante a Idade Média, a Igreja Católica Romana tinha se tornado autoridade suprema em todas as questões eclesiásticas. A Bíblia oficial da Igreja Romana era a tradução feita por Jerônimo (a Vulgata) [...] A hierarquia da Igreja reivindicava autoridade para interpretar as Escrituras. E também reclamava o mesmo direito para interpretar a tradição não-escrita. O Movimento Protestante transferiu para a Bíblia, em sua forma colecionada, a infalibilidade que antes se pressupunha residir na hierarquia da Igreja. Esta decisão teve por efeito a renovação dos debates a respeito do Cânon”[1].

Viertel não diz o acima transcrito sem base em historiadores. E é este testemunho histórico que deve levar-nos a refletir sobre um aspecto muito importante da prática religiosa.

Em Concílio para ordenação pastoral, pergunta-se, não esporadicamente, em que reside a autoridade do pregador. E a resposta deve ser a doutrinária e tradicionalmente aceita: “Na Bíblia”. Claro está que esta resposta é ressonância da tese Protestante, a qual, na época da pretendida Reforma, não passava de antítese da tese católico-romana. Verdade seja dita: a tese do Movimento Protestante não surgiu da noite para o dia; não caiu da “regiões celestes”, e muito menos foi dada por um mensageiro divino. Foi fruto de um confronto constante entre pensamentos divergentes dentro da própria Igreja Católica Medieval.

Ao investigar a história da Igreja Católica desde os seus primórdios até à Reforma, percebe-se que aconteceram lutas constantes e acirradas sobre os mais variados temas doutrinários (como até hoje ainda acontece). Debatia-se sobre tudo e contra quase tudo. Um dos temas extremamente controvertidos foi a formação da própria Bíblia. É importante esclarecer este assunto, pois que uma grande maioria de cristãos idolatra “o livro”, pensando, inconscientemente, que Deus deve ter tomado uma corda e, amarrando-a na Bíblia, pendurou-a do céu e a Igreja aqui, “em baixo”, recebeu-a. Outros pensam que os homens que a escreveram, fizeram-no tão mecanicamente que quase não passou de pura “psicografia”.

Advoga bom número de estudiosos que o processo histórico de formação da Bíblia durou aproximadamente 1600 anos. Assim pode ser, a contar desde Moisés até o primeiro século da Era Cristã. Este é um fato abrangente. Sabe-se, no entanto, que a coleção de livros sagrados da igreja do primeiro século, incluía apenas os livros do Antigo Testamento; sendo inclusive aproveitados, por escritores neo-testamentários, alguns livros apócrifos do Antigo Testamento, por força do uso da tradução grega da Bíblia hebraica, chamada Septuaginta (ex.: os autores das cartas de Judas e I Pedro; sem contar os paralelos entre textos do Novo Testamento e Livros Apócrifos).

Durante todo o primeiro século (para a tradição) surgiram os livros do Novo Testamento. Apareceram em contextos específicos e previamente orientados. Não foi nada aleatório; nada inconsequente. Também não traziam sobre si a sacralidade que hoje lhes é devotada. Outras escrituras dos apóstolos circularam, as quais não chegaram às nossas mãos (ex.: carta à Igreja de Laodicéia, referida em Colossenses 4:16; duas outras cartas aos Coríntios, sugeridas pelos exegetas e outras que são suspeitadas). Escreviam aqueles homens para solucionar problemas e dificuldades das igrejas, como líderes da igreja no decorrer dos séculos e até hoje fizeram e ainda fazem.

Com a morte dos apóstolos, testemunhas oculares do acontecimento-Jesus, e em face de perseguições do Império Romano e também em face do surgimento de movimentos considerados heréticos dentro da Igreja, nutriu-se a necessidade de se fixar uma medida de aferição doutrinária, exortativa e eliminadora de tensões.

Lançou-se a Igreja, na personalidade de seus líderes, a definir quais livros deveriam ser aceitos como autoridade. Foram estabelecidos critérios pelos quais os livros seriam examinados e escolhidos. Aqui se chama a atenção do leitor para os critérios usados pelos cristãos primitivos.[2] Comungam os historiadores na apresentação de quatro critérios básicos: a) Aceitação e uso em congregações ortodoxas; b) Consistência doutrinária; c) Origem apostólica e d) Inspiração.
Levando em consideração estes critérios, a Igreja, já perto do fim do segundo século (170 a. D.), nutria como autoridades todos os livros do Novo Testamento com exceção de Hebreus, Tiago, II Pedro, II e III João, Judas e Apocalipse. Estes eram lidos universalmente embora não confirmados pela Igreja como canônicos.

Quem era a autoridade nas decisões? A Igreja ou os livros? Os livros passavam pelos critérios da Igreja, os quais atendiam a necessidades básicas, objetivas e contextualizadas.

Para o Novo Testamento chegar ao que se conhece, passaram-se ainda dois séculos. Somente em 397 a. D., no Concílio de Cartago, a Igreja, sob a influência da autoridade de Agostinho de Hipona (354 – 430 a. D.) e Jerônimo (345 – 430? a. D.), completou o Novo Testamento que está em suas mãos. Antes desta data, aconteceram outros concílios para definição do número de livros do Novo Testamento, mas sempre quedava a inconstância.

Até o primeiro século, 1.600 anos; mais 300 anos até o quarto século (ano 397), chega-se a um total de 1.900 anos. Quase dois milênios para a Bíblia ser completamente definida.
Eis o quinto século (início da Idade Média) e constata-se algo curioso: A Igreja continuou a usar livros não canônicos em suas reuniões. Usava-os para instrução. Durante os 1.000 anos da Idade Média, muita doutrina foi definida com base em livros apócrifos, chamados Deuterocanônicos no concílio de Trento.[3]

No século XVI, surgem os supostos Reformadores que, instigados por muitos motivos, atacam sua própria igreja. Aliás, ao se identificar aqueles homens como reformadores comete-se um erro. Eles não reformaram a Igreja; tentaram; mas não conseguiram e foram expulsos. Formaram, sim, suas próprias igrejas ou movimentos. Aqueles “Reformadores” tinham seus próprios conceitos alicerçados em critérios pessoais e visão contrastante com a realidade religiosa tradicional de sua época. Não há negar que eles, com a sua autoridade argumentativa, influenciaram nas mudanças. Quando eles transferiram para a Bíblia (a coleção de livros tão debatida e fixada num período de quase dois milênios) a infalibilidade que antes era reivindicada pela Igreja, abriram espaço para novas discussões sobre o número de livros bíblicos e esqueceram de que suas declarações tinham autoridade sobre muitos contemporâneos seus. Lutero concluiu que alguns livros do Novo Testamento eram superiores a outros (ex.: Ev. de João; Epístolas de Paulo e I Pedro). Declarou ainda que Tiago era de menor importância em relação aos outros livros. Questionou Hebreus, Tiago, Judas e o Apocalipse. Considerava o Apocalipse como “profecia muda”. Por sua vez, Calvino deixou de lado II e III João e o Apocalipse e aceitou Hebreus.

Percebe-se que homens sempre exerceram autoridade sobre a própria coleção de livros canônicos em face de seus conceitos e critérios para escolha.

Depois do chamado “Movimento Protestante” para cá, testemunha-se a força que as igrejas exercem para respaldarem a sua coleção de livros religiosos. Criaram até um mito chamado “BÍBLIA”. Ao se pensar neste livro, corre pelo corpo e mente um espectro de veneração inconsciente que tolhe a criatividade do próprio discípulo que diz ser habitação do Espírito Santo. Quando Este não está limitado a letra qualquer de quem quer que seja; mas usa a quem quer, como quer, aonde quer, o quanto quer, para os Seus objetivos. Essa é a doutrina pneumatológica.
Portanto, em que se baseia a autoridade da Bíblia? A autoridade da Bíblia está na relatividade de um contexto no qual os seus textos foram escritos; na relatividade de indivíduos que resolvem submeter-se aos seus princípios; e na relatividade de sua aplicação prática a uma situação objetiva. Neste contexto de compreensão, como Deus usou Nabuconozor, Assurbanipal, Ciro e outros para agirem sobre o seu povo, pode Deus usar “outras letras” para também edificar a Sua Igreja. Letras estas já existentes ou que venham a existir, que supram as necessidades do homem, sem desvirtuar o caráter básico e sustentador do corpo de Cristo no decorrer dos séculos.

[1] 2ª edição, 1979. Pág. 125.
[2] Os historiadores situam a Igreja Primitiva nos primeiros quatro séculos da Era Cristã.
[3] O Concílio de Trento foi convocado pelo Papa Paulo III, a fim de estreitar a união da Igreja e reprimir os abusos, isso em 1546, na cidade de Trento, no Tirol italiano. No Concílio tridentino os teólogos mais famosos da época elaboraram os decretos, que depois foram discutidos pelos bispos em sessões privadas. Interrompido várias vezes, o concílio durou 18 anos e seu trabalho somente terminou em 1562, quando suas decisões foram solenemente promulgadas em sessão pública.

domingo, 26 de outubro de 2008

A IRA DE DEUS
É viável ensinar que Deus se ira?


A ira de Deus é um aspecto ventilado no Antigo Testamento com forte ênfase। Textos os mais variados ratificam esta faceta do temperamento divino. No entanto, pode-se concitar o leitor para uma reflexão não meramente condicionada por crenças já preestabelecidas por uma tradição religiosa, visto haver exemplo disto em alguém que incomodou incisivamente a sua época. Jesus atuou no seu ministério, através de um método extremamente contundente. Ele criticava a visão dos seus contemporâneos, intensionando mostrar-lhes que aquilo que estavam ensinando, não se conformava com a realidade da sua interpretação. Não se pode deixar de convir que o próprio Jesus estava vinculado a um contexto, mesmo que a sua interpretação para aquele momento fosse extravagante na visão dos seus ouvintes.

Uma expressão sugestiva colocada nos lábios de Jesus pelos evangelistas foi (e ainda pode ser usada): “ouvistes o que foi dito [...] eu, porém, vou digo...”। Esta fórmula pode ser uma ponte verbal para uma contextualização da revelação. Pode-se, como fez Jesus, usar a mesma fórmula para contextualizar a revelação bíblica, enfrentando até mesmo a possibilidade de uma “crucificação”.

“Ouvistes o que foi dito”: “Deus derramará a taça de Sua ira sobre...”; Eu, porém, vos pergunto: Seria Deus um ser imaturo para perder a Sua postura de equilíbrio, descarregando ira sobre aqueles que nunca seriam páreo suficiente para enfrentá-lo? Seria Deus limitado para não saber como encaminhar as Suas criaturas para onde Ele quer que se dirijam? Se Deus é perfeito em Suas obras e tem um plano a ser cumprido na história, não seria Ele fraco, se os contingentes seres humanos conseguem irritá-lo, levando‑o a agir, muitas vezes, como os próprios humanos? Não seria expressão do contexto cultural de cada época a afirmação de que o Criador derrama ira sobre as criaturas? Se hoje se trabalha por famílias que eduquem os seus filhos sem que descarregem neles a sua frustração, muitas vezes através da ira, seria coerente ensinar-se que Deus, por frustração ou causa parecida, também agiria nefandamente? Não seria uma antropopatização extremada da divindade?

Parece que a reflexão teológica precisa ser mais consistente e eficaz em suas considerações। Há muito tempo chegou a necessidade de se evitar o condicionamento teológico de uma estrutura de pensamento cultural isolada, atribuindo-se a Deus um caráter unilateral, desprovido do aval de Sua natureza intrínseca.

Encontra-se no Antigo Testamento (Gênesis 15।13-16) o relato em que Deus, falando com Abrão, diz-lhe que a descendência do patriarca seria peregrina no Egito; mas que voltaria para a Terra Prometida, a terra da Palestina. Acrescenta Javé que julgará o povo que afligirá aos descendentes de Abrão; como também esperará que a “medida da injustiça dos amorreus” seja saturada. Aqui está subentendida a certeza de um castigo sobre os povos de Canaã; terra para onde os israelitas voltariam. Este texto já fomenta a expectativa de uma demonstração de ira sobre os povos que viviam em Canaã.

No Antigo Testemento, fatos repugnantes estão supostamente sob a ordem divina। Repugnantes porque esses fatos contrariam consideravelmente o espírito cristão. Já no livro de Deuteronômio, capítulo sete, está escrito: “Quando Javé teu Deus tiver introduzido‑te na terra, a qual vais possuir, e tiver lançado fora muitas gentes de diante de ti, os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os pereseus e os jebuseus, sete gentes mais numerosas e mais poderosas do que tu; e o Senhor teu Deus as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas concerto, nem terás piedade delas”. Mais a frente Deus promete que, se os israelitas não cumprirem a Sua ordem, serão consumidos (v.v. 1-4).

Outros textos existem que rezam pela mesma cartilha da impiedade। Tais textos sempre foram evocados para ratificar o direito do suposto “povo de Deus” à terra da Palestina.

Uma pergunta para reflexão; não para definir uma doutrina: O Deus que Jesus Cristo revelou assinaria uma ordem de destruição direta e intencional de pessoas, usando como instrumentos de castigo outros humanos? Considere-se: pecado por pecado, qual nação estaria isenta de destruição?

Deve-se observar que os outros povos do tempo veterotestamentário também tinham esta mesma crença quanto aos seus deuses। Da mesma forma que Israel entendia que uma vitória sobre um outro povo era reflexo da ação do seu deus, os filisteus também assim o entendiam. Quantas vezes Israel foi subjugado pelos seus vizinhos, estes tantas vezes consideraram Javé derrotado pelos deuses estrangeiros. Israel não admitia a derrota de Javé e, portanto, racionalizava dizendo que a derrota devera-se a algum pecado entre o povo. Quantos não sofreram nestas circunstâncias, por haverem quebrado determinadas prescrições que refletem puramente o nível de compreensão que se nutria sobre Deus?

Não há aqui anulação da verdade de uma inspiração da Bíblia। A Bíblia pode ser considerada um livro também divino, no qual se revela que os homens são capazes de exteriorizar a sua índole má e de dizer que Deus a subscreve. Não só os israelitas assim fizeram, como também os seus vizinhos. Nos anos 80 do século XX houve exemplo disto em Saddan Hussein. Sua guerra contra o Kawait era uma guerra santa; era uma guerra de Alá. O cúmulo da idiotice.

Será que a divindade cristã está condicionada por caprichos humanos? Será que Ela se deixa envolver por sentimentalismo imaturo e inconsequente? Quando se diz que Javé tem o controle de tudo, afirma-se que Ele não se deixa levar pela contingência de Suas criaturas; antes sabe muito bem como chegar aos seus objetivos। Ora, se seres humanos limitados conseguem dirigir a outros semelhantes, seria o Criador menos maduro em tal empresa, revelando impotência, através da manifestação de ira?

Deus não seria tolo para disciplinar as suas criaturas como se ele mesmo fosse uma mera imagem do humano। Está escrito que Ele não é homem para que se arrependa. Seria Ele levado a agir por condicionamentos que podem levar alguém a agir cônscio de estar correto, embora descubra mais tarde que errou? Por que seria Ele então levado pela ira, levando-se em conta que ninguém poderia dEle se defender? Seria muito cômodo para mim, eu me irar contra quem não pode de mim se defender.

O momento da humanidade, como sempre, necessidade de teólogos que estejam abertos para reverem os seus princípios hermenêuticos; não permitindo que as particularidades histórico-culturais, façam-nos atribuir a Javé ações e sentimentos humanos condicionados e mesquinhos.

WM

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

TENSÃO ENTRE PODER E LIBERDADE EM HEGEL


A compreensão da tensão entre Poder e Liberdade em Hegel pode ser apreendida pela compreensão de sua dialética. A dialética hegeliana pode ser explicada como um processo ordenado em que uma tríade de conceitos ou fenômenos interagem, dando sempre origem a um novo processo triático. A primeira fase do processo é o momento da tese. Um conceito que entrará em tensão com um segundo conceito (antítese), surgindo desta tensão-interação a terceira fase, chamada síntese. Esta, por sua vez, ocasiona o início do novo processo triático.

Dito isto, pode-se pensar nos conceitos de liberdade e poder para Hegel. A liberdade hegeliana é a essência do Espírito. Em outras palavras, liberdade é o automovimentar-se do Espírito (DRAY, 1997, pág 98). A liberdade é a única verdade do espírito (HEGEL, 1995).

O desenvolvimento do Espírito em direção à consciência de si na história do mundo é o desenvolvimento para uma liberdade sempre mais pura. A história narra o progresso da liberdade. Um progresso que segue um movimento dialético, fundado na tensão ocasionada pela luta dos povos históricos. Essa luta dos povos históricos é responsável pelo desenvolvimento da liberdade do Espírito, consequentemente, também da liberdade dos indivíduos.

A liberdade como objetivo do Espírito, concretiza-se no Estado. O Estado é “o próprio núcleo da vida histórica” (texto 32). O Estado ou Cultura Nacional exerce suas leis como expressão da Razão Universal ou Vontade do Espírito. Ao indivíduo é facultado usufrui da liberdade na medida em que obedece ao Estado, que é o “lócus” da liberdade.

O Estado em Hegel é apresentado como uma realidade absoluta, “a mente absoluta e infalível que não reconhece regras abstratas de bem e de mal...”. Isso explica o seu poder sobre agentes individuais, tratando-os como mera relva a ser pisada, se necessário.
A liberdade que os indivíduos usufruem na obediência ao Estado é uma liberdade individual. Esta Liberdade não possui a mesma dimensão da liberdade do próprio Espírito. A liberdade deste é resultado da ação política dos povos históricos. Estes povos criam o Estado. Os cidadãos, em sua particularidade, não fazem o universal. Só o Estado possui a universalidade, a do Espírito. O Estado é a concretização do Espírito. Por ser esta concretização do Espírito, a liberdade passa a ser também a sua essência. É assim que o Estado pode praticar o seu auto-movimento e estabelecer sua leis, leis estas que estabelecerão a própria liberdade, por serem, elas mesmas, leis do Espírito. A não obediência à lei do Estado ocasiona uma tensão que pode desembocar na punição dos desobedientes, ou na busca de leis outras que apontem ou estabeleçam um outro paradigma de Estado que, por sua vez, expresse uma nova gradação da liberdade. Este desenvolvimento ou este alcance de nova gradação da liberdade é possibilitado por homens que são instrumentos do Espírito para esta tarefa. Os meios que possibilitam o desenvolvimento ou a produção da liberdade no mundo são as ações dos homens. Ações essas derivadas “de suas necessidades, de suas paixões, de seus interesses, de seu caráter e de seus talentos” (HEGEL, 1995). Aqueles que estão no poder valem-se de seu egoísmo para alcançarem os seus propósitos. Não têm consciência de que estão sendo dirigidos, de um modo ou de outro, pela Razão universal. Como diz Hegel,

[...] São dois momentos que intervêm em nosso objeto: o primeiro é a idéia, o segundo, as paixões humanas; um é a urdidura do tecido, o outro, a trama do grande tapete da história universal que se desenrola perante nós. O centro concreto de ambos é a liberdade moral no Estado (HEGEL, 2001, pág. 69).

Os chamados “homens históricos universais”, como instrumentos do Espírito, podem muito bem, erradicar a vida dos particulares. Na verdade, o universal resulta da destruição do particular (HEGEL, 2001, pág. 82). Hegel diz: “o particular geralmente é ínfimo perante o universal, os indivíduos são sacrificados e abandonados” (HEGEL, 2001, pág. 82).

Pode-se pensar, portanto, que a liberdade individual é relativa, limitada, contingente. Na verdade, liberdade absoluta é a do espírito que se automovimenta e usa de uma “astúcia” (astúcia da razão, como diz Hegel mesmo) para “deixar que as paixões atuem por si mesmas, manifestando-se na realidade, experimentando perdas e sofrendo danos, pois esse é o fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa” (HEGEL, 2001, pág. 82).

Do acima exposto, divisa-se que o poder é sempre da alçada do Estado e de quem o dirige. O estabelecimento das leis pelo Estado aponta para a fonte do poder. O Espírito delega o poder ao Estado. Só legisla quem tem o poder.

Conclui-se que tanto o Espírito universal, como os indivíduos históricos vivem as tensões entre o poder e a liberdade. O Espírito vivencia a tensão quando, no exercer de seu poder, concretizado no Estado, toma consciência de si mesmo, no processo histórico. Os indivíduos históricos (tantos os universais como os particulares) também vivenciam a tensão entre o poder e a liberdade quando, no exercer de suas intenções, desejos e paixões, postam-se diante do Estado (ou força coletiva dominante) para alcançarem os seus objetivos. Os indivíduos históricos universais, como instrumentos da Razão universal, e os indivíduos históricos particulares como flores a serem pisadas pelo poder desses heróis, mensageiros do Espírito para o desenvolvimento da liberdade universal.
A EXISTÊNCIA DE DEUS EM ANSELMO


Investigar a realidade de um ser que seja responsabilizado pela existência de todo o Universo sempre foi o intento de muitos pensadores sérios। Anselmo enquadrou-se perfeitamente os tais pensadores. Estimulado que foi pelos seus colegas de hábito, entregou-se à empreitada de fundamentar a sua fé pela razão. O objetivo básico do seu pensar era provar que Deus existe. Para isto, Anselmo escreveu dois trabalhos. O primeiro, entitulado, no início, "Exemplo de Meditação sobre o Fundamento Racional da Fé", depois nomeado: "Monológio"; e o segundo: "A Fé Buscando Apoiar-se na Razão",[1] depois chamado "Proslógio". Da leitura de ambos, compreende-se que os métodos usados são diferentes. No Monológio, título que vingou, Anselmo procedeu a posteriori (Partiu da observação dos fatos, ou seja, método indutivo). Na verdade, muniu-se das provas tradicionais baseadas nas contingências dos seres finitos e nos graus de perfeição. No Proslógio, Anselmo procedeu a priori.[2] (Partiu da definição de Deus para chegar à prova de sua existência, ou seja, método dedutivo). Buscava ele um argumento suficiente para fornecer prova adequada sobre a "substância divina". O intento do seu argumento era fazer calar o insensato, citado no Salmo 13: "diz o ímpio no seu coração: 'não há Deus'."

Anselmo segue alguns passos em seu argumento que apresentam as proposições fundamentais para provar a existência de Deus। Primeiro, existe no mínimo, em nosso intelecto a idéia de um "ser além do qual não é possível pensar nada maior". Segundo, mesmo o insensato concorda que existe no nosso intelecto a idéia desse "ser além do qual não é possível pensar nada maior", pois quando ele ouve isto entende bem. O que se entende existe, pelo menos, no intelecto. Terceiro, esse "ser além do qual não é possível pensar nada maior" não existe apenas no intelecto. Se assim fosse, poderíamos pensar num ser que existisse não apenas no intelecto mas também na realidade. Seria, portanto, um ser maior do que o ser da primeira proposição, por existir no intelecto e na realidade. Ora, isso é contraditório, sendo, portanto, impossível. Quarto, portanto, esse "ser além do qual não se pode pensar nada maior" existe não apenas no intelecto (in intelecto) mas também na realidade (in re).[3] Segundo Gilson, os princípios em que se baseia essa argumentação são os seguintes: 1º) uma noção de Deus fornecida pela fé; 2º) já é existir verdadeiramente existir no pensamento; 3º) a existência da noção de Deus no pensamento exige logicamente que se afirme que ele existe na realidade.[4] O que se patenteia é o movimento circular em que o argumento parte da fé à razão e volta ao ponto de partida. Uma dialética abstrata para respaldar o pressuposto de que o proposto pela fé é inteligível.

A definição de Deus apresentada por Anselmo diz que Deus é "o ser do qual não é possível pensar nada maior"।[5] Entende Anselmo que o insensato tem esta idéia na sua mente e a compreende. E que aquilo que é compreendido existe na inteligência. No entanto, reconhece que ter a idéia na inteligência e compreender sua existência real são coisas distintas. Cita então o exemplo do pintor que tem em sua mente a idéia de uma pintura, mas só lhe compreenderá a existência quando a houver pintado.[6]

O problema não pensado por Anselmo é que a sua conclusão: "logo, 'o ser do qual não se pode pensar nada maior', existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade", choca-se drasticamente com o que ele disse no Monológio, capítulo VI: "coisa alguma, portanto, nem se processada na inteligência, existiu e ajudou essa natureza a derivar do nada"।[7] Ora, como pode Anselmo chamar uma definição tal ao seu socorro, quando diz que "coisa alguma existiu e ajudou essa natureza a derivar do nada"? Entende-se que esta "natureza suprema" está mesmo desvinculada daquilo que possa ser processado na inteligência, portanto, o argumento, em face da definição não prova a existência de tal ser.

Uma outra asseveração que se pode fazer é que afirmar que não existe na esfera do real aquilo maior do que o qual não se pode pensar nada, implica uma contradição, porque significa admitir e ao mesmo tempo não admitir que se possa pensar outro maior do que ele, isto é, existente na realidade।

O argumento de Anselmo quer dar à inteligência humana o poder de absorver completamente, pelo raciocínio, a compreensão de algo que ele mesmo reconheceu ser fugidio à compreensão। Melhor seria ter admitido que só lhe restava a fé, pois a razão não penetraria na "Tua habitação... inacessível".[8]

O argumento de Anselmo sobre a existência de Deus recebeu objeções, de início, do monge Gaunilon que elaborou objeções consistentes, por sinal। No particular quando se refere à afirmação de Anselmo de que "não há nada que possa ser-lhe parecido".[9] Portanto, como posso afirmar que em minha inteligência há algo que pode ser relacionado a Deus, se não pode lhe ser pelo menos parecido? Como posso usar meu raciocínio para provar a existência de Deus, se o que vier a conceber não será nem sequer parecido com ele?

Pode-se observar que a argumentação de Anselmo fundamenta-se numa concepção dominada pelas categorias aristotélicas, abrindo espaço para questionamentos sobre até que ponto essas "categorias" seriam terreno confiável para se pensar uma realidade que extrapola as mesmas, visto Deus mesmo ser uma realidade do reino da fé।

A argumentação de Anselmo é de que a sua prova refere-se somente a Deus। E não poderia deixar de ser diferente, afinal, a sua prova depende apenas do pensamento. Ora, para que qualquer objeto exista é necessário que derive do mundo. O Deus pressuposto por Anselmo não se torna um objeto: é o "ser além do qual não é possível pensar nada maior". Sendo assim, não pode ser pensado dentro das categorias assumidas por Anselmo no Monológio e no Proslógio. A não ser como meras metáforas. Mas isto se torna complicado no intento de Anselmo, pois que escraviza a razão à fé. Daí a possibilidade de que o monge não tenha empreendido provar objetivamente, racionalmente, a existência de Deus. A razão foi apenas, nada mais do que isso, uma ferramenta a serviço da fé. Sua meditação é uma invocação, um desejo por Deus. Pode-se entender que, considerando-se o princípio de "crer para compreender", não é a razão que tem a primazia. O seu argumento baseia-se original e prioritariamente na fé, uma atitude humana. E no reino da fé, toda metáfora é possível. Esquecendo-se disto, as contradições serão, sem dúvida, patentes.

É importante observar que, no decorrer dos séculos, muitos empreenderam comentar a chamada "prova ontológica da existência de Deus". Tanto em apoio quanto em desacordo.[10] Teólogos e filósofos deram a sua contribuição de raciocínio para se chegar a uma compreensão do tal argumento anselmiano. No mínimo fica patente o fato de que a "razão" ainda não foi suficiente, por sua vez, para resolver o tal problema do argumento. Quem dirá provar a existência de Deus.

BIBLIOGRAFIA
ANSELMO. Monológio. OS PENSADORES. São Paulo. Abril Cultural, 1973.
ANSELMO. Proslógio. OS PENSADORES. São Paulo. Abril Cultural, 1973.
GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo. Martins Fontes, 1995.
Mondin, Battista. Curso de filosofia. Vol. I. 8ª Edição. São Paulo. Paulus, 1981.
THONNARD, A. A. Compêndio de história da filosofia. São Paulo. Herder, 1968.


[1] ANSELMO. Proslógio. OS PENSADORES. Pág. 104.
[2] THONNARD, A. A. Compêndio de história da filosofia. Pág. 298
[3] GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. Pág. 297.
[4] GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. Pág. 297.
[5] ANSELMO. Proslógio. OS PENSADORES. Pág. 108.
[6] Ibid. pág. 108.
[7] ANSELMO. Monológio. OS PENSADORES. Pág. 21.
[8] ANSELMO. Proslógio. OS PENSADORES. Pág. 105-7.
[9] ANSELMO. Proslógio. OS PENSADORES. Pág. 132.
[10] Mondin, Battista. Curso de filosofia. Vol. I. 8ª Edição. 232 pág.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

MYTHOS E LOGOS NO PENSAMENTO GREGO


Todos os povos da antiguidade – assírios, sumérios, babilônios, persas, egípcios, hindus, chineses, romanos, gregos, hebreus – tiveram seus mitos। Povos descobertos mais recentemente – Astecas, Incas, índios brasileiros – também são ricos em acervo mítico. O que deixa os estudiosos admirados é o fato da mitologia grega sobressair-se a todas as demais. A admiração é explicável em virtude de ser justamente a partir desta forma mítica de compreender a realidade da natureza que nasce o pensamento ocidental. Em face da proeminência do mythos e do logos gregos sobre as demais manifestações do pensamento humano antigo é que se propõe, neste artigo, traçar o conceito de mythos e logos e a transposição de um para o outro na explicação da realidade no pensamento grego antigo.

O termo mito procede da língua grega (mu,qoj), podendo-se conceituá-lo como narrativa que objetiva explicar a realidade existente, sua origem e causa। Sua abordagem trata das questões referentes ao mundo, aos deuses e ao próprio homem. Este tipo de narrativa foi o primeiro esforço da humanidade para situar o homem no mundo, quanto a sua existência diante de tantos questionamentos que se lhe apresentam e que precisam de resposta. A princípio, perguntas a respeito da natureza como: “por que troveja?”, “por que chove?”, “de onde vem o vento?”, “como surgiu o mundo?”, “como surgiu o homem?”, e tantas outras questões, recebiam respostas que hoje não são admitidas. Na verdade, os homens da Antiguidade contentavam-se com aquelas respostas, tidas hoje como ingênuas, e com elas se acomodavam muito bem ao seu mundo.

Marilena Chauí apresenta o mito como “narrativa mágica ou maravilhosa, que não se define apenas pelo tema ou objeto da narrativa, mas pelo modo (mágico) de narrar, isto é, por analogias, metáforas e parábolas।” (Chauí, 1994 – pág. 32). É interessante este conceito, pois que chama a atenção não somente para a narrativa em si, mas também para o modo como era apresentada. Desde que era predominante oral, a narrativa prendia os ouvintes como uma armadilha das emoções. Para Vernant, mito é uma palavra formulada, seja de uma narrativa, diálogo ou da enunciação de um projeto (Vernant, 1992 – pág. 172). Turchi, citado por Battista Mondin, conceitua mito:

Em sua acepção geral e em sua fonte psicológica, o mito é a animação dos fenômenos da natureza e da vida, animação devida a alguma forma primordial e intuitiva do conhecimento humano, em virtude da qual o homem projeta a si mesmo nas coisas, isto é, anima-se e personifica-as, dando-lhes figura e comportamentos sugeridos pela sua imaginação; o mito é, em suma, uma representação fantástica da realidade, delineada espontaneamente pelo mecanismo mental (Mondin, 1981 – pág। 9 – 10).

Chama a atenção neste conceito o aspecto da animação। Na verdade, a narrativa mítica dava vida ao que era inerte. O ouvinte se sentia totalmente envolvido no seu enredo devido ao dado existencial transmitido pelo mito. Isto tornava o homem completamente ligado às personagens e aos fenômenos narrados no mito.

Ernst Cassirer diz que a mentalidade primitiva é caracterizada pelo seu sentimento geral da vida। O homem primitivo via a natureza de modo simpático. Ou seja, sentia-se envolvido nela e por ela. A natureza não era algo para ser explorado no sentido pragmático ou técnico. Era uma realidade a ser reverenciada, respeitada (Cassirer, 1972 – págs. 134 – 136).

Aranha e Martins (1992, págs। 62 – 68) dizem que o mito “é um modo ingênuo, fantasioso, anterior a toda reflexão e não-crítico de estabelecer algumas verdades...” O problema de algumas conceituações está na pressa do autor em adjetivar o seu objeto de estudo. Esquece-se de realizar apenas juízo de realidade e, firmado em um mero juízo de qualidade, afirma supostas realidades que são meros reflexos de seus condicionamentos culturais. O mito comporta várias possibilidades de interpretação. Partindo de qual ponto de vista o mito seria ingênuo? Considere-se que nos milênios futuros nossos conhecimentos terão uma consideração que provavelmente não nos agradaria conhecê-la. Medir o ontem pelo hoje é complicado, visto as circunstâncias de cada época comportarem as suas próprias justificativas. Neste aspecto, é interessante observar a valorização que muitos filósofos e estudiosos dão à elaboração mítica, considerando o mito como conservatório de uma inteligência que não teria a lógica do racional, mas que não deixaria de indicar caminhos de reflexão e que representaria uma via de compreensão da existência perfeitamente salutar. Sendo o mito “uma forma de se situar no mundo, isto é, de encontrar o seu lugar entre os demais seres da natureza”, como dizem as duas autoras, está ele em pé de igualdade com a razão, pois que esta também é uma forma encontrada pelo homem para se situar no mundo. A própria Pós-modernidade faz críticas ao império da razão, abrindo espaços para outras lógicas que comportam inclusive a realidade do Mito. Não seria mais viável dizer que cada forma de se situar no mundo possui a sua validade, desde que não leve o homem a extravagâncias comprometedoras de sua integridade?

“A verdade do mito não obedece à lógica nem da verdade empírica, nem da verdade científica। É verdade intuída, que não necessita de provas para ser aceita.” (Aranha & Martins, 1992, pág. 73). Essas duas orações oferecem base de crítica às duas autores quanto a erradicar o aspecto de ingenuidade da narrativa. Primeiro, o mito possui uma verdade; segundo, segue uma lógica, mesmo não se comprometendo com o empirismo, com o racionalismo ou com o cientificismo. Enquanto verdade intuitiva estabelece-se com plena autoridade e serve para se conhecer o ser humano do passado, como também do presente. Enfileiram-se nesta compreensão filósofos, teólogos, antropólogos e psicanalistas. A lógica dos arquétipos da humanidade expressa nos mitos é terreno amplo para se compreender o homem de todas as épocas. Seria o mito uma visão ingênua da realidade, ou será que ele precisa ser estudado levando-se em consideração, não a sua roupagem, e, sim, a sua essência?

Não se está dizendo aqui que o mito não foi usado indevidamente por muitos mentores da humanidade। Certo que sim! Mas isso não anula a validade do mito em si. A tendência de interpretar o mito como visão puramente fantasiosa da realidade talvez se deva à influência de filósofos gregos, juntamente com os Padres da Igreja e tantos outros filósofos, visto considerarem os mitos como simples fábulas। O fato é que, nos últimos tempos, além da visão de mito como visão fantasiosa da realidade, tem-se abordado o mito-verdade. Mais precisamente a partir do começo do século XX, autores como M. Eliade, Freud, Jung, Heidegger, Lévi-Strauss e Bultmann apoiaram a interpretação mito-verdade. Concordam estes estudiosos quanto ao fato de que o mito esconde, atrás de sua capa de imagens, verdades que foram apreendidas pelo homem primitivo e que o homem moderno, devido ao seu condicionamento epistemológico racionalista, não consegue divisar as mesmas verdades.

Um dos grandes ataques sofrido pelo mito foi deflagrado pelo Positivismo। Depois de toda a sua investida frustrada contra o pensamento mítico, chega-se à conclusão de que ingênuo é o próprio Positivismo, quando quis desterrar um fenômeno que faz parte da própria índole da natureza humana. Afinal, tudo o que pode, o ser humano faz para se situar significativamente no seu mundo. E se neste caso vale o mito, que o valha.

Pode-se concluir este ponto, dizendo-se que o mito é uma “primeira fala sobre o mundo” que ainda hoje permanece falando e continuará a exercer a sua influência sobre a humanidade। Pode não explicar a realidade no sentido empirista, cientificista ou racionalista, mas a explica de modo que, em sua função básica, continua acomodando o homem ao mundo. E aqui se apresenta um paradoxo: o mito de tantos ismos que acomoda o homem ao mundo, dando-lhe visões diversificadas da realidade.

O termo logos procede da língua grega (lo,goj). Dentre tantos significados, segundo Chauí,
Logos reúne numa só palavra quatro sentidos: linguagem, pensamento ou razão, norma ou regra, ser ou realidade íntima de alguma coisa। No plural, logoi, significa: os argumentos, os discursos, os pensamentos, as significações. Logia, que é usado como segundo elemento de vários compostos, indica: conhecimento de, explicação racional de, estudo de. (Chauí, 1994 – pág. 33).

Segundo Julían Marías, o logos diz o que as coisas são, e mantém estreita ralação com o ser tanto do ponto de vista da verdade como da falsidade। O homem é o animal que tem logos, sendo, portanto, o órgão da verdade (Marías, 1969). Aster apresenta-se bem convicto quanto à natureza da palavra logos. Diz este autor que se for o caso de ressaltar algum conceito e pensamento especificamente grego, só pode sê-lo o conceito de logos. Logos é a palavra prenhe de sentido, o discurso racional como fenômeno primitivo do mundo como forma fundamental do pensar e do realizar (Aster, 1945). Abbagnano trabalha o conceito de logos desde o seu uso por Heráclito. Este considerava o logos como sendo a própria lei cósmica: “Todas as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque esta domina tudo o que quer, e basta para tudo e prevalece a tudo” (Fr. 114, Diels). Essa forma de entender o logos parece coadunar-se bem com o pensamento estóico. Abbagnano chega a afirma que a doutrina do logos foi sempre religiosa (Abbagnano, 2000). Neste sentido também trabalha Aster sobre Heráclito, citando: “El sabio es unicamente uno. Quiérase o no, há de llamársele Zeus” (Aster, 1945). Por esta via de interpretação, vê-se claramente que logos passa pela mesma realidade que mito: Cumprem função religiosa.

Destes conceitos apresentados, o conceito de Chauí consegue, de modo sintético, com os quatro sentidos do logos: “linguagem, pensamento ou razão, norma ou regra, ser ou realidade íntima de alguma coisa”, expressar a realidade do logos não deixando brechas para maiores ou menores explanações a serem acrescentadas, considerando-se que toda a história da filosofia é por si mesma a história do logos e já lhe conceitua extensivamente।

É consenso entre os estudiosos que a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional não se deu da noite para o dia। Houve mesmo um período em que os dois tipos de abordagem coexistiram na sociedade grega, do mesmo modo que na contemporaneidade pode-se divisar estas duas realidades. Segundo Vernant, é no princípio do século VI a. C., na Mileto jônica, que se pode fixar a data e o lugar de nascimento da razão grega. Três são os responsáveis por este surgimento do pensamento racional: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Portanto, são os Pré-socráticos os responsáveis, estes citados e outros, que vão contribuir para que o logos suceda ao mito. Toda as explicações teogônica e cosmogônica são substituídas por um discurso sem a ação de potências sobrenaturais como explicação para a realidade existente (Vernant, 1994 – págs. 73 e 74).

A abordagem elaborada por Marilena Chauí é por demais interessante, pois que apresenta duas visões de interpretação do fenômeno concernente à passagem do mito para o logos. A primeira interpretação diz que não houve continuidade entre a filosofia e o mito. Segundo Chauí, Burnet apresenta duas características do mito que se contrapõem à filosofia. Primeira,
“o mito pergunta e narra sobre o que era antes que tudo existisse, enquanto o filósofo pergunta e explica como as coisas existem e são agora; segunda, o mito não se preocupa com as contradições e irracionalidades de sua narrativa; aliás, usa contradições e irracionalidades para justificar o caráter misterioso dos deuses e suas ações; a filosofia afasta os mistérios porque afirma que tudo pode ser compreendido pela razão e esta suprime e explica as contradições।” (Chauí, 1994 – pág. 28) (Grifo da autora) .

Segundo Chauí, a interpretação contraposta é apresentada por Cornford। Segundo este, a filosofia nascente não fazia experimentos com a natureza e desconhecia a idéia de verificação e de prova. Na verdade, a filosofia tomou as formulações da religião e do mito e as colocou em forma de pensamento abstrato. O que vai ficar claro para Werner Jaeger é que a história da filosofia grega é um processo de progressiva racionalização do mundo presente no mito (Chauí, 1994 – pág. 29 – 33).

Esta abordagem é curiosa, pois que nos remete aos primeiros momentos do filosofar grego, quando as explicações apresentadas chamam à mente as figuras usadas nos mitos। É o caso de Tales de Mileto quando pensa em água como o princípio originário da realidade existente. De imediato vem à mente Homero com o deus Oceano dando origem a todas as coisas. Quando se pensa sobre o transcorrer das relações afetivas entre os deuses e os humanos expressas nos mitos, pode-se pensar em Empédocles elaborando os princípios do amor e do ódio como forças naturais, agindo sobre a realidade existente. Hesíodo e seu deus Eros não estariam em Empédocles? Parece evidente a interação entre mythos e logos a princípio.

Conceba-se a interação, mas se pense também como evidente as diferenças entre mythos e logos. O mito vincula-se à tradição oral; o logos à literatura escrita. No princípio mythos não contrasta com logos. Os valores semânticos são bastante aproximados. Os mythos são também hieroi logoi, discursos sagrados. O surgimento da oposição entre mythos e logos, marcando a concepção de realidade dos gregos, acontece justamente entre os séculos VIII e IV a. C. “Um primeiro elemento a se reter nesse plano é a passagem da tradição oral a diversos tipos de literatura escrita.”, diz Vernant. Acontece que a linguagem filosófica adianta-se no uso de abstrações dos conceitos e emprega um vocabulário ontológico. Vernant diz que o logos, no período citado, instaura-se “na e pela literatura” como discurso racional e não somente como palavra. Justamente neste nível de discurso racional demonstrativo é que vai se contrapor ao mythos. Isto do ponto de vista de quem elabora o logos. Mas acontece transposição na perspectiva do receptor do logos, o público que toma conhecimento do texto. Diz Vernant que a leitura supõe uma outra atitude de espírito. Ora, se diante do mito o espectador quedava-se como que enfeitiçado, diante do logos a atitude é de frieza racional, disposição para a “argumentação contraditória” (Vernant, 1992 – pág. 175). Não se depende mais da participação emocional, como acontece com o mito. O mito é dogmático na apresentação de sua verdade. O que deixava o ouvinte em estado de obrigação à crença em sua verdade. O logos é liberal, aberto ao debate, à dialética. Vernant conclui:

... Desse ponto de vista, tudo o que dava à palavra falada seu poder de impacto, sua eficácia sobre outrem, se acha dali em diante rebaixado à classe do mythos, do fabuloso, do maravilhoso, como se o discurso só pudesse ganhar na ordem do verdadeiro e do inteligível perdendo ao mesmo tempo na ordem do agradável, do emocionante e do dramático (Vernant, 1992 – pág. 175).

Pelo acima exposto, compreende-se que mythos e logos são realidades consideravelmente importantes para a compreensão do surgimento da filosofia grega. Não somente para esta, como também para todo o pensamento ocidental. Ainda mais quando se concebe a força destas duas formas de pensar a realidade influenciando até mesmo o homem contemporâneo, seja ele partícipe do senso comum ou mesmo alguém afeito aos temas que exploram a sua capacidade intelectual. Na verdade, mythos e logos vêm sustentar a convicção de que o ser humano busca responder aos seus questionamentos não meramente aprisionado a uma única forma de solução. Considere-se ainda que, sendo o homem quem tem sido, sua forma de elaborar estas duas realidades, mythos e logos, fá-las intercambiar-se sem se perderem em generalizações. A existencialidade humana vem-nos provar que o mythos pode estar no logos e o logos no mythos. O mythos, enquanto discurso, possui o seu logos específico. O logos, enquanto forma de acomodar o homem ao seu mundo, possui o seu dado mítico. A crença no logos como algo absoluto, radical para explicar o mundo traz em si a marca do mythos.

BIBLIOGRAFIAItálico
ASTER, Ernst Von. Historia de la filosofía. 2ª ed. Barcelona, Espanha. Biblioteca de Iniciación Cultural, 1945. 477 págs.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4ª edição. São Paulo. Martins Fontes, 2000. 1014 págs.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. 1ª ed. São Paulo. Editora Moderna, 1992. 232 págs.
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. São Paulo. Mestre Jou, 1972 – págs. 134 – 136.
Chauí, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, Vol. I. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 390 págs.
MARÍAS, Julián. Historia de la filosofía. 21ª Edição. Madrid – España. Editorial Revista de Occidente, S. A., 1969.
MONDIN, Battista. Curso de filosofia. Vol. I. 8ª Edição. São Paulo. Paulus, 1981. 232 págs.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 8ª edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1994. 95 págs.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na grécia antiga. Rio de Janeiro. José Olimpio, 1992. 221 págs.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

É VIÁVEL PEDIR ALGUMA COISA A DEUS?


Partamos do pressuposto de que milhões de pessoas pedem algo a Deus e não são atendidos। Uma pergunta contundente para qualquer teólogo é: por que Deus não responde a tantos que lhe recorrem? Ora, essa pergunta é intrigante se concebemos Deus como um criador, soberano, controlador de toda a natureza, ao qual nada escapa. Além disso, sendo Deus concebido como sábio e perfeito, instala-se uma problemática em face de que, dizendo desse modo, Deus se transforma num terrível injusto. E essa é a grande crítica de muitos ateus e incrédulos ao cristianismo pelos séculos afora. Ora, se eu peço algo a Deus e sou atendido, por que outros pedem e não o são? Terei eu algum mérito diante de Deus? Evidente que não (ou evidente que sim?). Quais seriam os critérios do Criador quanto a responder oração? Por que muitos não são atendidos? Existe humano passando mais e maiores necessidades do que eu. Por que justamente aquele não é suprido? Claro que a lógica de cada apologeta vai enxergar uma saída para estes questionamentos. Mas será que são respostas realmente convincentes?

Acontece que, pelo fato de algo ter acontecido como eu esperava, julgo que recebi resposta de Deus। Faz-se necessário analisar esta questão da resposta às orações, de vez que cada pessoa tem uma conclusão quanto à entidade lhe responde. Dependendo da indução religiosa, uma pessoa ora a Deus ou a um santo e, mediante a resposta ou não, entende que a entidade chamada lhe concedeu um retorno positivo ou negativo. Isso acontece no cristianismo, nas religiões de ordem africana, no budismo, no islamismo, no Judaísmo, e em tantos ismos religiosos que existem. Cada religião vai dar a sua interpretação baseada na crença de que o suprimento de Deus, ou de outras entidades (dependendo do pacote religioso), para os que são atendidos está vinculado a certos pré-requisitos que são preenchidos. É curioso como, dependendo da religião, a resposta atenderá a proposições que, dentro de uma perspectiva teológico-filosófica, tornam o deus envolvido na resposta cada vez mais encrencado diante de sua própria natureza. Para o cristianismo, que apresenta uma divindade nos moldes ditos no início, fica difícil explicar porque tanta injustiça acontece entre os humanos. E não se diga que Deus sabe o que faz e que sua sabedoria não pode ser alcançada, porque essa resposta é mera escapativa para o não enfrentamento da contradição teológica criada ao se falar de um deus soberano e justo que, ao mesmo tempo, permite tanta “desgraça”. Essa contradição teológica não tem sido enfrentada devidamente pelos teólogos tradicionais em geral, visto serem eles prisioneiros de uma prescrição escriturística dogmática, que não permite revisão de autoridade. Ficam tais teólogos escravizados a uma letra e, devido a isto, não revisam seus pressupostos, maculando a imagem da divindade em quem dizem crer. É possível que o fato de não haver resposta cabal à questão do sofrimento humano não se deva a uma impossibilidade de se atingir o recôndito do coração divino, mas ao orgulho de não se admitir que há erros na imagem de Deus, criada pelas religiões. Não há como escapar do pressuposto de que toda imagem de Deus é antropológica. Isto significa dizer que, não importando a religião, o vidente, o profeta, o guru, etc., tudo o que é dito sobre Deus é resultado da limitada percepção humana. Ora, a situação cognitiva do homem não lhe permite abarcar o todo de sua existência; quem diria do conhecimento teológico. O que se diz sobre Deus não poderá jamais significar um conhecimento absoluto que responda satisfatoriamente aos questionamentos formulados, principalmente se são questionamentos que atingem seriamente o conceito de Deus, do modo como a vã sabedoria humana pensa conhecer. Sendo assim, a concepção de Deus encontra-se comprometida, como também toda e qualquer explicação do universo que dependa dessa concepção.

Volta então a pergunta: é viável pedir alguma coisa a Deus? Observe-se que a pergunta é em relação à viabilidade e não em relação à permissão।

Para responder a esta pergunta de um modo mais argumentado e expressivo, necessita-se pensar seriamente sobre como a natureza se comporta no processo de condução e de manutenção (de si mesma) dos seres vivos। O uso do próprio texto bíblico pode aturdir a muitos ante as possibilidades de respostas criadas pelas próprias escrituras. A seguir, encontram-se textos bem sugestivos, expressos em linguagem religiosa, contendo indicações de como a natureza se comporta em relação a si mesma.

Ressaltam-se os versos nos quais se indica como os animais conseguem o seu alimento।

Ele faz crescer a erva para os animais e a verdura, para o serviço do homem, para que tire da terra o alimento. Verso 14.
Ordenas a escuridão, e faz-se noite, na qual saem todos os animais da selva.
Os leõezinhos bramam pela presa e de Deus buscam o seu sustento. Verso 21.
Nasce o sol e logo se recolhem e se deitam nos seus covis. Verso 22.
Todos esperam de ti que lhes dês o seu sustento em tempo oportuno. Verso 27.
Salmo 104

Considerai os corvos, que nem semeiam, nem segam, nem têm despensa nem celeiro, e Deus os alimenta; quanto mais valeis vós do que as aves? Lucas 12:24.

... porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e chuva desça para justos e injustos... Mateus 5: 45

Primeira questão: qual o método usado para o sustento dos seres vivos? Caça predatória। E desse item o homem não é excluído. Para sobreviver é preciso predar. A linguagem poético-religiosa do texto diz: “Todos esperam de ti que lhes dês o seu sustento em tempo oportuno” (Salmo 104: 27). Ou seja, tantos animais irracionais, como também os racionais dependem do Mantenedor da criação. Observe-se que não é um esperar passivo. E como não é!

Como vivem os animais? Uma grande maioria vive de pura caça predatória। Quando o texto diz: “Ordenas a escuridão, e faz-se noite, na qual saem todos os animais da selva” (Salmo 104:21), pode-se entender que saem para matar mesmo. Cita-se o leão. Como este animal consegue alimento? Outros animais são devorados pelo “rei dos animais”. E não somente esta espécie tem a prática predatória. Milhares de outras espécies agem da mesma forma, inclusive o próprio homem. Os documentários sobre a natureza animal atestam que a natureza não é tão pacífica e paradisíaca como parece ou se espera. Na verdade, existe uma guerra contínua pela sobrevivência.

Imagine as outras espécies a falar com o Criador; principalmente as menos favorecidas pediriam para serem defendidas diante dos mais fortes। Provavelmente fariam o que os humanos fazem. Orariam pedindo justiça diante de tanto “sofrimento”. Orariam para que Deus as livrasse das garras do leão devorador. Como seria a imagem da zebrinha pedindo misericórdia a Deus para não ser devorada? A suposta resposta seria: “eu determinei que seja assim”. E lá vem o leão...

A palavra do Salmo 17:12 é expressiva: “parecem-se com o leão que deseja arrebatar a sua presa e com o leãozinho que se põe em esconderijos”। A expressão “arrebatar a presa”, revela que há mesmo um assalto à vítima que serve de repasto para o predador. O sangue corre aos litros para que muitos animais na selva sejam alimentados. Interessante é que a Bíblia diz que é Deus quem os alimenta. Que método curioso de alimentar as suas criaturas. A sorte de muitos é a morte para que a sorte de outros seja a vida. O velho darwinismo parece forte: a lei do mais forte ou mais esperto em vigor. Parece que o que vem mesmo de modo igual para justos e injustos são o sol e a chuva. E olhe lá, pois que se justos e injustos não estiverem no lugar certos não poderão desfrutar dos benefícios da natureza. Sem falar que muitas vezes os ataques da natureza são terríveis tanto para os “bons” quanto para os “maus”. Na verdade, sofrem ricos e pobres, as mais diversas raças; uns mais; outros menos. Acrescente-se a isto o fato de que, do mesmo modo que animais irracionais impingem sofrimento aos seus semelhantes, os humanos também assim o fazem. É a prática da natureza: uns devorando os outros e uns lutando pelo seu espaço; lutando por afirmação... Os humanos são a espécie que conseguiu afirmar-se sobre o planeta. Muitas outras espécies foram extintas e outras estão a caminho para isso. A proliferação humana aconteceu a um percentual extravagantíssimo. A evolução mental permitiu o desenvolvimento de “técnicas” de sobrevivência individual e grupal. Os outros animais que a isto não chegaram, são dependentes para prosseguirem a caminhada, quando não são erradicados do planeta. Mas o fato é que humanos, apesar das técnicas, desenvolvem outros meios de continuar a execução do instinto. Na natureza, o assalto, o estupro, a agressão e outras ações são considerados comuns pelos estudos científicos. Basta ler sobre a vida dos primatas. Que aconteceria se os outros animais começassem a evoluir e a inventar mecanismos de autopreservação? E se o caminho deles fosse na contramão dos humanos? É interessante observar que cientistas fizeram simulações em computador e chegaram a uma conclusão não muito agradável para os humanos: se os Dinos tivessem permanecido no planeta, teriam evoluído tanto que hoje nós seríamos os animais de estimação deles...

As relações humanas, por mais evoluídas que sejam, refletem uma natureza intrínseca। Não que se advogue aqui um essencialismo ou existencialismo. Mas o fato é que, à medida que o homem evolui, parece ficar difícil escapar do que se é. Por mais evoluído que venha a ser, o homem continuará sendo uma das espécies do planeta e jamais se isentará dos princípios que regem a ecologia.

A competitividade e violência dos seres humanos apontam para o que a Biologia ensina quando trata das interações ecológicas na Biocenese। Segundo a compreensão científica, as interações entre seres vivos ocorrem tanto entre membros da mesma espécie, como entre membros de espécies distintas. Essas interações podem ser divididas em desarmônicas, quando resultam em prejuízo para algum dos indivíduos que interagem; e harmônicas, se resultam em vantagens ao menos para um dos participantes da relação, sem prejuízo da outra parte; e neutras, quando não trazem nem benefício nem prejuízo para os indivíduos que dela participam.

A interação intra-específica no aspecto competitivo ocorre no caso de plantas que competem entre si por água, por espaço e por luminosidade. Animais competem por parceiros de reprodução, por espaço e por alimento, entre outras coisas. No caso dos humanos a realidade não é diferente. Leve-se em consideração o conflito entre judeus e palestinos.[1] No âmbito das considerações biológicas, fato deverasmente natural: Membros da mesma espécie competindo pelo espaço. Levando-se em conta os estudos científicos, quando a competição for acirrada, em geral a parte “perdedora” pode desaparecer, ser obrigada a emigrar ou sofrer lentas modificações em seu nicho, o que faz com que a competição seja reduzida. Ora, o conflito entre judeus e palestinos poderia não mais existir, se não fora a ação da Inglaterra depois que o Império Turco foi derrotado no conflito mundial (I Guerra Mundial – 1914 – 1918). A Palestina passou a ser possessão dos ingleses e estes se comprometeram em providenciar um “lar nacional” para os judeus. Surgiu o movimento sionista e a emigração de judeus para a Palestina aconteceu. De lá para cá, os conflitos vem acontecendo, cada vez mais acirrados. Os problemas acontecidos na Palestina não estão perto de serem resolvidos, se é que um dia o serão. Pode-se dizer que a competição entre judeus e palestinos é basicamente ao nível de relações ecológicas. Mas é claro que também existem outros interesses por parte de ambos os competidores, como também por parte de “muitos que estão de fora”, indiretamente interferindo. É bem verdade que as relações humanas não são somente ecológicas, mas também econômicas e políticas. Pode-se acreditar, no entanto, que todas as outras relações são mecanismos e técnicas desenvolvidos pelos humanos a serviço das relações ecológicas. Nada mais do que a natureza procurando manter-se viva. Vinga neste sítio o fato de que os fins podem determinar os meios. Aqui cabe bem Erasmo de Rotterdam em seu “Elogio da Loucura”: “...Dona Natureza, genitora e produtora do gênero humano, tem o cuidado de deixar em tudo uma pitada de loucura.”[2] Loucura aos olhos de quem? Aos olhos de quem está perplexo ante a suposta violência, ante o suposto sofrimento humano, não entendendo que a suposta sabedoria humana é como um minúsculo grão de areia na praia, ante a “sabedoria da natureza”, acumulada durante bilhões e bilhões de anos de evolução।

Giannetti diz:

... A natureza pode ser pródiga, mas não faz concessões.
Falar em “guerra” seria exagero – cataclismos esporádicos à parte, há pelo menos tanta criação e exuberâncias quanto destruição e ruína no fluxo natural da vida pelo planeta. O que se observa, contudo, é que o processo evolutivo é marcado pela existência de forte competição e conflito na disputa por recursos escassos. Alguns ambientes, é verdade, são mais exigentes que outros. Mas, se eles forem generosamente bem-dotados para a preservação e reprodução da vida, a própria proliferação de seres vivos resultante desse fato auspicioso se encarregará de alterar o ambiente e apertar o cerco sobre cada um. Quando o ambiente se torna mais rigoroso, a peneira da seleção contrai: a nota de corte aumenta. O desafio de sobreviver e procriar com sucesso na natureza é um jogo de astúcia e agilidade, sorte e força bruta – um jogo no qual nem todos os chamados logram se fazer escolher.[3]

É suficiente para se perceber como a natureza não se enquadra nenhum pouco no esquema de justiça das religiões em geral. Ela, na verdade, tem métodos que fogem complemente ao que entendemos por princípios de misericórdia.

Conclusão? Quer pedir, peça. Mas saiba que essa prática é apenas um meio mental de se condicionar contra os percalços da existência, em face de que a natureza não está preocupada com a sua realidade meramente particular. Antes “preocupa-se” com o todo da criação.

A oração, na verdade, não passa de dispositivo psicológico, usado para uma articulação emocional diante de situações julgadas adversas. Pode-se até pensar em oração por uma perspectiva científica de autosugestão ou autohipinose. Mas o fato é que, no âmbito teológico, pedir algo a Deus não vai alterar nada no escopo do universo. Afinal, qualquer resposta a um pedido se quer, feito por um humano, colocaria esse deus em maus lençóis e o tornaria um miserável injusto, visto não atender também a tantos e tantos, mais necessitados do que muitos “santinhos” que estão clamando. O que acontece enfim é uma ação da natureza, na qual o espaço está aberto para todos. De certo modo, é cada um por si e quem quiser vencer que se associe com outros. Aqui vale o adágio: “a união faz a força”.

Entender que certos fatos ou fenômenos são resposta de uma divindade é mera interpretação condicionada pelas circunstâncias existenciais daquele que recorre a tal dispositivo. Quantas supostas respostas que agradam a uns, não são, na verdade, a desgraça de outros?

Que fazer então? Entregue-se à providência divina, sem dela nada esperar; a não ser o que por era já está decidido.

Portanto, busque-se o alvo com disposição lutadora. Se houver êxito, viva! Se não, que a luta continue. Afinal, porque desistir? Já dizia o poeta Gonçalves Dias: “A vida é um combate que aos fracos abate; aos fortes só pode exaltar” (Canção do Tamoio).

[1] A quem será que Deus vai atender?
[2] Rotterdam, Erasmo de. Elogio da loucura. São Paulo. Martins Fontes. 1997. 223 págs.
[3] GIANNETTI, Eduardo. Auto-engano. São Paulo. Cia das Letras, 5ª edição. 1997. 269 págs.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

UM NOVO TESTAMENTO INACABADO



Quando escrevi este artigo pela primeira vez, eu disse que: quanto ao aspecto autoritativo de uma literatura dada pelos seus antecedentes, a igreja do primeiro século parece consideravelmente mais inteligente em relação aos cristãos que lhe sucederam. Os autores do Novo Testamento foram eficientes e eficazes na criação de uma literatura supridora das necessidades imediatas a partir de uma literatura já existente.[1] Relendo este texto agora[2], ocorre-me uma outra reflexão: Na verdade, aqueles cristãos não abriram mão do AT e o consideravam mesmo de autoridade máxima. Na verdade, os escritos dos discípulos de Jesus influenciaram os seus circunstantes, mas não tinham o significado de texto inspirado. E pode ser dito mesmo que não foram os cristãos dos tempos apostólicos que foram abertos a novas escrituras, mas antes os cristãos pós-apóstolos do século II ao século IV. Estes abriram espaço para novos textos inspirados, mas, lamentavelmente, fecharam as portas para os seus irmãos subsequentes, quanto ao mesmo direito de incluir novos textos no cânon.

Os escritores neotestamentários aconselharam suas igrejas; deram-lhes rumos; fizeram-nas ver novas possibilidades de compreensão do mundo; passaram-lhes a nova mensagem que, embora embrionária no Velho Testamento, viera à luz com uma nova visão teológica.[3]

Os escritores e os leitores do Novo Testamente foram flexíveis e abertos a uma nova dimensão da revelação. Para eles, a medida de aferição era o Velho Testamento; natural que assim fosse: eram judeus que prezavam a Lei, os Profetas e os Escritos (Atos 17:10-12). Mas isto não anulou a sua capacidade de diálogo e de absorção da “nova” visão teológica dos missionários. Os cristãos não-judeus receberam mais facilmente a mensagem em face de uma formação cultural mais aberta para a reflexão, devido à influência helenista, que, de certa forma, preparou o mundo do primeiro século para a mensagem cristã.

O acima dito explica porque Paulo se sentiu à vontade para poder escrever que a Lei servira de aio (Gálatas 3:23-25): “depois que a fé veio, já não estamos debaixo de aio”. Paulo estava ensinando que os cristãos não estavam sujeitos a uma letra dogmatizada, absolutizada, como verdade inverificável. Assim, os escritos dos apóstolos puderam servir de textos de orientação para a comunidade nascente.

Evidentemente que os escritos do Velho Testamento eram usados na medida de sua aplicação possível à nova situação do povo de Deus. Os princípios formativos dos aios ou pais podem continuar com os filhos, mesmo depois que estes crescem e se tornam independentes. Respeita-se (não se venera) os ascendentes e tutores sem que isto implique em obstáculo a uma nova visão de mundo.

Claro está que os afeitos à letra do Antigo Testamento não gostaram do que Paulo escreveu quanto à Lei.[4] Ora, as necessidades da Igreja precisavam de suprimento e não seria por motivos de mentes conservadoras, talvez fundamentalistas, que o processo seria interrompido. Resultado: o aparecimento de escritos que supriram coerente e concretamente as necessidades da Igreja.

Por que dizer que aqueles cristãos usaram melhor a sua inteligência?

A partir do século II, a Igreja começou a enfrentar situações novas e, para vencê-las, foi buscar respaldo nos escritos dos cristãos do século I, além do texto veterotestamentário. Passou-se a respeitar aquela literatura na conta do sagrado, absolutizando o seu conteúdo e, concomitantemente, tolhendo os contemporâneos de usarem a sua criatividade para inocularem as necessidades que posteriormente surgiriam com novos textos. Enquanto os cristãos do século I absorveram o “espírito” do Velho Testamento e escreveram novos documentos, os cristãos subsequentes caíram num fundamentalismo inconsequente, considerando inspirada uma literatura já produzida e interromperam a elaboração de uma nova literatura “inspirada”, que seria fruto de reflexões sempre vitalizadas por novas situações e que fomentaria novas compreensões da situação da Igreja, mesmo que para isto chegassem a considerar os escritos do Novo Testamento como aios seus, assim como Paulo considerou o Velho Testamento (a Lei). Sem dúvida que os cristãos posteriores aos do século I encontraram saídas para os seus problemas. Mas poderiam ter evitado muitos transtornos subseqüentes na Igreja, se não tivessem absolutizado ao extremo a letra dos dois Testamentos já conhecidos. Claro está que “tudo quanto dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito” (Romanos 15:4). Mas este fato não proibiu Paulo de ser um teólogo e criador de novas perspectivas para a Igreja, através de novos textos.

Como resultado daquela atitude eclesiástica primitiva dos cristãos subseqüentes ao século I, os teólogos têm perdido terreno; e os mais corajosos são estereotipados e, como o próprio Cristo, muitas vezes martirizados pela pena dos adoradores da letra do VT e do NT.

Precisamos, pois, de inteligências despreconceituosas, livres de compromissos com algum sistema humano; inteligências afeitas, exclusivamente, à busca da verdade e dispostas a interpretar o fenômeno divino para suprimento das necessidades humanas, mesmo que para isto corram o perigo de serem martirizadas.

Temos um acervo literário elaborado durante o decorrer da história eclesiástica, do qual também podemos dizer, tanto quanto dos Velho e Novo Testamentos, que “para o nosso ensino foi escrito”. Cairns, em seu “O Cristianismo através dos séculos”, diz: “Ao demonstrar o desenvolvimento genético do cristianismo, a história da Igreja é para o Novo Testamento o que o Novo Testamento é para o Velho. O cristão precisa se conscientizar dos principais desenvolvimentos do crescimento e progresso do cristianismo assim como da verdade bíblica. Desse modo, ele se sentirá parte do Corpo de Cristo, que inclui um Paulo, um Bernardo de Claraval, um Agostinho, um Lutero, um Wesley ou um Booth”.[5]

Sejamos sábios e usufruamos da liberdade cristã no suprimento de nossas necessidades, possibilitando a continuação do surgimento de uma literatura que componha um Novo Testamento sempre inacabado.

[1] O Velho Testamento teve finalizada a sua definição canônica nos anos 90 do século I, com o domínio maciço dos fariseus. Com a destruição do templo de Jerusalém em 70 d.C. os saduceus desapareceram consideravelmente.
[2] 06-10-2008.
[3] Visão teológica a partir do evento Jesus.
[4] Os saduceus eram os conservadores do século I. Aceitavam apenas a Lei escrita como autoridade religiosa. Os fariseus eram, de certo modo, liberais. Além da Lei escrita, adotavam também uma Lei oral (midrashim – halakah e haggada). Gonzalez, Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (págs. 32-33). 382 págs. Talvez a abertura de Paulo se explique por ser ele um fariseu.
[5] CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. Pág. 18. 508 págs.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

SOBRE A MOTIVAÇÃO PARA O QUE CREMOS[1]


Na base de qualquer crença há uma motivação psicossocial. Isto significa que o ser humano está completamente comprometido com a sua própria segurança no ambiente em que vive e na convivência com seus iguais. Até mesmo quando se sacrifica por alguém ou por algum ideal, o homem está, mesmo que inconscientemente, a sustentar as suas crenças como verdadeiras.

Aplicando o acima dito ao contexto religioso, crenças podem refletir inseguranças. Isto é um paradoxo porque aquilo em que se crê, pode servir de base para que se tenha segurança em algum aspecto da personalidade. Isso é curioso. E dizer que a contra-partida de uma crença é sempre o que a contradiz é pura tautologia. Porém, dizer que pelas crenças de alguém podemos conhecer as suas inseguranças, pode ser algo para se pensar. As crenças podem ser o espelho de nossos medos. Medos esses, muitas vezes bem guardados em nosso inconsciente.

O ser humano é egoísta. Inconscientemente ou não, ele rejeita uma determinada maneira de ver a realidade se a mesma não lhe traz vantagens para a existência. Às vezes, forçosamente, ele concorda com certos conceitos e abandona crenças, em face de que supostos fatos estão a ratificar àqueles. A crise acontece, mas pode ser superada; até que novos fatos mostrem um novo caminho. Portanto, é preciso evitar limitações ocasionadas por barreiras preconceituosas de quaisquer ordens que sejam.

Dessa forma, surgem perguntas.

Em que se fundamenta, portanto, a motivação para as crenças?

Por que a necessidade de se crer em algo de modo absoluto?

O homem é ensinado a depender de crenças que dêem suporte à sua existência?

Parece que a condição de imaturidade pode ser um dos fatores responsáveis por esta situação humana. O homem vive à cata de algo em que possa crer para que a sua vida tenha sentido. Seria um desespero viver sem algo em que colocar a sua confiança. Aliás, a busca de sentido, relativo ou absoluto, tem sido uma das aventuras humanas. Disso se aproveitam os pregadores e condutores da mídia. Consciente ou inconscientemente, estes profissionais utilizam-se de conhecimentos da psicologia humana para poderem conduzir os seus seguidores. Bem a propósito a letra: “Eh, ô, ô! Vida de gado! Povo marcado, esse! Povo feliz!”. Isso só pode ser uma ironia, pois que muitos aproveitam o terreno fértil da imaturidade popular e fazem pulular as suas pregações de promessas e confirmações de realidades que só servem para alimentar o desejo egótico-narcisista que direciona a mente das massas. Todas as possíveis realidades de riqueza, saúde, paraíso, céu, inferno, galardão, Deus, diabo, anjos, demônios, milagres, vida após a morte, o bem e o mal, e centenas de outras invencionices, são usadas para amenizar os conflitos e dores da humanidade. Tem-se esse caminho como mais fácil do que levar o homem ao caminho da maturidade, no qual enfrentará a realidade da vida como ela é, de modo consciente, sem ficar esperando a concretização de utopias veiculadas por promessas fundadas em especulações e ou desejos utópicos. Parece que o problema a se enfrentar é educacional. Existem muitos que são contrários a este caminho em virtude de um mito criado para sustentar a religião, o qual ensina que o homem só pode ser transformado por uma experiência mística com Deus. Será que este Deus não escolhe também o processo formativo educacional para direcionar os humanos? Por que não? Será que isto o tornaria impotente? Poder-se-ia fugir do fato de que toda a maneira de pensar e existir do ocidental é primariamente fruto da cultura grega? Até mesmo a forma como concebemos o próprio cristianismo é moldada também pela cultura helênica ou, quem sabe, por um outra forma de visão de mundo. E afirmar que a transformação só é possível por experiência religiosa, não seria também um fruto de uma educação? Disso os primeiros cristãos são testemunhas (basicamente os pais apostólicos – Séc. II – III). Se a educação não fosse prioritária, o próprio Jesus não teria escolhido um grupo de seguidores que estivesse a aprender consigo diariamente. O texto bíblico expressa o que ele disse: “Ide e ensinai a todas as nações” (Mateus 28:20). Pode-se até passar por uma experiência impactante (o que não é absoluto para todos), mas o conteúdo de uma crença, de uma fé, é mediado pelo ensino, pela educação. Até mesmo a própria experiência impactante, mesmo a mística, depende de toda uma experiência educacional passada pelo ser humano nela envolvido. As informações recebidas parecem condicionar a própria experiência religiosa.[2] As concepções de mundo, de vida familiar, os traumas vividos, vitórias e derrotas vividas, as próprias informações que veiculam a experiência e outras realidades nas quais o homem está envolvido condicionam-no para a absorção da experiência mística ou religiosa. Toda esta realidade prévia é educativa, quer seja direcionada conscientemente ou não. Às vezes, o processo da experiência pode levar anos; às vezes, pode ser algo repentino. Depende do caso. A síntese do exposto é que na base de toda experiência está um processo formativo-educacional. Não há como fugir desta realidade. Se há, precisa ser demonstrado.

O processo educacional envolve, claro, o indivíduo e a sociedade. É um processo de interrelação. Da mesma forma que o indivíduo, a sociedade também passa por experiências impactantes (místicas ou não).

Estas colocações apontam para o fato de que o homem leva consigo não somente o aspecto da individualidade, como também toda uma herança sócio-cultural dos seus circunstantes e dos seus ancestrais. De sorte que o que está acontecendo com a sociedade é também, em largo sentido, o que está acontecendo com o indivíduo. E a contra-partida também é verdadeira. Não somente o indivíduo precisa de mudança; a sociedade, por vezes, também necessita da mesma. Mudar é imprescindível. E as mudanças acontecem na medida em que todo um processo educativo se desenrola, tanto no indivíduo como também na coletividade. Seja por processo interno, socialização, ou por processo externo, sob força ou pressão social, o indivíduo é levado a experiências que refletem plausivelmente o fator educacional envolvido em suas transformações existenciais. Veja-se que é praticamente impossível um indivíduo, que nunca recebeu qualquer informação sobre o Buda, ter uma conversão ao budismo. Experienciamos apenas aquilo de que fomos informados de antemão.

Todo o exposto serve para ratificar a convicção de que as crenças (de quaisquer ordens) fazem parte do condicionamento educacional. E na base de toda crença, via de regra, está a auto-satisfação.

Desta forma e com esta consciência, as crenças podem ser revistas, reformuladas e até abandonadas, tendo-se o controle de não sermos dependentes das mesmas. Não há necessidade de se crer absolutamente em coisa alguma. Precisa-se (isso sim!) viver, existir. Isto significa cumprir o ciclo da natureza como a mesma prescreve. Jesus enxergou esta realidade, quando se referiu aos lírios do campo: “Olhai para os lírios do campo” (Mateus 6:28). A flora não precisa preocupar-se ou crer em coisa alguma. Isso é forçar o texto? Também os pássaros estão sobre o controle das supostas leis da natureza. Como disse Paulo: “porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 17:28). E Jesus disse que o Pai toma conta não só da fauna, como também da flora. A inclusão do Pai induz a uma crença. Mas é fato que a Natureza dispõe-se a provê as necessidades de si mesma (“Deus manda sol e para justos e injustos” – Mat. 5:45). Assim, o homem pode viver aberto a todas as novas perspectivas que possam surgir, sem jamais se apegar ferrenhamente a uma crença, como se dela dependesse absolutamente. O necessário para viver já está disposto em toda a contingência e abrangência do universo. Basta que a preguiça e a indisposição sejam abandonadas e o trabalho suprirá as necessidades.

Vale salientar que o mercado de crenças favorece aos pregadores que, consciente ou inconscientemente, pensam estar ajudando ao semelhante; e favorece muito mais aos exploradores da mente humana. Possivelmente há resultados benéficos em muitas crenças. Mas é preciso não absolutizar o que se recebe como certo no momento. É preciso estar aberto para questionamentos. Não há aqui proposta para mudança de motivação para a crença; advoga-se antes um desprendimento de uma compreensão infantil do que se pensa ser a única verdade. Já dizia o finado apóstolo Paulo: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino” (1 Coríntios 13:11).
[1] Nosso objetivo neste texto não é responder a todas as questões instigadas, mas antes despertar a necessidade de revermos nossas motivações para o que cremos.
[2] Que explicação seria mais plausível para que um budista tenha visões do Buda e não da Virgem Maria? E se esta aparecer em um sonho de um islamita, não será para lhe dar uma missão cristã. Caso aconteça, o tal religioso já recebeu previamente um condicionamento informativo-educacional sobre a Virgem.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A VONTADE DE DEUS[1]



Atribuir vontade a Deus é uma forma de antropatizá-lo[2]; é atribuir à divindade uma disposição mental, característica do próprio homem. Ao proceder desta forma, o homem cria um problema de ordem teológica em relação ao próprio conceito de Deus, conceito este elaborado pelo próprio homem. Não é o caso de se proibir emprego de uma linguagem antropatizadora quando se falar sobre a divindade. Na verdade, é o caso de não se permitir que esta linguagem chegue a pontos de borrar a devida imagem teológica. No momento, alguns pontos são pertinentes para se exemplificar este problema.

Dizer que “a vontade divina não possui limites e é livre de todo obstáculo”[3], e com isto uma grande maioria de cristãos concorda, parece conter em si um problema de ordem lógica, pois que para Deus diz-se ser impossível praticar a maldade. Logo, a sua vontade já possuiria um limite em face de sua natureza, como apregoada pelo pelos próprios teólogos. Mas isso não seria ainda um grande problema. O agravo surge quando se diz que “a Deus basta querer para fazer”[4]; e isto é dito entendendo-se que Deus continua agindo na criação[5]. Ora, se em Deus há perfeição absoluta, não há mais nada a querer, pois que tudo já está consumado. Pois que, se alguma vez ele desejou algo, desejou de uma vez por todas. Não sendo mais necessária qualquer intervenção de uma vontade subsequente.

Vontade implica necessidade. Por mais metafórica que seja a linguagem empregada, o conceito teológico de Deus, no cristianismo, não comporta o atributo da necessidade. Na verdade, só a criatura tem vontade, e isto revela sua necessidade. Assim é, pois que a criatura não possui a perfeição do criador, é limitada e contingente; contingência essa que implica em necessidade de decidir. Atribuir necessidade de decisão a Deus é atribuir-lhe contingência; contingência de necessitar de algo. Ter vontade expressa a contingência do agente da vontade. Ter vontade relativiza o ser, pois que toda vontade está relacionada a um desejo. Disto decorre a impossibilidade de uma vontade isolada. Não há uma vontade que não se referira a coisa alguma. Seria um absurdo. Decorre disto a necessidade de verificar se o falar antropático sobre Deus não está em contexto de senso comum[6]; se assim acontece, não atende a uma reflexão séria e merecedora de status teológico mais avançado. Neste sentido, toda linguagem de senso comum atende apenas a uma compreensão de neófitos no conhecimento da divindade e a uma reflexão meramente devocional; o que desmerece consideravelmente uma compreensão propriamente teológica, embora se faça certa concessão a essa linguagem, face à condição da grande maioria de cultuantes da divindade.

Fora do âmbito da vontade de algo, pode-se ainda falar sobre a vontade de si mesmo. Enquanto aquela implica em insatisfação, esta não teria a mesma implicação. Na verdade, a vontade de si mesmo é vontade de nada; e já não seria mais vontade, visto desejar-se o que já se possui. Descaracteriza-se a vontade. Portanto, Deus não pode ter vontade, a não ser a vontade de si mesmo. Isso é o mesmo que ter vontade de nada. Assim, ter vontade de nada é vontade de algo absoluto. O nada é absoluto. Sendo Deus absoluto, não teria vontade de coisa alguma. E enquanto vontade de si mesmo, já estaria satisfeito. Se vigora o pressuposto de que em Deus tudo é perfeito, depreende-se que na divindade não se requer nenhuma alteração ou mudança. Teria Deus, portanto, vontade de algo além de si mesmo, de vez que isso o colocaria como um ser dependente daquele algo desejado? Não ficaria descaracterizada a sua divindade?

Ora, se tudo estiver em Deus (essa era a poética dos gregos advogada pelo apóstolo Paulo em Atos 17), então qualquer vontade de Deus é vontade de si mesmo. A vontade de si mesmo é a vontade de tudo e, por consequência, vontade de nada, pois que estaria estabelecida imediatamente a satisfação do desejo. Será possível, portanto, uma vontade em Deus nos termos em que o senso comum a explora em seus discursos?
Por esse caminho, todo e qualquer discurso humano sobre a vontade de Deus, com implicações teológicas dogmático-fundamentalistas, não seria mera inflamação mental? Se o falar antropotático for fundamentalmente metafórico para um dizer existencial, possuirá talvez sua viabilidade e pertinência, embora passível de caducidade e crítica. Se esta condição for considerada, quanto ao antropotatismo[7], parece ser aceitável falar-se sobre vontade de Deus, sem perder de vista sua comprometedora limitação. O que passar disso seria procustear[8] a própria divindade sem os devidos fundamentos teológico-filosóficos.

De uma possível perspectiva teológica, talvez a melhor abordagem sobre a vontade de Deus seja considerá-la como a finalidade para a qual as coisas e os seres existem. É uma abordagem que segue um princípio hermenêutico bem aristotélico[9], embora esta não mereça apologia, mas vá lá que seja. Disso decorreria que a vontade de Deus é a finalidade para a qual a criação veio a existir[10]. O mais seria especulação. Considerando-se ainda que, sendo essa finalidade, pela perspectiva da criatura, algo puramente temporal, da perspectiva divina já não vigora, pois que para Deus, não havendo tempo, tudo já está consumado.

Ora, partindo do pressuposto de que qualquer abordagem é resultante de pressupostos e interpretação condicionados (estes, por sua vez, relativos à limitada abrangência de nosso conhecimento de causa), quando poderemos dizer que conhecemos a vontade de Deus?[11] Por que não assumirmos antes os riscos de uma vida que procura levar em consideração toda uma abordagem de princípios extraídos da existência humana?

Se assim é, abram-se os portões para o desfile de abordagens diversas e até mesmo contrárias que tentem esgotar o assunto.

[1] A leitura deste texto deve levar em consideração as notas de rodapé.
[2] Antropopatizar procede de duas palavras gregas, “ântropos” (homem) e “patos” (emoção, sentimento, ou disposição mental). No caso deste artigo, refere-se especificamente à atribuição das condições humanas de emoções ao próprio Deus.
[3] http://www.bsb.netium.com.br/regis/natureza.htm em 15 de outubro de 2008.
[4] Idem.
[5] Um texto que pode ser usado para fundamentar esta afirmação é a palavra de Jesus, quando diz: “meu Pai trabalha até hoje e eu trabalho também” (João 5:17). Essa afirmação do Mestre está inserida em um contexto literário-apologético e é limitado pela seu próprio contexto teológico-existencial. Jesus não estava necessariamente teologando, mas falando a indivíduo fora de uma contexto teológico científico. Portanto, naquelas circunstâncias, um discurso limitado por balizas extritamente teológicas não seria o caso. Não se deve esquecer o fato de que a figura de um deus que trabalha é também antropomórfica.
[6] Se não em um contexto de imaturidade teológica.
[7] E antropomorfismo também.
[8] Referência ao mito grego do leito de Procusto.
[9] Em Aristóटेल्स todas as coisas tendem a um fim, ao passo que este fim pode se reduzir à felicidade.
[10] Claro que alguém argumentará que os meios para esta finalidade, desde que se coadunassem com a natureza divina, seriam também, por consequência, a sua vontade. Mesmo assim, essa reflexão fica por conta da interpretação humana.
[11] Isso significa dizer que toda e qualquer abordagem é passível de revisão.