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domingo, 26 de outubro de 2008

A IRA DE DEUS
É viável ensinar que Deus se ira?


A ira de Deus é um aspecto ventilado no Antigo Testamento com forte ênfase। Textos os mais variados ratificam esta faceta do temperamento divino. No entanto, pode-se concitar o leitor para uma reflexão não meramente condicionada por crenças já preestabelecidas por uma tradição religiosa, visto haver exemplo disto em alguém que incomodou incisivamente a sua época. Jesus atuou no seu ministério, através de um método extremamente contundente. Ele criticava a visão dos seus contemporâneos, intensionando mostrar-lhes que aquilo que estavam ensinando, não se conformava com a realidade da sua interpretação. Não se pode deixar de convir que o próprio Jesus estava vinculado a um contexto, mesmo que a sua interpretação para aquele momento fosse extravagante na visão dos seus ouvintes.

Uma expressão sugestiva colocada nos lábios de Jesus pelos evangelistas foi (e ainda pode ser usada): “ouvistes o que foi dito [...] eu, porém, vou digo...”। Esta fórmula pode ser uma ponte verbal para uma contextualização da revelação. Pode-se, como fez Jesus, usar a mesma fórmula para contextualizar a revelação bíblica, enfrentando até mesmo a possibilidade de uma “crucificação”.

“Ouvistes o que foi dito”: “Deus derramará a taça de Sua ira sobre...”; Eu, porém, vos pergunto: Seria Deus um ser imaturo para perder a Sua postura de equilíbrio, descarregando ira sobre aqueles que nunca seriam páreo suficiente para enfrentá-lo? Seria Deus limitado para não saber como encaminhar as Suas criaturas para onde Ele quer que se dirijam? Se Deus é perfeito em Suas obras e tem um plano a ser cumprido na história, não seria Ele fraco, se os contingentes seres humanos conseguem irritá-lo, levando‑o a agir, muitas vezes, como os próprios humanos? Não seria expressão do contexto cultural de cada época a afirmação de que o Criador derrama ira sobre as criaturas? Se hoje se trabalha por famílias que eduquem os seus filhos sem que descarregem neles a sua frustração, muitas vezes através da ira, seria coerente ensinar-se que Deus, por frustração ou causa parecida, também agiria nefandamente? Não seria uma antropopatização extremada da divindade?

Parece que a reflexão teológica precisa ser mais consistente e eficaz em suas considerações। Há muito tempo chegou a necessidade de se evitar o condicionamento teológico de uma estrutura de pensamento cultural isolada, atribuindo-se a Deus um caráter unilateral, desprovido do aval de Sua natureza intrínseca.

Encontra-se no Antigo Testamento (Gênesis 15।13-16) o relato em que Deus, falando com Abrão, diz-lhe que a descendência do patriarca seria peregrina no Egito; mas que voltaria para a Terra Prometida, a terra da Palestina. Acrescenta Javé que julgará o povo que afligirá aos descendentes de Abrão; como também esperará que a “medida da injustiça dos amorreus” seja saturada. Aqui está subentendida a certeza de um castigo sobre os povos de Canaã; terra para onde os israelitas voltariam. Este texto já fomenta a expectativa de uma demonstração de ira sobre os povos que viviam em Canaã.

No Antigo Testemento, fatos repugnantes estão supostamente sob a ordem divina। Repugnantes porque esses fatos contrariam consideravelmente o espírito cristão. Já no livro de Deuteronômio, capítulo sete, está escrito: “Quando Javé teu Deus tiver introduzido‑te na terra, a qual vais possuir, e tiver lançado fora muitas gentes de diante de ti, os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os pereseus e os jebuseus, sete gentes mais numerosas e mais poderosas do que tu; e o Senhor teu Deus as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas concerto, nem terás piedade delas”. Mais a frente Deus promete que, se os israelitas não cumprirem a Sua ordem, serão consumidos (v.v. 1-4).

Outros textos existem que rezam pela mesma cartilha da impiedade। Tais textos sempre foram evocados para ratificar o direito do suposto “povo de Deus” à terra da Palestina.

Uma pergunta para reflexão; não para definir uma doutrina: O Deus que Jesus Cristo revelou assinaria uma ordem de destruição direta e intencional de pessoas, usando como instrumentos de castigo outros humanos? Considere-se: pecado por pecado, qual nação estaria isenta de destruição?

Deve-se observar que os outros povos do tempo veterotestamentário também tinham esta mesma crença quanto aos seus deuses। Da mesma forma que Israel entendia que uma vitória sobre um outro povo era reflexo da ação do seu deus, os filisteus também assim o entendiam. Quantas vezes Israel foi subjugado pelos seus vizinhos, estes tantas vezes consideraram Javé derrotado pelos deuses estrangeiros. Israel não admitia a derrota de Javé e, portanto, racionalizava dizendo que a derrota devera-se a algum pecado entre o povo. Quantos não sofreram nestas circunstâncias, por haverem quebrado determinadas prescrições que refletem puramente o nível de compreensão que se nutria sobre Deus?

Não há aqui anulação da verdade de uma inspiração da Bíblia। A Bíblia pode ser considerada um livro também divino, no qual se revela que os homens são capazes de exteriorizar a sua índole má e de dizer que Deus a subscreve. Não só os israelitas assim fizeram, como também os seus vizinhos. Nos anos 80 do século XX houve exemplo disto em Saddan Hussein. Sua guerra contra o Kawait era uma guerra santa; era uma guerra de Alá. O cúmulo da idiotice.

Será que a divindade cristã está condicionada por caprichos humanos? Será que Ela se deixa envolver por sentimentalismo imaturo e inconsequente? Quando se diz que Javé tem o controle de tudo, afirma-se que Ele não se deixa levar pela contingência de Suas criaturas; antes sabe muito bem como chegar aos seus objetivos। Ora, se seres humanos limitados conseguem dirigir a outros semelhantes, seria o Criador menos maduro em tal empresa, revelando impotência, através da manifestação de ira?

Deus não seria tolo para disciplinar as suas criaturas como se ele mesmo fosse uma mera imagem do humano। Está escrito que Ele não é homem para que se arrependa. Seria Ele levado a agir por condicionamentos que podem levar alguém a agir cônscio de estar correto, embora descubra mais tarde que errou? Por que seria Ele então levado pela ira, levando-se em conta que ninguém poderia dEle se defender? Seria muito cômodo para mim, eu me irar contra quem não pode de mim se defender.

O momento da humanidade, como sempre, necessidade de teólogos que estejam abertos para reverem os seus princípios hermenêuticos; não permitindo que as particularidades histórico-culturais, façam-nos atribuir a Javé ações e sentimentos humanos condicionados e mesquinhos.

WM

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