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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

DESCARTES

UM EXEMPLO DE ESPÍRITO FILOSÓFICO

 

O Discurso do Método de René Descartes aborda a decepção deste filósofo ante o conhecimento até então adquirido pela humanidade; aborda as aventuras do filósofo em busca da verdade; como também deixa transparecer a altivez do filósofo. Além da abordagem objetiva, O Discurso do Método destila a retórica praticada por Descartes.

Descartes é um exemplo fidedigno de alguém que encarnou o espírito filosófico, servindo de estímulo para que ninguém receie quebrar as cadeias dos preconceitos em tantos já enraizados e que, no mais das vezes, prende o espírito em um senso comum ridículo.

 

O ITINERÁRIO À LIBERTAÇÃO DA TRADIÇÃO

No primeiro momento Descartes relata como acontece a sua desilusão com o conhecimento aprendido. No 5º § desenvolve-se a abordagem sobre a instrução de Descartes. Referencia-se ao estudo das letras desde a infância. Os primeiros oito enunciados expressam sua esperança inicial e sua frustração, descobrindo-se ignorante (enunciado nº 8). Mesmo tendo estudado na melhor das escolas, não se sentia satisfeito. Percebe-se nisto o espírito inquieto do filósofo.

Descartes cita elementos do seu percurso de instrução, como a melhor escola e Exercícios com os quais se ocupam as escolas: línguas, fábulas, leitura de todos os bons livros, oratória, poesia, matemáticas, teologia, filosofia, jurisprudência, medicina e outras ciências.

Depois de toda uma maratona acadêmica chega Descartes à conclusão de que "não havia doutrina no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir" (5º §, enunciado nº 20).

Descartes continua insistindo na absorção do conhecimento estatuído. Entendia a importância do aprendizado das línguas; entendia que o espírito se desenvolve com as realizações históricas. Não ignorava a importância em geral das ciências.

Mesmo entendendo certo valor do conhecimento, chegou um momento em que Descartes julgou já ter gasto bastante tempo com o estudo das realidades por ele conhecidas: línguas, oratória, poesia, matemáticas, teologia, filosofia e outras ciências. (7º § Enunciado nº 1).

Descartes chega ao ponto do extravasamento. "Aqui está por que apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. (13º §, enunciados nºs 1 e 2).

Observa-se que Descartes é bem explícito quanto a "sair da submissão aos professores". Aqui é o ponto máximo: estar disposto a romper com os argumentos de autoridades que direcionam a sua vida. Daí parte para a busca de sua própria compreensão.

 

A AVENTURA É O CAMINHO DO FILÓSOFO

Depois de sua desilusão com o conhecimento estabelecido, Descartes resolve viajar pelo mundo. Não se contenta com o mero conhecimento de sua cidade. "Aproveitei o resto de minha juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para frenquentar pessoas de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas (propósito)".

Depois de suas viagens, Descartes chega à conclusão de que... "a verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos." (Enunciado nº 1-3).

"Porém, após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, tomei a decisão de estudar também a mim próprio [...]. Isso, a meu ver, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros." (Enunciado nº 13-15).

Na verdade, Descartes reconheceu a máxima socrática: "conhece-te a ti mesmo". A partir de si mesmo Descartes chega ao objetivo de sua investigação.

Mesmo havendo a possibilidade de uma aventura pelos lugares da terra, na verdade, a aventura maior é no mundo da reflexão subjetiva. O filósofo é aventureiro. Não se fixa num único terreno. Sente o desejo de desbravar terras desconhecidas do conhecimento.

 

A ALTIVEZ DO FILÓSOFO

O filósofo precisa mesmo ser altivo; querer alcançar regiões da reflexão que outros ainda não alcançaram. Para isto não deve ter medo de ferir a falsa moral da sociedade, podendo até parecer, para alguém, arrogante, orgulho, presunçoso ou adjetivo que o valha. Afinal, a franqueza em dizer o que se pensa pode parecer a muitos arrogância.

Descartes quer conhecer o todo possível. Não se contenta com particularidades. Isto é patente no filósofo. A filosofia busca a compreensão da totalidade. As particularidades que fiquem para as ciências particulares. Embora o Método Cartesiano parta do princípio analítico: compreender as partes para alcançar o todo. A filosofia é altiva e não se contenta com o pouco das particularidades. Descartes não se contenta com o mero conhecimento de sua cidade. Ele quer conhecer o mundo; a totalidade. Lança-se então a várias experiências. Pena é que tenha morrido relativamente cedo, em virtude da pneumonia que o atingiu.

 

A RETÓRICA DE DESCARTES

A apresentação que alguém faz de si mesmo sempre carrega algo que revela suspeita. Ao Apresentar-se como estudioso das matemáticas, teologia, filosofia, letras, oratória, ciências; ao se revelar como alguém que deseja aprender: "eu sempre tive um enorme desejo de aprender..." (13º §, Enunciado nº 14); ao reconhecer a sua ignorância: "Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito... senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância." (5º §, enunciado nº 8); como se não bastasse, passa uma desconfia de si mesmo quanto a uma consciência de poder estar equivocado: "Contudo pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor." (3º §, enunciado nº 1 – 4). Cumula ainda o seu Discurso expressando que tem um objetivo modesto, não impondo o seu método: "Meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha." (4º §, enunciado nº 1 – 2). Mostra-se conhecedor do conhecimento da época; diz ter estudado na melhor escola; diz ter lido todos os bons livros; mostra-se um homem viajado.

O argumento por traz está claro: não há como desconsiderar o meu método, o meu conteúdo. Todo o seu relato de como se processou a sua caminhada em busca do conhecimento pode valer como premissa para a conclusão: o meu método é o melhor e não há como desconsiderá-lo. O que não passa de uma premissa puramente retórica. O próprio fato de Descartes "aconselhar" a cada um a busca da própria verdade, dizendo que não se deve acreditar em tudo o que ele diz é uma medida retórica que ratifica o conselho dele. Pode parecer humildade ou que ele estar reconhecendo as suas limitações. Mas ele mesmo vem a dizer que o seu método é o melhor. Para ele, a verdade do seu método está sobre todos os outros. O conteúdo existencial pode atuar como indução retórica para alcançar o objetivo do filósofo. O fato é que Descartes logrou êxito. Passou a ser considerado como o pai da filosofia moderna.

Não se prescreve a retórica pela retórica. A retórica deve ser vista também como instrumento da pedagogia. Quando Descartes destila toda o seu Discurso, ele está passando também um estímulo psicológico ao seu leitor para que este se sinta apto e desarmado diante do conteúdo apresentado, o que facilitará o aprendizado e a compreensão do exposto pelo filósofo.

Descartes trabalha retoricamente não só com o lógos, mas também com o ethos. Neste sentido, significa que Descartes apresenta seus "motivos" ou "causas" de sua conduta, ou mesmo das "forças" que determinaram o seu caminho, que não poderia ser outro, senão aquele que fez chegar ao conhecimento do método por execelência.  Para ir à razão do leitor, apresenta a si mesmo (4º §, enunciado 5: "não proponho este escrito senão como história - e esta é a sua história).

Do modo como Descartes expõe as suas idéias, capta-se a altivez filosófica, fruto da sinceridade. Seria mais danoso para ele ser meramente retórico, elogiando os métodos já existentes e conhecidos, e depois sair com: "a minha idéia é melhor". De outro modo, ele foi muito direto e transparente:

 

... observando com olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, ..., atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi"[1]

 

Não seria possível alguém falar como Descartes falou, tendo sinceridade em seu coração? Afinal, posso ser bastante transparente para dizer o que entendo sobre um assunto sem precisar de uma falsa modéstia que me faça parecer humilde só para ser aceito e agradável.

Aí está Descartes através dos séculos. Mais ou menos forte hoje, valeu ou não valeu a sua retórica?



[1] René DESCARTES, Discurso do Método. In: Descartes, Pensadores. Pág 36.

sábado, 15 de agosto de 2009

SALVE O FINADO PAUL TILLICH

Antes de ler do texto a baixo faz-se necessário contextualizar-se com o PPS contido no endereço:  https://drive.google.com/file/d/0B3Zzvnk3Ec1KaXhTcWQtSFdJMzg/edit?usp=sharing
Se você analisar o PPS ententerá melhor o que é comentado neste texto.

Há um grande problema nas "mensagem em cápsulas", via Internet. A grande maioria delas está totalmente descontextualizada. E ainda procura ridicularizar o que não é conhecido por parte de quem as cria. Pior ainda é que a mensagem desses PPSs revela uma piedade ridícula e caricaturizada por parte do religioso envolvido.

Neste caso em particular, mostra como é um problema considerável ter religiosos sem base teológica a presenciar palestra de alto nível acadêmico. "Têm ouvidos, mas não ouvem". É como se um estudante do Ensino Fundamental presenciasse uma conferência sobre física quântica, proferida por um cientista. Imagina a interpretação do tal estudante no final da palestra!


O mais interessante é que o questionamento do "senhor negro", como é chamado no PPS, só ratifica o que Tillich disse, se é que disse. Toda a experiência do negro é de uma perspectiva puramente existencial. É claro que Tillich jamais conheceria o Jesus do "senhor negro". Como é claro que ninguém jamais, por mais que queira, conhecerá o Jesus de quem quer que seja. Cada humano experiencia um Jesus diferente do Jesus de outros humanos. O religioso também nunca teve nem terá provas históricas da ressurreição de Jesus. As supostas provas são puramente literárias, contidas num livro que não foi escrito para provar a ressurreição de Jesus, mas para apenas relatá-la. Tudo o que o religioso tem é apenas a fé no que leu e ouviu de outros. Isso me faz lembrar a letra da música "Alagados" da banda Paralamas do Sucesso.

Se Tillich disse mesmo o que se diz que ele disse, ele o disse da perspectiva existencialista. E o "senhor negro" expressou apenas o lado existencial de sua relação com o "seu" Jesus. E é nesse sentido que a Teologia Existencialista diz que Jesus ressuscitou: sentido puramente existencial. E continua ressuscitando pelos séculos a fora, na vida de todos aqueles que se encontram com ele. Na Teologia Existencialista não há uma preocupação com a ressurreição histórica. Há, sim, um ensino voltado para a realidade da ressurreição no presente do discípulo. Tillich acredita na ressurreição, sim. Mas nesse sentido existencialista. Por isso que, se o criador do PPS queria desmerecer Tillich, o tiro saiu pela culatra. O que houve mesmo com a intervenção do "senhor negro" foi a ratificação da Teologia Existencialista.

Muitos de uma tradição estão acostumados a só pensar de uma forma, achando que não há outras interpretações da ressurreição de Jesus.
Tudo é uma questão de pressupostos. A Teologia Existencialista fala sobre a ressurreição de uma perspectiva diferente da Teologia Tradicional. Assim como a visão do sol no nascente não é a mesma visão no poente; embora o sol seja o mesmo em ambos os fenômenos. Os leigos, por sua vez, que não conhecem nem mesmo a teologia conservadora, não sabem compreender os pressupostos da Teologia Existencialista. Disso partem tantos "maleditos" contra uma perspectiva teológica também pertinente.
Paciência! Salve o finado Paul Tillich.
Revisado e atualizado em 01/09/2014.
Willians Moreia Damasceno

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

DIVISÃO FUNDAMENTAL QUE DEFINE A NATUREZA SEGUNDO JOÃO ESCOTO ERIÚGENA*

João Escoto Eriúgena, filósofo, irlandês, do século IX, foi um dos mais brilhantes pensadores do período escolástico.
 
            O Livro I do Periphiseon inicia-se com o Mestre (Eriúgena) apresentando o seu conceito de natureza. Na segunda fala do Mestre o texto assim reza: "Como dizíamos, pois, natureza é o nome geral apropriado para tudo o que é e tudo o que não é" (ERIÚGENA, 1984. Pág. 45) Por tudo o que é entende-se que se refere às coisas que podem ser percebidas pelo espírito ou que podem ser apreendidas pela inteligência humana. Por tudo o que não é pode-se entender que se refere às coisas que não podem ser alcançadas pela inteligência humana. De imediato, capta-se o caráter epistemológico da definição de Eriúgena sobre a natureza. Na verdade, depreende-se do Periphiseon que a natureza é pensada como conhecimento e ignorância. A natureza é tanto as coisas que são (o que pode ser conhecido), quanto as que não são (as coisas que a inteligência não tem acesso).
            A partir desta definição da natureza, Eriúgena, seguindo o método dialético, procede a dois movimentos: divisão e unificação da natureza. Compreende-se assim os dois termos latinos que vão caracterizar a obra: processio e reversio (ERIÚGENA, 1984. Pág. 21). Sendo o primeiro movimento condição do segundo.
            Eriúgena apresenta "cinco modos de interpretação" da primeira e fundamental divisão da natureza. O primeiro modo de interpretação diz respeito ao que pode e ao que não pode ser percebido. Diz o Mestre que tudo quanto é percebido pelas sensações ou pela inteligência é o que é (as coisas que são). Aquilo que escapa a todo o sentido e também ao intelecto e razão é o que não é (as coisas que não são). Neste particular, o que se pode afirmar das coisas que são é apenas que são; nunca o que são. Assim, o conhecimento refere-se às coisas que são e a ignorância às coisas que não são. Deus, por sua vez, "encontra-se" na dimensão da ignorância humana; na "dimensão" do não-ser. O que na verdade se percebe, segundo Eriúgena, são os acidentes e não a essência da realidade.
            O segundo modo de ser e não-ser refere-se "às ordens e diferenças da natureza criada" (ERIÚGENA, 1984. Pág. 48). Em outras palavras, desde as coisas criadas mais excelsas até àquelas mais inferiores há uma escala de afirmação e negação de umas em relação às outras. Segundo o Mestre, a afirmação do inferior é a negação do superior; a negação do inferior é a afirmação do superior. A afirmação do homem é a negação do anjo, enquanto que a negação do homem é a afirmação do anjo. Em síntese, o que se afirma de um, nega-se do outro. Na verdade, conhecimento e ser dependem da afirmação. Parece que neste ponto Eriúgena se refere exclusivamente às criaturas intelectuais, de vez que o afirmar e o negar é da esfera do homem. Fica claro assim, que o ser atém-se ao que é afirmado e o não-ser ao que é negado.
            O terceiro modo de interpretação atém-se aos fenômenos da natureza e as causas ocultas dos mesmos (ERIÚGENA, 1984. Pág. 49). Tudo o que aparece, tudo o que se manifesta à compreensão do homem: a realidade dos efeitos, seja em forma ou matéria, lugar ou tempo é o que é; o que está oculto (na profundidade da natureza) é o que não é. O exemplo dado está em consonância com a teoria das idéias de Platão. Existe uma idéia de humanidade da qual todos os homens particulares participam e são o efeito. Esta idéia está oculta. Daqueles homens que aparecem no tempo, lugar, etc., diz-se que são. Dos que ainda não apareceram, diz-se que não são. Encontram-se ocultos na imagem divina. O exemplo da virtualidade da semente, sugestivo por demais, vem ilustrar o ensino do Mestre. Na semente, o potencial é não-ser. Só se torna ser quando manifestado e perceptível na fauna.
            O quarto modo de interpretação de ser e não-ser refere-se ao que é fixo, estabelecido e à variabilidade e à multiplicidade contidos na natureza (ERIÚGENA, 1984. Pág. 50). Só é aquilo que se compreende pelo intelecto. Há coisas que existiram e não existem mais. Realidades que são num momento, mas em outro já não o são mais. O exemplo dado é o de corpos que nascem e depois se corrompem. O processo de corrupção já implica no não-ser. Atém-se ao movimento que acontece na natureza, a qual se permite uma dinâmica entre o ser e o não-ser. Ou seja, o que é multiplicidade é o não-ser. O particular é o não-ser. O universal é o ser. Este é o que pode ser conhecido. Por isso é. Pois conhecer é ser.
            E o quinto modo de interpretação de ser e não-ser refere-se ao ser humano (ERIÚGENA, 1984. Pág. 50). O homem perdeu o ser quando de sua queda e seu afastamento de Deus. De sorte que o homem não é enquanto não passa pela restauração que a graça de Deus lhe outorga através de Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus. A linguagem bíblica, na carta paulina aos colossenses, elucida bem esta compreensão quando diz que Deus "nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor" (Colossenses 1, 13). Estar nas trevas é estar no não-ser. Passar para o reino do Filho do seu amor é estar no ser. Neste sentido, o estado de pecado é não-ser. A ignorância acerca de Cristo é o não-ser. O homem só passa a ser quando é recuperado em Cristo. Assim então ele recupera a dignidade de imagem divina na qual havia sido criado.
            Todo este discurso eriugeniano parece reportar a uma compreensão platônica do ser e do não-ser, elaborada por Platão em seu diálogo, "O Sofista", quando se percebe que ser e não-ser atém-se a condições de relação. Pela teoria platônica, todo ser é o não-ser de alguma coisa, e este não-ser tem mais realidade do que aquele outro ser. Ora, pela perspectiva eriugeniana, só o que o intelecto e os sentidos apreendem pode ser dito como ser. Tudo o que escapa à compreensão humana é dito como não-ser. Daí entender porque Deus é não-ser. E aqui é bom que se frise o primeiro modo de interpretação de ser e não-ser. Neste particular, o que se pode afirmar das coisas que são é apenas que são; nunca o que são. De Deus se afirma apenas que é, nunca o que é. Assim, não só epistemológica, mas também ontologicamente, a ignorância é maior do que o conhecimento. O ser é o que se enquadra nas categorias aristotélicas e o não-ser é o que escapa às mesmas (GILSON, 1995. Pág. 250).
            Assim estabelece Eriúgena a sua definição de Natureza. Partindo da mesma, vai elaborar todo um movimento de divisão e analítica mostrando como tudo, num processio e num reversio, começa em Deus e volta para ele mesmo. Ser e não-ser constituem uma unidade. A unidade da natureza.

Willians Moreira
Referências Bibliográficas:

ERIÚGENA, Juan Escoto. División de la naturaleza – Periphiseon. Libro I, Barcelona. Ed. Orbis, 1984

GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo. Martins Fontes. 1995. 949 Págs.

sábado, 8 de agosto de 2009

A ÁRVORE DO BEM E DO MAL

Machismo e Pessimismo no Relato da Queda do Homem

 

   E a Adão disse Deus: "Você deu ouvidos à sua mulher e comeu aquela fruta que Eu disse para não comer. Por isso, lanço maldição sobre a terra. A vida toda você terá de lutar para conseguir o ganha-pão. Ela produzirá também espinheiros e ervas daninha; e você comerá verduras. A vida inteira você vai suar para dominar a terra, até o dia de sua morte". Assim, o Senhor Deus mandou o homem embora do jardim do Éden (Gen. 3:17-34)[1]

 

            De início, um aperitivo.

            "Árvore do bem e do mal" é uma figura bem sugestiva para se falar sobre realidades que despertam os nossos desejos. Da mesma forma, a figura do Éden estimula a reflexão sobre situações vividas pelos humanos, as quais, depois de existenciadas, reportam-nos àquele dito popular: "eu era feliz e não sabia". É isso mesmo! Às vezes, perdemos os nossos Édens por desejarmos o fruto de alguma "árvore do bem e do mal". Essa figura pode ser interpretada como um ponto referencial; algo que aponta para alguma tomada de compreensão; nada necessariamente histórico. Ou seja, podemos ter necessidade de alguma referência que nos situará num estado que não gostaríamos de alcançar, mas só o percebemos depois que alcançamos o tal estado. Às vezes somos levados a desejar algo que, pela nossa interpretação, dar-nos-á uma melhor condição de existência, mas não percebemos que também entraremos numa nova condição que nos fará rejeitar o antigo desejo de chegar aonde chegamos. O curioso é que todos têm "árvores do bem e do mal". A questão é: como alcançarmos um entendimento de cada situação para não sermos pegos de surpresa em algum momento? Essa é uma abordagem de reflexão sobre o texto de Gênesis certamente cabível.

O Gênesis diz que "a mulher viu que a árvore era bonita e que as suas frutas eram boas para comer" (3, 6). O papel dos olhos reporta-nos ao universo da percepção. No momento em que a mulher acreditou na sugestão, a "árvore" adquiriu um colorido atraente e na verdade pareceu boa. Esse é um plano explorado consideravelmente pela propaganda. Ela tem o poder de nos fazer ver o que não vemos ou não precisamos ver. O livro de Provérbios 14, 12-13 diz: "Há caminhos que a alguns parecem retos, mas no fim conduzem à morte". A ilusão é tão forte e o Éden se vai. Depois não há mais condições de voltar ou recuperar o jardim-paraíso, pois são levantadas barreiras que não permitem mais a recuperação do "Éden". O problema é que o significado de tal Éden só é percebido depois. Qual não foi o sofrimento de Adão e Eva ao relembrarem o Éden, diante dos espinhos que passaram a enfrentar. E aqui lembramos os lamentos de tantos: "Bem que meus pais diziam".

É necessário que tenhamos cuidado com nossas decisões futuras para que não estejamos escolhendo a "árvore do bem e do mal". Essa "árvore do bem e do mal" pode ser um casamento, uma profissão, uma casa, uma nova situação. Há certas decisões que não precisamos tomar.

 

Agora, o grosso da questão.

Além dessa interpretação existencialista que este texto possibilita, existe a possibilidade de interpretarmos o texto de Gênesis, capítulo três, como reflexo do machismo e do pessimismo judaico, respectivamente aplicados aos humanos e à terra; ou seja, uma interpretação pelo viés puramente cultural. Por esse ângulo, per­cebe-se a sagacidade do texto contra a mulher quando as palavras "você deu ouvi­dos à sua mulher" são colocadas na boca do Criador. Num primeiro momento, no qual a mulher abriu sua boca, suas palavras enredaram o homem no caminho da desobediência. E qual foi o resultado de o homem dar ouvidos à mulher? Segundo as palavras colocadas novamente na boca do Criador: "maldição sobre a terra".

O texto da queda do homem apresenta dois pontos cruciais para uma compreensão antropológi­ca da cultura bíblico-judaica. Primeiro, apresenta uma visão machista que enquadra a mulher em um papel de veículo da tentação para a desobediência; segundo, sugere uma visão pessimista de uma terra amaldiçoada. Na verdade, essas duas visões permeiam o texto bíblico de uma forma contundente. Milhares de exemplos podem ser citados na Bíblia, mos­trando como a mulher é mesmo considerada como objeto e como ser aviltado, cau­sador de transtorno ao homem. Refletindo o preconceito contra a mulher, é curioso que a trama do texto não apresenta o homem como foco da atenção da serpente?

Séculos de tradição judaica criaram na mente do homem judaico um condicionamento que aparece refletido em toda a sua literatura bíblica. Literatura esta que é marcadamente escrita por homens. Esta tradição literária judaica foi mordaz com a mulher, condenando-a a uma quase marginalização, senão um isolamento. Paulo de Tarso, que nunca deixou de ser judeu quanto a muitas de suas tradições, escreveu a seu discípulo, Timóteo, dando-lhe uma orientação que reflete a realidade da mulher hebréia:

 

A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em trans­gressão (I Tim. 2, 11-14).

 

Silêncio e sujeição: duas palavras que resumem a situação da mulher dian­te do homem. Silêncio porque, quando falou pela primeira vez, levou o homem à desobediência. Por isso deve estar calada. Sujeição porque, uma vez enganada, caiu em transgressão. O transgressor deve ser punido. É grave a situação. Sem contar que o texto apresenta as dores de parto como também resultado do castigo sobre a mulher. É estigma demais para um ser por tanto tempo oprimido.

Dois agravantes mais são postos pelo texto: Primeiro: Paulo hierarquiza a re­lação entre o homem e a mulher, pois que primeiro foi formado Adão e depois Eva. A ideologia é que, por ser primeiro formado, o homem é a autoridade. Segundo: porque foi a mulher quem caiu em transgressão. E, caindo em transgressão, arrastou o homem consigo. Ou seja, biológica e moralmente a mulher está fadada a ser menor do que o homem. Sobre a mulher pesa a vergonha de ter sido enganada e ter transgredido. E, como se não bastasse, por ter sido enganada, revelou-se inapta para merecer confiança. Daí à tradição judaica não dar crédito a uma mulher como testemunha foi um passo curtíssimo.

Por que o texto diz que Adão não foi enganado? Porque Paulo crê que Eva não enganou a Adão. E tem sentido, sim. Adão deveria ter con­trole da sua situação, afinal ele tinha ciência da ordem de Deus. A partir destes pressupostos, quem mais pe­cou? Digo: Adão, e não Eva. Uma pessoa é enganada por outra quando sua ca­pacidade de discernimento é suplantada pela sagacidade de alguém. Na verdade, Adão não foi enganado. Ele desobedeceu a Deus consciente do ato que praticava. Sejamos razoáveis: quem merece pena maior? Aquele que praticou uma ação pensando que estava a fazer o melhor, ou aquele que prati­cou a ação sabendo que estava mesmo a desobedecer? Percebe-se, no entanto, que toda a responsabilidade da transgressão para efeito de punição social foi colocada sobre Eva. Por que tal ofensiva à mulher? A explicação para tal deve-se à visão de uma cultura machista em que o homem é o senhor e a mulher é um mero objeto dos desejos masculinos. Deste ponto a escrever uma lenda na qual palavras são colocadas na boca de uma divindade, condenando a mulher, o espaço é ínfimo. O re­sultado é uma vituperação milenar sobre a mulher. Aquela que seria auxiliadora tornou-se a vilã.

Esta visão é caótica, deprecia a mulher e não merece o aval de ninguém

No decorrer da história encontramos muitos que ensinaram uma visão semelhante a respeito da mulher. Aristóteles entendia que a mulher é um homem incom­pleto (Política - Livro I, cap. II, § 12)[2]. No seu Tratado da geração dos animais [3], recebe destaque o papel gerador e ativo do macho na procriação. Este princípio geral da natureza[4], Aristóteles ilustra-o com provas tiradas da fisiologia da união sexual. Por não emitir esperma a mulher é inferior[5]. Para Aristóteles "as fêmeas são naturalmente mais fracas e mais frias do que os machos; pode-se crer que isto é uma espécie de inferioridade de natureza do sexo feminino".[6] O professor de Aristóteles, Platão, foi mais longe no rebaixamento da mulher. Professor e aluno acreditavam na inabilidade natural da mulher para o exercício de funções de mando[7]. Coisa que a contemporaneidade contradiz perfeitamente.

Agostinho, o bispo de Hipona, ensinava que

 

A imagem de Deus reside no homem, de modo a que ele seja tido como que senhor; de onde alguns deduzem que o homem tem o império de Deus, como seu vigário [...] Mas a mulher não é feita à imagem de Deus (Decreto, 2. p., C. 33, q. V, c. 13)[8].

 

O pressuposto é que Adão saiu de Deus, mas Eva saiu de Adão. Ela não é a imagem nem de Adão nem de Deus.

            Tomás de Aquino partilhava dos pontos de vista de Aristóteles sobre a condição feminina. Na Summa theologica [9], Tomás diz

 

[...] que, pela natureza particular, a mulher é algo de deficiente e ocasional. Pois a virtude ativa que reside no esperma do varão, tende a produzir um efeito semelhante a si mesmo, de sexo masculino. Porém, se foi gerada uma mulher, isto aconteceu por causa de debilidade da virtude ativa, ou por alguma indisposição, ou ainda por alguma mudança extrínseca, como os ventos do sul, que são úmidos.

 

Uma visão que coloca a mulher numa condição de infe­rioridade em relação ao homem merece desabono total. Não comungo com a visão bíblico-judaica, nem com estes outros doutrinadores históricos sobre a mulher.

Portanto, abaixo todos os que usam o nome de Deus para cometer injustiças contra a mulher.

A outra problemática do texto de Gênesis é a visão pessimista de uma terra amaldiçoada. O texto é bastante incisivo ao colocar na boca de Deus as palavras conde­natórias: "Porquanto deste ouvidos à tua mulher; maldita é a terra por causa de ti" (Gen. 3, 17). Essa maldição está também refletida no texto bíblico da 2ª Carta de Pedro, capítulo 3, 10 a 12:

 

10 Mas o dia do Senhor virá como o ladrão em a noite, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se abrasarão e desfarão, e a terra, e todas as obras que nela há, se queimarão.

11 Pois como assim seja que todas estas coisas se desfazem, quais vos convém a vós ser em santo trato, e piedade?

12 Esperando, e apressando-vos para a vinda do dia de Deus, em que os céus, sendo incendiados, se desfarão, e os elementos, sendo abrasados, se fundirão (derreterão).

 

Este texto refere-se ao dia do juízo final. Não só homens serão julgados mais a própria terra, por conta da maldição, passará por purificação pirotécnica. Na verdade esse pessimismo mais reflete uma miopia quanto à natureza do universo. Explicar fenômenos naturais de forma mítica contribui para neurotizar os humanos que se deixam levar por essas explicações. Que a Terra será torrada não é nenhuma novidade para os cientistas. Esse fenômeno terá lugar quando chegar o dia em que a nossa estrela maior se tornar uma Nova. E isso é fenômeno natural; não se trata mesmo de maldição divina.

De outra forma, querer explicar os espinhos como castigo de Deus é ser no mínimo infantil, não querendo admitir que é da natureza dos seres vivos a busca da autoproteção. Que jardim é esse que produz flores sem espinhos? Por que rejeitar a existência dos contrários? Por que ter aversão aos espi­nhos, se estes são as defesas que a natureza providenciou para algumas de suas criaturas? O texto de Gênesis, nos termos desta abordagem, mais parece um reflexo de um homem que nunca está satisfeito diante das dificuldades da vida? Por que não vê as dificuldades com ou­tros olhos? Como, por exemplo, com os olhos de Provérbios 15: 13,15; 17, 22, que diz que somos aqui­lo que projetamos na nossa subjetividade:

 

O coração alegre anima o semblante, mas a preocupação do coração aba­te o espírito. O coração sensato procura o saber, mas a boca dos insensatos ocupa-se de tolice. Todos os dias do oprimido são maus, mas um coração feliz é um festim pe­rene.

 

Conhecemos o bem e o mal quando passamos a desfrutar das amarguras de uma nova situação e reconhecemos que uma situação anterior era melhor.

            Se vamos tirar proveito do texto de Gênesis, por que não o lermos pelo prisma do otimismo? A terra é um lugar maravilhoso e digno de nossa presença. O homem foi levado a um novo mundo. Ele foi levado a não viver na limitação de um suposto jardim e em uma suposta inocência, muitas vezes, se não todas, irmã da ignorância. Seria a inocência melhor do que as novas situações que abriram os olhos hu­manos, possibilitando-lhes progressos?

Graças a Deus Adão ouviu a sua mulher.

Teria Jesus sido crucificado se Pilatos tivesse ouvido a sua mu­lher (Mt. 27, 19)? Mas dirá o opositor: "Era necessária a morte de Jesus. Ele é a nossa salvação da condição criada com a queda do homem no Jardim do Éden". E eu respondo: Considere-se esta ideologia como também resultado da mentalidade judaica, criadora do "mito da queda". Quantos males foram e ainda serão desencadeados por essa mentalidade?

Willians Moreira

[1] BLH.

[2] ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2002.

[3] Ed. util. Traité de la génération des animaux, ed. J. Barthélemy-Saint Hilaire, Paris, 1887.

[4] I, 2, 2-5; I, 14, 15-18; I, 15, 4-8; II, 5, 6-7.

[5] I, 13, 12-13; I, 14, 2-3, 15-18; II, 5, 20.

[6] IV, 6, 7.

[7] II, 5; II, 6.

[8]  S. Agostinho, Quaestiones veteris et novi test., c. 106.

[9] Summa theol., I, 92.1 ad 1.