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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

É VIÁVEL PEDIR ALGUMA COISA A DEUS?


Partamos do pressuposto de que milhões de pessoas pedem algo a Deus e não são atendidos। Uma pergunta contundente para qualquer teólogo é: por que Deus não responde a tantos que lhe recorrem? Ora, essa pergunta é intrigante se concebemos Deus como um criador, soberano, controlador de toda a natureza, ao qual nada escapa. Além disso, sendo Deus concebido como sábio e perfeito, instala-se uma problemática em face de que, dizendo desse modo, Deus se transforma num terrível injusto. E essa é a grande crítica de muitos ateus e incrédulos ao cristianismo pelos séculos afora. Ora, se eu peço algo a Deus e sou atendido, por que outros pedem e não o são? Terei eu algum mérito diante de Deus? Evidente que não (ou evidente que sim?). Quais seriam os critérios do Criador quanto a responder oração? Por que muitos não são atendidos? Existe humano passando mais e maiores necessidades do que eu. Por que justamente aquele não é suprido? Claro que a lógica de cada apologeta vai enxergar uma saída para estes questionamentos. Mas será que são respostas realmente convincentes?

Acontece que, pelo fato de algo ter acontecido como eu esperava, julgo que recebi resposta de Deus। Faz-se necessário analisar esta questão da resposta às orações, de vez que cada pessoa tem uma conclusão quanto à entidade lhe responde. Dependendo da indução religiosa, uma pessoa ora a Deus ou a um santo e, mediante a resposta ou não, entende que a entidade chamada lhe concedeu um retorno positivo ou negativo. Isso acontece no cristianismo, nas religiões de ordem africana, no budismo, no islamismo, no Judaísmo, e em tantos ismos religiosos que existem. Cada religião vai dar a sua interpretação baseada na crença de que o suprimento de Deus, ou de outras entidades (dependendo do pacote religioso), para os que são atendidos está vinculado a certos pré-requisitos que são preenchidos. É curioso como, dependendo da religião, a resposta atenderá a proposições que, dentro de uma perspectiva teológico-filosófica, tornam o deus envolvido na resposta cada vez mais encrencado diante de sua própria natureza. Para o cristianismo, que apresenta uma divindade nos moldes ditos no início, fica difícil explicar porque tanta injustiça acontece entre os humanos. E não se diga que Deus sabe o que faz e que sua sabedoria não pode ser alcançada, porque essa resposta é mera escapativa para o não enfrentamento da contradição teológica criada ao se falar de um deus soberano e justo que, ao mesmo tempo, permite tanta “desgraça”. Essa contradição teológica não tem sido enfrentada devidamente pelos teólogos tradicionais em geral, visto serem eles prisioneiros de uma prescrição escriturística dogmática, que não permite revisão de autoridade. Ficam tais teólogos escravizados a uma letra e, devido a isto, não revisam seus pressupostos, maculando a imagem da divindade em quem dizem crer. É possível que o fato de não haver resposta cabal à questão do sofrimento humano não se deva a uma impossibilidade de se atingir o recôndito do coração divino, mas ao orgulho de não se admitir que há erros na imagem de Deus, criada pelas religiões. Não há como escapar do pressuposto de que toda imagem de Deus é antropológica. Isto significa dizer que, não importando a religião, o vidente, o profeta, o guru, etc., tudo o que é dito sobre Deus é resultado da limitada percepção humana. Ora, a situação cognitiva do homem não lhe permite abarcar o todo de sua existência; quem diria do conhecimento teológico. O que se diz sobre Deus não poderá jamais significar um conhecimento absoluto que responda satisfatoriamente aos questionamentos formulados, principalmente se são questionamentos que atingem seriamente o conceito de Deus, do modo como a vã sabedoria humana pensa conhecer. Sendo assim, a concepção de Deus encontra-se comprometida, como também toda e qualquer explicação do universo que dependa dessa concepção.

Volta então a pergunta: é viável pedir alguma coisa a Deus? Observe-se que a pergunta é em relação à viabilidade e não em relação à permissão।

Para responder a esta pergunta de um modo mais argumentado e expressivo, necessita-se pensar seriamente sobre como a natureza se comporta no processo de condução e de manutenção (de si mesma) dos seres vivos। O uso do próprio texto bíblico pode aturdir a muitos ante as possibilidades de respostas criadas pelas próprias escrituras. A seguir, encontram-se textos bem sugestivos, expressos em linguagem religiosa, contendo indicações de como a natureza se comporta em relação a si mesma.

Ressaltam-se os versos nos quais se indica como os animais conseguem o seu alimento।

Ele faz crescer a erva para os animais e a verdura, para o serviço do homem, para que tire da terra o alimento. Verso 14.
Ordenas a escuridão, e faz-se noite, na qual saem todos os animais da selva.
Os leõezinhos bramam pela presa e de Deus buscam o seu sustento. Verso 21.
Nasce o sol e logo se recolhem e se deitam nos seus covis. Verso 22.
Todos esperam de ti que lhes dês o seu sustento em tempo oportuno. Verso 27.
Salmo 104

Considerai os corvos, que nem semeiam, nem segam, nem têm despensa nem celeiro, e Deus os alimenta; quanto mais valeis vós do que as aves? Lucas 12:24.

... porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e chuva desça para justos e injustos... Mateus 5: 45

Primeira questão: qual o método usado para o sustento dos seres vivos? Caça predatória। E desse item o homem não é excluído. Para sobreviver é preciso predar. A linguagem poético-religiosa do texto diz: “Todos esperam de ti que lhes dês o seu sustento em tempo oportuno” (Salmo 104: 27). Ou seja, tantos animais irracionais, como também os racionais dependem do Mantenedor da criação. Observe-se que não é um esperar passivo. E como não é!

Como vivem os animais? Uma grande maioria vive de pura caça predatória। Quando o texto diz: “Ordenas a escuridão, e faz-se noite, na qual saem todos os animais da selva” (Salmo 104:21), pode-se entender que saem para matar mesmo. Cita-se o leão. Como este animal consegue alimento? Outros animais são devorados pelo “rei dos animais”. E não somente esta espécie tem a prática predatória. Milhares de outras espécies agem da mesma forma, inclusive o próprio homem. Os documentários sobre a natureza animal atestam que a natureza não é tão pacífica e paradisíaca como parece ou se espera. Na verdade, existe uma guerra contínua pela sobrevivência.

Imagine as outras espécies a falar com o Criador; principalmente as menos favorecidas pediriam para serem defendidas diante dos mais fortes। Provavelmente fariam o que os humanos fazem. Orariam pedindo justiça diante de tanto “sofrimento”. Orariam para que Deus as livrasse das garras do leão devorador. Como seria a imagem da zebrinha pedindo misericórdia a Deus para não ser devorada? A suposta resposta seria: “eu determinei que seja assim”. E lá vem o leão...

A palavra do Salmo 17:12 é expressiva: “parecem-se com o leão que deseja arrebatar a sua presa e com o leãozinho que se põe em esconderijos”। A expressão “arrebatar a presa”, revela que há mesmo um assalto à vítima que serve de repasto para o predador. O sangue corre aos litros para que muitos animais na selva sejam alimentados. Interessante é que a Bíblia diz que é Deus quem os alimenta. Que método curioso de alimentar as suas criaturas. A sorte de muitos é a morte para que a sorte de outros seja a vida. O velho darwinismo parece forte: a lei do mais forte ou mais esperto em vigor. Parece que o que vem mesmo de modo igual para justos e injustos são o sol e a chuva. E olhe lá, pois que se justos e injustos não estiverem no lugar certos não poderão desfrutar dos benefícios da natureza. Sem falar que muitas vezes os ataques da natureza são terríveis tanto para os “bons” quanto para os “maus”. Na verdade, sofrem ricos e pobres, as mais diversas raças; uns mais; outros menos. Acrescente-se a isto o fato de que, do mesmo modo que animais irracionais impingem sofrimento aos seus semelhantes, os humanos também assim o fazem. É a prática da natureza: uns devorando os outros e uns lutando pelo seu espaço; lutando por afirmação... Os humanos são a espécie que conseguiu afirmar-se sobre o planeta. Muitas outras espécies foram extintas e outras estão a caminho para isso. A proliferação humana aconteceu a um percentual extravagantíssimo. A evolução mental permitiu o desenvolvimento de “técnicas” de sobrevivência individual e grupal. Os outros animais que a isto não chegaram, são dependentes para prosseguirem a caminhada, quando não são erradicados do planeta. Mas o fato é que humanos, apesar das técnicas, desenvolvem outros meios de continuar a execução do instinto. Na natureza, o assalto, o estupro, a agressão e outras ações são considerados comuns pelos estudos científicos. Basta ler sobre a vida dos primatas. Que aconteceria se os outros animais começassem a evoluir e a inventar mecanismos de autopreservação? E se o caminho deles fosse na contramão dos humanos? É interessante observar que cientistas fizeram simulações em computador e chegaram a uma conclusão não muito agradável para os humanos: se os Dinos tivessem permanecido no planeta, teriam evoluído tanto que hoje nós seríamos os animais de estimação deles...

As relações humanas, por mais evoluídas que sejam, refletem uma natureza intrínseca। Não que se advogue aqui um essencialismo ou existencialismo. Mas o fato é que, à medida que o homem evolui, parece ficar difícil escapar do que se é. Por mais evoluído que venha a ser, o homem continuará sendo uma das espécies do planeta e jamais se isentará dos princípios que regem a ecologia.

A competitividade e violência dos seres humanos apontam para o que a Biologia ensina quando trata das interações ecológicas na Biocenese। Segundo a compreensão científica, as interações entre seres vivos ocorrem tanto entre membros da mesma espécie, como entre membros de espécies distintas. Essas interações podem ser divididas em desarmônicas, quando resultam em prejuízo para algum dos indivíduos que interagem; e harmônicas, se resultam em vantagens ao menos para um dos participantes da relação, sem prejuízo da outra parte; e neutras, quando não trazem nem benefício nem prejuízo para os indivíduos que dela participam.

A interação intra-específica no aspecto competitivo ocorre no caso de plantas que competem entre si por água, por espaço e por luminosidade. Animais competem por parceiros de reprodução, por espaço e por alimento, entre outras coisas. No caso dos humanos a realidade não é diferente. Leve-se em consideração o conflito entre judeus e palestinos.[1] No âmbito das considerações biológicas, fato deverasmente natural: Membros da mesma espécie competindo pelo espaço. Levando-se em conta os estudos científicos, quando a competição for acirrada, em geral a parte “perdedora” pode desaparecer, ser obrigada a emigrar ou sofrer lentas modificações em seu nicho, o que faz com que a competição seja reduzida. Ora, o conflito entre judeus e palestinos poderia não mais existir, se não fora a ação da Inglaterra depois que o Império Turco foi derrotado no conflito mundial (I Guerra Mundial – 1914 – 1918). A Palestina passou a ser possessão dos ingleses e estes se comprometeram em providenciar um “lar nacional” para os judeus. Surgiu o movimento sionista e a emigração de judeus para a Palestina aconteceu. De lá para cá, os conflitos vem acontecendo, cada vez mais acirrados. Os problemas acontecidos na Palestina não estão perto de serem resolvidos, se é que um dia o serão. Pode-se dizer que a competição entre judeus e palestinos é basicamente ao nível de relações ecológicas. Mas é claro que também existem outros interesses por parte de ambos os competidores, como também por parte de “muitos que estão de fora”, indiretamente interferindo. É bem verdade que as relações humanas não são somente ecológicas, mas também econômicas e políticas. Pode-se acreditar, no entanto, que todas as outras relações são mecanismos e técnicas desenvolvidos pelos humanos a serviço das relações ecológicas. Nada mais do que a natureza procurando manter-se viva. Vinga neste sítio o fato de que os fins podem determinar os meios. Aqui cabe bem Erasmo de Rotterdam em seu “Elogio da Loucura”: “...Dona Natureza, genitora e produtora do gênero humano, tem o cuidado de deixar em tudo uma pitada de loucura.”[2] Loucura aos olhos de quem? Aos olhos de quem está perplexo ante a suposta violência, ante o suposto sofrimento humano, não entendendo que a suposta sabedoria humana é como um minúsculo grão de areia na praia, ante a “sabedoria da natureza”, acumulada durante bilhões e bilhões de anos de evolução।

Giannetti diz:

... A natureza pode ser pródiga, mas não faz concessões.
Falar em “guerra” seria exagero – cataclismos esporádicos à parte, há pelo menos tanta criação e exuberâncias quanto destruição e ruína no fluxo natural da vida pelo planeta. O que se observa, contudo, é que o processo evolutivo é marcado pela existência de forte competição e conflito na disputa por recursos escassos. Alguns ambientes, é verdade, são mais exigentes que outros. Mas, se eles forem generosamente bem-dotados para a preservação e reprodução da vida, a própria proliferação de seres vivos resultante desse fato auspicioso se encarregará de alterar o ambiente e apertar o cerco sobre cada um. Quando o ambiente se torna mais rigoroso, a peneira da seleção contrai: a nota de corte aumenta. O desafio de sobreviver e procriar com sucesso na natureza é um jogo de astúcia e agilidade, sorte e força bruta – um jogo no qual nem todos os chamados logram se fazer escolher.[3]

É suficiente para se perceber como a natureza não se enquadra nenhum pouco no esquema de justiça das religiões em geral. Ela, na verdade, tem métodos que fogem complemente ao que entendemos por princípios de misericórdia.

Conclusão? Quer pedir, peça. Mas saiba que essa prática é apenas um meio mental de se condicionar contra os percalços da existência, em face de que a natureza não está preocupada com a sua realidade meramente particular. Antes “preocupa-se” com o todo da criação.

A oração, na verdade, não passa de dispositivo psicológico, usado para uma articulação emocional diante de situações julgadas adversas. Pode-se até pensar em oração por uma perspectiva científica de autosugestão ou autohipinose. Mas o fato é que, no âmbito teológico, pedir algo a Deus não vai alterar nada no escopo do universo. Afinal, qualquer resposta a um pedido se quer, feito por um humano, colocaria esse deus em maus lençóis e o tornaria um miserável injusto, visto não atender também a tantos e tantos, mais necessitados do que muitos “santinhos” que estão clamando. O que acontece enfim é uma ação da natureza, na qual o espaço está aberto para todos. De certo modo, é cada um por si e quem quiser vencer que se associe com outros. Aqui vale o adágio: “a união faz a força”.

Entender que certos fatos ou fenômenos são resposta de uma divindade é mera interpretação condicionada pelas circunstâncias existenciais daquele que recorre a tal dispositivo. Quantas supostas respostas que agradam a uns, não são, na verdade, a desgraça de outros?

Que fazer então? Entregue-se à providência divina, sem dela nada esperar; a não ser o que por era já está decidido.

Portanto, busque-se o alvo com disposição lutadora. Se houver êxito, viva! Se não, que a luta continue. Afinal, porque desistir? Já dizia o poeta Gonçalves Dias: “A vida é um combate que aos fracos abate; aos fortes só pode exaltar” (Canção do Tamoio).

[1] A quem será que Deus vai atender?
[2] Rotterdam, Erasmo de. Elogio da loucura. São Paulo. Martins Fontes. 1997. 223 págs.
[3] GIANNETTI, Eduardo. Auto-engano. São Paulo. Cia das Letras, 5ª edição. 1997. 269 págs.

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