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quarta-feira, 14 de março de 2012

CONCLUSÃO PARCIAL SOBRE O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ

 

Após as abordagens sobre "O Problema do Mal em Leibniz", chega-se à conclusão de que Leibniz não resolveu o problema do mal, antes, de certa maneira, deixa-o agravado. Leibniz repetiu o que séculos anteriores testemunharam ante a tentativa de responder a questões atinentes ao fenômeno do mal, mas não sem dar sua contribuição criativa em muitas considerações. Embora as contribuições de Leibniz para a solução do problema, via de regra, sejam mais uma tentativa de acomodação ao entendimento da cristandade do que irrefutáveis respostas filosóficas, o filósofo conseguiu atiçar a reflexão, pois suas conclusões são, sem dúvida, muito instigantes. Leibniz sustentou a teologia tradicional com uma filosofia que se ajoelhava ante as opiniões dominantes, respaldadas pelos governantes políticos e religiosos. Assim, o problema do mal quedou, mais uma vez, sem resposta definitiva. O que não é de se estranhar. Em todo o sistema leibniziano, patenteia-se a tentativa de acomodar a sua filosofia à sua teologia. Ou, como era seu desejo, compatibilizar fé e razão. Sua teologia e sua filosofia, fundadas em pressupostos cristãos e em pressupostos filosóficos antigos, não se prestam suficientemente a uma fundamentação filosófica para à questão do mal, pois que se apresentam apenas "recitando" a revelação com um filosofês arremedante de uma teologia tradicional.

 Willians Moreira Damasceno
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (A bibliografia aqui apresentadas refere-se a todas as postagens sobre "O Problema do Mal em Leibniz")

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

AGOSTINHO. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.

AQUINO, São Tomás. Suma teológica. I Tomo. São Paulo: Faculdade de Filosofia "Sedes Sapientiae", 1954.

CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.

ESTRADA, Juan Antônio. A impossível teodicéia: a crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulinas, 2004.

GERHARDT, C.I. (org.) Die Philosophischen Schriften von Leibniz. 7 vols. Hildesheim: Olms. 1996

JOLLEY, Nicholas. The Cambridge Companion to Leibniz. New York/USA: Cambrigde University Press,1998.

LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2.ed. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977. 357p.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm . Discurso de metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 127-129; p. 144-146.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

LEIBNIZ, G. W. Sobre a liberdade (De Libertate). (1689?). http://www.leibnizbrasil.pro.br/de_libertate.htm. Acesso em 08/03/2006.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Monadologia; discurso de metafísica e outros textos. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novos ensaios sobre o entendimento humano. In. OS PENSADORES. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996.

LEIBNIZ, G. Wilhelm. Theodicy: essays on the goodness of God, the freedom of man, and the origin of evil. LIBRARY OF CONGRESS CATALOGING-IN-PUBLICATION DATA - PROJECT GUTENBERG. http://www.gutenberg.net – acesso em 05 de abril de 2006.

LUCIEN, Jerphagnon. História das grandes filosofias. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MARQUES, Edgar. Necessidade e contingência em Leibniz e Arnauld. In Kriterior, nº. 98, Jan/98 a Jun/98, p. 212-226. Belo Horizonte, 1998.

MURRAY, Michael. Leibniz on the problem of evil. In. Stanford Encyclopedia of Philosophy. http://www.plato.stanford.edu/entries/leibniz-evil/ – Copyright © 2005 (cópia da Internet em 10/04/2006).

PLOTINO. Enneadas. Milano: edizione Bompiani Il Pensiero Occidentale, aprile 2000.

RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinhas, SP: Papirus, 1988. 53 págs.

RUSSEL, Bertrand Arthur William. A filosofia de Leibniz: uma exposição crítica. São Paulo: Editora Nacional, 1968.

RUTHERFORD, Donald. Leibniz and the rational order of nature. New York/USA: Cambrigde University Press,1998.

terça-feira, 13 de março de 2012

O MAL AGRAVADO PELO PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO

CONTINUAÇÃO DO TÍTULO " O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ"


O MAL AGRAVADO PELO PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO

Os Princípios da Filosofia ditos a Monadologia estabelecem que as mônadas, mesmo qualitativamente diferentes, estão submetidas a uma hierarquia entre si. As mônadas aperceptivas,[1] dotadas de inteligência (almas humanas) (§ 63, 66, 82), estão acima das Mônadas que têm apenas sensibilidade (alma dos animais - § 63, 66) (LEIBNIZ, 1983). Mesmo não havendo contato entre as mônadas (§ 7º da Monadologia), existe entre as mesmas uma harmonia preestabelecida. Esta harmonia é sustentada pelo fato de que Deus regula as mônadas (§ 51) "desde o começo das coisas". No § 22, Leibniz diz que "todo estado presente de uma substância simples é uma continuação natural do seu estado passado, assim também o presente está prenhe do futuro". Este § e os §§ 26, 27, 28, 36 e 37 possibilitam considerações que complicam a compreensão de Leibniz sobre o livre-arbítrio e, consequentemente, a sua explicação para o problema do mal. O § 22 assevera que o futuro já está no presente. Os §§ 26, 27 e 28 trazem a ideia da consecução. Este fenômeno ocasiona atos, tantos nos irracionais como nos racionais, que são ditos por Leibniz como atos do "papel de um velho hábito ou o de muitas percepções fracas e repetidas". O que pode ser identificado com o fenômeno do condicionamento. Este fenômeno indica que muitas das ações são puros reflexos do passado. Leibniz diz: "Em três quartas partes das nossas ações somos exclusivamente empíricos". Logo, apenas uma quarta parte de nossas ações ficaria na dependência da razão, segundo Leibniz. Aquelas três quartas partes podem ser enquadradas facilmente no encadeamento que um presente já prenhe de um futuro tem estabelecido. Restaria uma quarta parte de nossas ações para serem explicadas quanto à harmonia preestabelecida. Leibniz no § 28 apresenta o procedimento do astrônomo, que é segundo a razão. O fato estabelecido é que mesmo os procedimentos segundo a razão, pelo conhecimento das verdades necessárias, estão sujeitos ao encadeamento da harmonia preestabelecida. De outra forma, aqueles procedimentos fugiriam ao controle do Ser necessário. Leibniz refere-se a uma causa eficiente do seu ato de escrever (Mon. § 36) que engloba "uma infinidade de figuras e movimentos presentes e passados", como também "uma infinidade de pequenas inclinações e disposições de minha alma presentes e passadas que entram na sua causa final". Assim, o todo dos procedimentos, por consecução ou por razão, está controlado pelo encadeamento estabelecido na harmonia universal. Isto posto, fragiliza-se a compreensão de livre-arbítrio que Leibniz tenta estabelecer, pois que toda ação humana atual encontra-se já gestada no passado recente e/ou remoto, visto ter sua causa eficiente em uma instância que não o agente humano que a pratica na atualidade. Mesmo que se diga que há uma participação sua na ação atual, não se anula o problema do livre-arbítrio, pois permanece a determinação inicial do Ser necessário de todo o encadeamento de "figuras", "movimentos", "inclinações" e "disposições" que agiram através dos tempos para se chegar à tal participação atual.

O livre-arbítrio de Leibniz e o livre-arbítrio Spinozista
Considerando ainda que o preestabelecido encontra-se em contingência devido às limitações das mônadas, não se faculta a liberdade aos Espíritos como se pretende no sistema leibniziano, segundo o qual serão prestadas contas dos atos da "Cidade de Deus": "Enfim, sob este governo perfeito não haverá boa ação sem recompensa, nem má sem castigo" (§ 90). Ora, se tudo está relacionado e uma ação presente é decorrente de uma sequência de momentos anteriores, nada acontecendo sem uma causa, de onde viria uma boa ou má ação, assumida por uma alma humana em determinado instante, desde que se considere uma série de acontecimentos anteriores (ao infinito?) que explicariam a escolha presente? Aqui não acontece meramente o fato de Deus saber que ação será praticada, boa ou má, pela alma humana. Deus só o sabe por que o futuro foi determinado por ele. O fato de a alma humana ignorar o futuro já a exime de responsabilidade de muitas ações más involuntárias, muitas das quais acontecem em funções de suas limitações de conhecimento. Considere-se ainda que a responsabilidade pelo que se pratica está mais em função das relações sociais. Dentro do próprio raciocínio de Leibniz, Deus não seria tão tolo para não levar em consideração que os atos de sua "Cidade" (Mon. § 90) devem-se aos procedimentos por "consecução" ou por "razão", encadeados no processo da "harmonia preestabelecida", decretada por Deus mesmo. Que responsabilidade tem a alma humana diante do Ser necessário, se suas ações estão determinadas por "figuras", "movimentos", "inclinações" e "disposições" que agiram através dos tempos, para operarem ações presentes?
Na sua compreensão de uma harmonia preestabelecida, Leibniz parece, de certo modo, concordar com Spinoza, mesmo que este não fale de tal harmonia. Comparando-se o pensamento de ambos, parece que Leibniz perde força no seu argumento em defesa do livre-arbítrio.
            O raciocínio de Spinoza, considerando a "ligação infinita de causas", parece mais coerente quando pensa sobre a questão da liberdade. Para ele, a ação de Deus procede de Deus mesmo de maneira necessária. Só se pode falar de liberdade divina entendendo-se por isso a ausência de toda coação exterior, tudo procedendo da simples "necessidade de sua natureza" (LUCIEM, 1992. Pág. 164). Portanto, falar de liberdade humana é inviável. O homem é uma "coisa natural" que, como todas as coisas, "segue as leis ordinárias da natureza". Dizer-se o homem livre, é ignorar causas que operam a sua vontade. Observe-se que, em Leibniz, o próprio Ser necessário tem sua vontade submetida às leis do seu entendimento. Pode-se entender que Deus é impotente para agir à revelia de seu entendimento. É da natureza do Ser necessário agir como age e não diferente. Portanto, Deus não pode escapar de Deus, assim como a alma humana não pode escapar de si mesma.
            Spinoza entende que o homem, alma e corpo, são dois modos finitos em correspondência no seio da totalidade infinita das ideias e dos corpos, dois modos finitos que são determinados a existir e agir pelos outros modos de mesmo atributo no seio da "ligação infinita das causas", tal como o mecanismo, no mundo dos corpos (LUCIEN, 1992. Pág. 165). Observe-se aqui a expressão "ligação infinita das causas". Parece compatível com as palavras de Leibniz na Teodiceia. Como também parece corroborado pelas palavras de De Libertate:

não há substância[2] individual criada tão imperfeita que não atue sobre todas as outras e que não sofra suas ações; [...] nem há qualquer verdade de fato ou qualquer verdade relativa às coisas individuais que não dependa da infinita série de razões (Leibniz, 2006. Pág. 01).[3]

            Portanto, estabelecida esta comparação entre o livre-arbítrio Leibniziano e o livre-arbítrio Spinozista, apresenta-se mais uma incompatibilidade entre o livre arbítrio e a harmonia preestabelecida no sistema de Leibniz.

Livre-arbítrio, futuros contingentes e o impedimento divino da prática do mal
            O ponto nº 13 do Discurso de Metafísica diz: "Toda a gente concordará estarem assegurados os futuros contingentes, visto Deus os prever, mas daqui não se segue a sua necessidade". Difícil provar que não. Para Leibniz, Futuros contingentes, como hábitos, disposições e inclinações compreendidos virtualmente na noção individual de cada homem, seriam como,

[...] veios na pedra [de mármore], que assinalassem a priori a figura de Hércules de preferência a outras, esta pedra seria mais determinada, e Hércules estaria como que inato nela de alguma forma, embora não se possa esquecer que se necessitaria de trabalho para descobrir tais veios, para limpá-los, eliminando o que os impede de aparecer. (LEIBNIZ, 1984, p.10).

Tais virtualidades, portanto, inclinam o homem a agir de um modo de preferência a outro. A respeito da distinção entre o certo e o necessário acerca da realização dos futuros contingentes, Leibniz diz:

[...] que é certo, mas não necessário o que sucede em conformidade a estas antecipações, e que se alguém fizesse o contrário não faria coisa em si impossível, embora fosse impossível (ex hypothesi) que tal acontecesse (LEIBNIZ, 1979,p.128).

Ora, a necessidade dos futuros está estabelecida, pois que Deus não meramente os prevê, mas, antes, decreta-os. Por isso são previsíveis e Leibniz mesmo assevera: "embora fosse impossível que tal acontecesse". A possibilidade de acontecer é puramente teórica. Na prática, não há como escapar. Os futuros contingentes do sujeito "César" não possuem realidade a não ser no entendimento de Deus, mas se realizarão visto Deus os decretar e incutir na natureza de César. "Poderia dizer-se não ser devido a esta noção ou ideia que César praticará tal ação, pois ela só lhe convém porque Deus sabe tudo" (LEIBNIZ, 1979, p.128), mas se da noção de um sujeito é possível extrair tudo o que lhe seja devido, faz-se necessário tornar real o que até então era virtual. Se for previsto por Deus que César se tornará ditador, será inevitável esta ação acontecer; caso contrário, a noção individual mostrar-se-ia falha e imperfeita.
            A revelação cristã que tanto Leibniz quis harmonizar com a razão, apresenta um Deus que age sempre para sua conveniência. O que não é de se estranhar, pois sua vontade é soberana, embora subjugada à sua razão. Assim, Leibniz esquece que a mesma Bíblia que ele cita em seu apoio quando argumenta sobre as regras de bondade às quais Deus se submete, no ponto nº 02 (Discurso de Metafísica), apresenta um deus que, quando lhe convém, impede indivíduos de pecarem. O testemunho das Sagradas Escrituras, como Leibniz gosta de usar, apresenta os casos de Faraó e Abimeleque que, quando prestes a tomarem a mulher de Abraão, Sara, para os seus leitos, em situações diferentes, Deus se encarregou de impedi-los de cometerem tal erro (Gênesis 12: 14 – 20; 20: 1–17). Decorre disto que, se Deus impede a uns, porque não faz o mesmo com outros? Ora, se o "poder" de agir livremente de alguns é dominado por Deus, por que outros são deixados a agir de forma a "contrariar" o bem? Estes episódios bíblicos podem ser interpretados filosoficamente, de modo a expressarem no tempo o que o Ser necessário decretou em face do seu entendimento a respeito de Faraó e de Abimeleque. O futuro contingente, no "tempo bíblico", foi visto e decretado na mente divina de antemão. Ora, está determinado que a natureza das criaturas não tenha a perfeição do criador. Mas há nelas uma perfeição como criatura, visto o criador não fazer coisa alguma que seja imperfeita (diz Leibniz).
            Com respeito ao questionamento de Arnauld sobre o pensamento de Leibniz sobre o livre-arbítrio divino, a análise de Marques é bem sugestiva quando afirma que, segundo Leibniz,
A liberdade de Deus fica preservada na medida em que cabe a ele estabelecer quais conexões dentre as infinitas possíveis devem se realizar na efetividade. O intelecto divino concebe, assim, as infinitas possibilidades de combinações de eventos, cabendo à vontade divina a escolha dentre as infinitas possibilidades apresentadas (MARQUES, 1998).

Assim, Deus é livre para impedir o que bem determinar e, da mesma forma, deixar acontecer.
            Marques conclui, dizendo que "com essa teoria Leibniz aparentemente apresenta uma resposta coerente ao desafio lançado por Arnauld de compatibilização da tese da liberdade divina com a tese de que são intrínsecas as relações entre uma substância individual e as suas determinações" (MARQUES, 1998). No entanto, com essa teoria que possibilita tal liberdade ao Ser necessário, fundamenta-se, sem que Leibniz perceba, o contraditório à sua tese do livre-arbítrio humano. Ou seja, sua fuga do determinismo absoluto quanto à natureza humana torna-se inconsistente pois, como atrás foi dito, Deus interfere quando quer e bem deseja nas decisões humanas, impedindo os homens de praticar o mal, segundo as mesmas fontes que Leibniz chama ao seu favor. Ora, no princípio do Discurso de Metafísica, ponto nº 02, Leibniz chama o testemunho das Escrituras (Gênesis, cap. 01) para respaldá-lo quanto à bondade de Deus. Mas, sabe-se lá porque, Leibniz não apresenta o texto do mesmo livro de Gênesis que mostra Deus não deixando Faraó e Abimeleque pecarem contra Abraão. Se filosofando, Leibniz usa a autoridade da Bíblia para se fundamentar, por que não a usa em sua inteireza, quando a mesma o contradiz quanto à ação de Deus, interferindo no suposto livre-arbítrio humano?

O Livre-arbítrio e a limitação de conhecimento humano
            De onde viria a limitação de conhecimento ocasionada ao ser humano? Na Monadologia, § 42, Leibniz:
Segue-se, também, que as criaturas devem suas perfeições à influência divina, e as imperfeições à sua própria natureza, incapaz de ser ilimitada. É por isso que se distinguem de Deus. Essa imperfeição original das criaturas manifesta-se na inércia natural dos corpos (LEIBNIZ, 1983).

É o próprio Leibniz quem vai dizer o que é essa "imperfeição original":

O mal pode ser considerado metafísica, física e moralmente. O mal metafísico consiste numa simples imperfeição, o físico consiste no sofrer, e o moral é o pecado. Embora o mal físico e moral não sejam necessários, é suficiente que, em virtude das verdades eternas, sejam possíveis (GERHARDT, Vol. VI. Pág. 115).

            Considere-se que as duas citações acima apontam para o fato que leva a entender o mal metafísico como causador dos outros males. Ora, quem senão o Ser necessário criou o mal metafísico? A tal "inércia natural dos corpos" foi decretada pelo Criador. É esta imperfeição, um mal, que ocasiona as limitações nas mônadas. Estas limitações ocasionam o problema das escolhas erradas. Leibniz ainda diz:

Os antigos atribuíram a causa do mal à matéria, que acreditavam incriada e independente de Deus, mas nós, que tudo derivamos de Deus, onde encontraremos a fonte do mal? A resposta é que ele deve ser procurado na natureza ideal da criatura, na medida em que sua natureza está contida entre as verdades eternas, que estão no entendimento de Deus independentemente de Sua vontade.[4] Pois temos de considerar que existe uma imperfeição original na criatura, anterior ao pecado, porque a criatura não pode conhecer tudo e pode enganar-se e cometer outras faltas (GERHARDT, Vol. VI. Pág. 114-115).

O mal, a imperfeição original na criatura, aparece aqui como contido "entre as verdades eternas, que estão no entendimento de Deus independentemente de Sua vontade". David Blumenfeld diz que "issues of good and evil rest on God's intellect rather than his will" (JOLLEY, 1998. Pág. 383). Leibniz consegue libertar o Ser necessário de haver desejado o mal para a sua criação. Mas isso não elimina o problema de Deus ser responsabilizado pelo mal. De uma forma ou de outra, seja da vontade ou do entendimento divino, o mal vem de Deus. Não foi a criatura que o escolheu ou desejou.
            Segundo Russell, foi por isso que Leibniz rejeitou "o princípio cartesiano segundo o qual os erros dependem mais da vontade do que do intelecto" (RUSSEL, 1968). A conclusão é que o Ser necessário foi obrigado a seguir o seu entendimento quanto a permitir o fenômeno do mal na sua criação.
            Dito isto, a limitação do conhecimento humano não poderá jamais alcançar a perfeição quanto a agir sem praticar o mal. Mesmo que sua vontade queira o melhor, seguindo o seu entendimento, está fadada a errar de vez em quando. A imperfeição da natureza condiciona o livre-arbítrio humano a ser relativo à sua limitação de conhecimento. A imperfeição se apresenta no momento em que se faz necessária a escolha. Como Leibniz diz: "Every act of will implies some reasons for willing and ... this reason naturally precedes the act of will itself" (JOLLEY,1998. Pág. 383). Ora, a análise de razões para uma determinada escolha é ocasionada segundo o conhecimento que se tem da mesma e do que a envolve, conhecimento este que estabelece os critérios de escolha. Uma vez limitado o conhecimento é passível de erro. Consequentemente a prática do mal em face da limitação de conhecimento não é da responsabilidade do agente. A falha deve ser atribuída ao intelecto e não à vontade, visto que está no homem como no Ser necessário, segue o princípio do melhor segundo o intelecto.
            Há um decreto sobre a natureza humana que a torna imperfeita em relação ao Criador. Sendo assim, não poderá agir fora deste decreto. Se o homem age sempre dirigido pelo que entende ser o melhor, nisto imita a Deus. Neste caso, a imperfeição em relação ao Criador impede o homem de sempre fazer o bem. Sua limitação de conhecimento, de entendimento, leva-o ao erro. Mas quem é responsável por sua limitação de origem? Poderia o Criador reclamar de sua criatura? Mas o Criador pode, sim, destruí-la para empreender uma nova criação. Como o deus de Leibniz sempre faz o perfeito, e foi assim que quis o que aí está, não há nada a reparar ou recriar.

Willians Moreira Damasceno

[1] Ou conscientes.
[2] Guarde-se aqui as diferenças entre Leibniz e Spinoza quanto ao conceito de substância.
[3] LEIBNIZ, G. W. Sobre a liberdade (De Libertate). (1689?). http://www.leibnizbrasil.pro.br/delibertate.htm. Acesso em 08/03/2006.
[4] Destaque nosso.

domingo, 11 de março de 2012

A HARMONIA PREESTABELECIDA


Continuação da abordagem sobre o problema do mal em leibniz
tentativa de resposta ao problema do mal

            Leibniz parece ter sido um buscador de harmonia em vários sentidos. Tanto “Os Princípios da Filosofia ditos a Monadologia” como no “Discurso de Metafísica” e na “Teodicéia”, há uma elaboração teórica voltada para uma harmonização de contrários. Esta tendência de Leibniz à harmonização estampa-se em sua vida pública, em sua teologia e em sua filosofia. Leibniz buscava mesmo uma conciliação entre pontos os mais diversos e muitas vezes irreconciliáveis. Os pressupostos de Leibniz apontam para uma vida que se define pela pluralidade que busca uma unidade. Na política, na teologia e na filosofia, Leibniz viveu a construção de uma harmonia. A harmonia era tão importante para ele que no seu título “Novos ensaios sobre o Entendimento Humano” Leibniz apresenta-se como “Autor do Sistema da Harmonia Preestabelecida” (LEIBNIZ, 1996). Leibniz queria harmonia em todos os níveis da existência e procurou explicá-la na filosofia da Mônadas. Politicamente, procurou harmonizar os povos; como também o protestantismo com o catolicismo. Tal é a sua luta e sofrimento face às divergências religiosas. Tratava-se de um reconhecimento da necessidade de unidade na pluralidade.
            Sua doutrina da harmonia universal é, sem dúvida, um marco em todo o seu sistema. É um dos pontos que dá sentido fundamental para que se entenda o fenômeno do mal.

O mal visto da perspectiva do todo adquire outro sentido.
            Dizendo Leibniz que Deus é a harmonia máxima rerum, sem perceber talvez, acaba por implicar que o mal faz parte desta harmonia. É como falar de notas dissonantes executadas por uma orquestra que só serão desagradáveis aos ouvidos quando tocadas isoladamente. No conjunto, tudo são harmonia e beleza. Do ponto de vista de uma bordadeira, o bordado só é “feio” se percebido pelo lado errado. Só existe um lado pelo qual o bordado tem o sentido estético devido, o qual a bordadeira quer lhe dar. Sob o prisma leibniziano, este mundo é o melhor possível e está em harmonia com o plano do seu criador. Encontrar o mal é olhar o “bordado” pelo lado errado; é escutar as notas dissonantes isoladamente. E notas isoladas não têm sentido.
            A compreensão do mal estaria para Leibniz situada na questão da percepção humana? O mal percebido isoladamente estaria fora do contexto maior que lhe dá outro sentido. Dessa forma, o bem, visto isoladamente, estaria também fora de um contexto maior e teria um sentido diferente do isolado. A compreensão do mal e do bem tem dependido de percepções isoladas e, portanto, sem o sentido do todo, consequentemente sem o sentido que a divindade tem do universo. E isto tem sido o motivo para equívocos de compreensão do fenômeno do mal. Para Leibniz, o problema está, na verdade, no homem que não consegue compreender devidamente a realidade da criação. O § 213 da Teodicéia deixa claro que há um erro em se supor que parte do todo, tomada isoladamente, deve ser tão perfeita quanto o todo em si mesmo (RUTHERFORD, 1998. Pág. 08). A perfeição está no todo. O homem só vê partes isoladas. Isto leva-nos a uma visão relativista do mal. Como diz Rutherford, “embora uma circunstância isolada pareça oferecer um contra exemplo para a perfeição superior do universo, quando retornado a seu contexto apropriado pode ser vista como a contribuir de uma maneira essencial para essa perfeição (do todo do universo)” (RUTHERFORD, 1998. Pág. 09). E qual é o contexto apropriado de uma circunstância? É justamente aquele em que a variedade dos seres diferentes participam em sua constituição e no grau de relação ou ordem que os une. Aqui se dá a harmonia; aqui o todo é absoluto.
            A Teodicéia, primeira parte, § 9º, vem fundamentar mais ainda esta visão sobre o pensamento de Leibniz:

todas as coisas estão ligadas em cada um dos mundos possíveis: o universo, qualquer que seja, é todo da mesma espécie, como um oceano: o menor movimento estende seus efeitos a qualquer distância, muito embora esses efeitos se tornem menos perceptíveis na proporção da distância. Nisto Deus ordenou, de uma vez por todas, a totalidade das coisas de antemão, tendo previsto os rezadores, as boas e as más ações e todo o resto; e cada coisa enquanto uma ideia contribuiu, antes de sua existência, para a resolução que foi tomada sobre a existência de todas as coisas; de modo que nada pode ser alterado no universo (ainda que em número) exceto sua essência ou, se tu desejares, exceto sua individualidade numérica. Assim, se o menor dos males que ocorre no mundo não ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se omitindo e tudo se considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu.[1]

Aqui há uma ideia do todo com suas partes interligadas. Uma observação das partes isoladas não permite a compreensão necessária à visão da perfeição do todo. Por este prisma, as partes são perfeitas, pois é o todo que tem o significado do ser perfeito. Existe neste todo a harmonia do melhor de todos os mundos possíveis, fundada na determinação divina. “Assim, se o menor dos males que ocorre no mundo não ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se omitindo e tudo se considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu” (GERHARDT, Vol. 7. Pág. 108). No § 59 da Monadologia, fala-se de uma “‘harmonia universal’ que faz toda a substância exprimir exatamente todas as outras devido às relações nela contidas”. É a relação de interligação harmônica que possibilita a perfeição.

O mal como resultado do encadeamento de acontecimentos-causas.
            Da perspectiva de Leibniz conclui-se que aquilo que é chamado mal pode ser ocasionado por uma cadeia de acontecimentos-causas iniciada desde o momento da criação. Leibniz diz na Monadologia:

Há uma infinidade de figuras e movimentos presentes e passados entrando na causa eficiente deste meu ato presente de escrever, e uma infinidade de pequenas inclinações e disposições da minha alma presentes e passadas que entram na sua causa final (LEIBNIZ, 1983).

Um ato considerado bom ou mau, realizado no presente, tem sua causa eficiente num conjunto de “figuras e movimentos presentes e passados...”, e que o tal ato enquadra-se na realidade de que não há verdade de fato ou qualquer verdade relativa que não dependa da infinita série de razões. Leibniz diz: “Assim, se o menor dos males que ocorre no mundo não ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se omitindo e tudo se considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu” (GERHARDT, Vol. 7. Pág. 108). Esta interligação entre os males que ocorrem no mundo complica a compreensão do livre-arbítrio que responsabiliza o ser humano por seus atos morais. Como pode ser responsável a alma humana por algo que extrapola o poder de controle sobre os seus atos? Afinal, atos presentes estão na sequência entre atos passados e futuros que acontecerão necessariamente. Sobre isto será dito mais ao se comentar os “futuros contingentes”.

A compreensão do melhor dos mundos possíveis cria uma desarmonização entre a filosofia e a teologia leibnizianas
            Quase todo o trabalho de Leibniz buscou uma harmonia entre filosofia e teologia. Esta busca dava-se tanto pelo fato de o filósofo ser cristão, quanto pelo fato de estar politicamente envolvido com magistrados. Por isto, fé e razão tornaram-se pontos importantes de consideração na filosofia de Leibniz de modo a merecer aqui uma análise.
            O pensamento de Leibniz sobre a harmonia preestabelecida no que respeita ao melhor dos mundos possíveis traz em si um problema que Leibniz, parece, não pensou que ocasionaria. Ora, Leibniz, em sua Teodicéia, tratando sobre a “questão da conformidade entre fé e razão, e o uso da filosofia na teologia”, diz: “O objeto da fé é a verdade que Deus tem revelado de maneira extraordinária, e que a razão é o encadeamento de verdades, porém particularmente (quando é comparada com a fé) daquelas que o espírito humano não pode alcançar naturalmente, sem o auxílio das luzes da fé” (LEIBNIZ, 2006. Pág. 73). Vê-se claramente a intenção de harmonizar a fé com a razão. É nesse afã que Leibniz não atentou para qual era de fato o melhor de todos os mundos possíveis para Deus. Como cristão conservador e como quem cita várias vezes a própria Bíblia para se respaldar, Leibniz esqueceu “da verdade da revelação”, a verdade da fé. Se os dogmas da revelação estão mesmo em conformidade com a razão, Leibniz deveria admitir que este não é o melhor mundo possível, senão provisoriamente, pois que a “verdade revelada” do cristianismo prega um novo céu e uma nova terra, nos quais “não haverá choro, nem ranger de dentes”; o que, Leibniz há de convir, existe muito neste mundo. A harmonia universal preestabelecida pode até existir, mas este mundo, para a teologia tradicional não é o melhor. Este mundo comporta males que só serão erradicados no próximo mundo que, segundo a “verdade revelada”, será mesmo o melhor. Como será que Leibniz relacionava o mundo da perspectiva cristã e o seu mundo que era o melhor dos mundos possíveis? O problema do mal que Leibniz procurava resolver referia-se ao fenômeno que acontece no mundo tratado pela perspectiva cristã. Está lá o problema do sofrimento humano e o problema do livre-arbítrio que são tratados por Leibniz. Em que mundo estes problemas acontecem? Claro, neste que é melhor de todos os mundos. Mundo aqui é o todo da natureza. Desde que todos os acontecimentos estão interligados, o sofrimento humano, de uma forma ou de outra, tem abrangência universal. Não há aqui que setorizar o mundo, pensando em terra, céu, inferno ou purgatório. Estas categorias, talvez existentes na mente de Leibniz, por ser cristão, fazem parte do todo. Portanto, visto haver para a teologia um inevitável futuro mundo melhor, no qual não haverá o mal, Leibniz falhou em tentar uma conformidade entre fé e razão. Sua filosofia solapou sua teologia.
Willians Moreira Damasceno

Esta abordagem continuará no texto "O MAL AGRAVADO PELO PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO".


[1] Texto original: Car il faut savoir que tout est lié dans chacun dos Mondes possibles: l’univers, quel qu’il puisse être, est tout d’une pièce, comme un Ocean; le moindre mouvement y etend son effect à quelque distance que ce soit, quoyque cet effect devienne moins sensible à proportion de la distance: de sorte que Dieu y a tout reglé par avance une fois, pour toutes, ayant prevu les prieres, les bonnes et les mauvaises actions, et tout le reste; et chaque chose a contribué idealement avant son existence à la resolution qui a été prise sur l’existence de toutes les choses. De sorte que rien ne peut être changé dans l’univers (non plus que dans un nombre) sauf son essence, ou si vous voulés, sauf son individualité numerique. Ainsi, si le moindre mal qui arrive dans le monde y manquoit, ce ne seroit plus ce monde, qui tout compté, tout rabattu, a été trouvé le meilleur par le Createur qui l’a choisi (GERHARDT, Vol 7. Págs. 107 e 108).

sábado, 10 de março de 2012

CONTINUAÇÃO DO TÍTULO " O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ"


Na modernidade, aparece o problema do mal também contraposto ao problema da onisciência divina. É significativo o pensamento do socinianismo[2] quanto a este atributo divino em relação ao problema do mal. Para os socinianos, o mal é incompatível apenas com a existência de um Deus onisciente. Referindo-se ao socinianismo, Leibniz diz textualmente: "Assim, os socinianos não podem ser excusados de negar a Deus o conhecimento exato de eventos (escolhas) futuros, e sobre tudo, de decisões futuras de uma criatura livre".[3] Os socinianos ensinavam ainda que a misericórdia e a justiça em Deus se opõem; a justiça não seria um atributo imanente de Deus; seria apenas um efeito de Sua livre escolha. Essa teologia abre espaço para certa arbitrariedade da parte de Deus quanto a governar a sua criação. Tal pensamento causou impacto no próprio Leibniz, uma vez que uma mente cristã não desfalca a natureza divina do atributo da justiça.
Para os modernos, o status quaestionis do problema do mal parece implicar em um problema face à bondade divina, bem como face à onisciência, à vontade e à justiça divinas.
Rutherford diz que Leibniz, cedo em sua carreira filosófica, chegou a uma resposta à questão de Epicuro sobre o mal.[4] Mas o problema do mal não o abandona, de sorte que Leibniz reflete sobre o mesmo até os seus últimos dias (RUTHERFORD, 1998. Pág. 07).
            Portanto, com estes pressupostos, apontam-se diretrizes para um estudo do que Leibniz escreve sobre Deus e sua natureza; sobre a relação entre a vontade de Deus e sua razão; sobre a harmonia universal preestabelecida e sobre a justiça divina em julgar os espíritos (temas sobre os quais discorre também na Monadologia). A Teodicéia pode ser lida mesmo como uma resposta aos socinianos, que pensavam o inverso de Leibniz. Mas também como uma resposta a Arnauld, seu correspondente. Entende-se sua justificativa da bondade e justiça divinas: é uma tentativa de responder à questão deixada pelos medievais. O sofrimento, aparentemente injusto, recebe um tratamento leibniziano para assim justificar Deus em face dos questionamentos humanos (RUTHERFORD, 1998. Pág. 07).
Natal/RN, 10 de março de 2012.
Willians Moreira Damasceno

Continua em "A HARMONIA PREESTABELECIDA"

[1] Continuação de "O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ".
[2] Teologia racionalista antitrinitariana difundida no século XVII. Seus iniciadores foram Lelio Sozzini e Fausto Sozzini, ambos do século XVI. A influência do antitrinitariano Miguel de Servetus faz-se presente nas doutrinas dos socinianos. Os Jesuítas suprimiram esse movimento na Polônia, mas as idéias socinianas espalharam-se para a Holanda e Inglaterra, e daí para a América. A moderna igreja Unitariana é um descendente direto dos socinianos da Polônia (CAIRNS, 2003, pág. 250 e 251).
[3] Original: "Ainsi les Sociniens ne sauroient être excusables de refuser à Dieu la science certaine dês choses futures, et sur tout des resolutions futures d'une creature libre" (GERHARDT, Vol. 7. Pág. 108).
[4] "God either wishes to take away evils and is unable; or he is able, and is unwilling; or he is neither willing nor able; or he is both willing and able. If he is willing and unable, he is feeble, which does not agree with the character of God; if he is able and unwilling, he is malicious, which is equally at odds with God; if he is neither willing nor able, he is both malicious and feeble and therefore not God; if he is both willing and able, which is alone suitable to God, form what source then come evils? Or why does he not remove them?"

sexta-feira, 9 de março de 2012

O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ

O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ[1]
Gottfried Wilhelm Leibniz – (1646- 1716) 01 de julho, na cidade alemã de Leipzig. Leu os autores antigos e escolásticos. Tomou contato com Platão e Aristóteles. Com quinze anos começou a ler os filósofos modernos. Bacon, Descartes, Hobbes e Galileu. Leibniz foi de um espírito universal, muito inteligente. Cursou filosofia na cidade natal, matemática em Jena, com vinte anos. Cursou também jurisprudência em Altdorf. Os últimos anos da vida de Leibniz foram tristes e solitários.

            Leibniz foi um homem afeito às questões científicas, políticas, religiosas e filosóficas de sua época. Por conta destas, ele enfrentou problemas que foram objeto de sua reflexão filosófica. Segundo Murray, o problema do mal preocupou Leibniz mais do que qualquer outro problema filosófico. Mesmo escrevendo sobre tantos outros temas, o problema do mal aparece na juventude e antes de sua morte. Tanto "Confissão do Filósofo" (1672) como "Ensaios de Teodicéia" (1709/10) foram obras dedicadas ao problema do mal (MURRAY, 2005. Pág. 01).
            A filosofia de Leibniz será pensada nestas linhas de modo a buscar suas respostas para o problema do mal. Isto não significa que se chegará a um resultado em que o tema será esgotado, mas que se terá uma noção do pensamento de Leibniz sobre ao problema do mal.
            O objetivo é mostrar que a abordagem de Leibniz sobre o problema do mal não alcançou resposta satisfatória, embora tenha feito algumas contribuições importantes para a reflexão. Para isto, serão abordados tópicos sobre a relação entre a "harmonia preestabelecida" e o mal; sobre a "harmonia preestabelecida" e o livre-arbítrio humano; sobre o livre-arbítrio divino; sobre a onipotência divina e os "futuros contingentes".
            Ficará provado que a filosofia de Leibniz reproduziu em muito a abordagem dos seus antecessores quanto ao assunto problematizado.

O contexto histórico do problema do mal conhecido por Leibniz
O fato de que texto e contexto constituem uma estrutura, na verdade uma unidade hermenêutica, obriga o pesquisador a uma contextualização histórica do assunto por ele pesquisado. Com isto, ratifica-se o fato de que a historicidade do contexto e sua integração com o texto não se contradizem, porém se requerem necessariamente.
A partir deste pressuposto, buscar uma simples, porém significativa reconstrução do contexto histórico do problema do mal anterior a Leibniz, e mesmo na modernidade, é imprescindível para a compreensão da resposta leibniziana a tal problema. Entende-se assim que uma hermenêutica significativa carece da visão histórica. Na verdade, exigem-se uma à outra e se completam.

O Problema do Mal antes de Leibniz
            O problema do mal já havia sido abordado por outros filósofos da antiguidade e do medievo. As soluções apresentadas para a questão não foram de todo convincentes. Na antiguidade, de um modo geral, os estóicos entenderam o mal como necessário à ordem e à economia do universo. O bem estóico é aquilo de que advém alguma utilidade, e com maior propriedade pode-se dizer que "é idêntico ao útil ou não se distingue dele"[2] (LAÉRCIO, 1977. Pág. 203). O mal, mesmo sendo a contrapartida do bem, ou o inútil, ainda assim é necessário ao universo.
            Um parecer neoplatônico sobre o problema do mal é dado por Plotino (205-270) em Eneadas: "Se tais são os entes e se tal é o que está além dos entes [isto é, Deus], então o mal não existe nem naqueles nem neste, já que tanto um quanto o outro são bem. Conclui-se, portanto, que, se existir, existe no que não é, e que é uma espécie de não-ser, encontrando-se, pois, nas coisas mescladas de não-ser ou partícipes do não-ser" (Enn., I, 8, 3)[3] (PLOTINO, 2000). Neste ponto: "o mal existe no que não é, e que é uma espécie de não-ser", está a ontologia do mal, ou mesmo a sua desontologização, a qual é seguida por Santo Agostinho (354-430), neoplatônico, em seu livro sobre o Livro-Arbítrio. Santo Agostinho reflete sobre a liberdade humana e a origem do mal moral, problema que pensa resolver com a tese de que o pecado está no mau uso da liberdade. Por outras palavras, o mal moral procede do livre-arbítrio (AGOSTINHO, 1995. Págs. 30-35, 147-151). Esta postura agostiniana de desontologização do mal cria, por sua vez, uma antropologização do mesmo, responsabilizando o homem pela prática do mal (ESTRADA, 2004. Pág. 35). Para Ricoeur, a resposta de Agostinho nega substancialidade ao mal, reputando-o como procedente da finitude da criatura. Esta deficiência instala-se face à "distância ôntica entre o criador e a criatura" (RicoeUr, 1988, pág. 32) e delimita o mal como um problema apenas moral. "Criaturas dotadas de livre escolha possam 'declinar-se' longe de Deus e 'inclinar-se' em direção ao que tem menos ser, em direção ao nada" (RicoeUr, 1988, pág. 32). Desse modo, apresenta-se um mal-nada [4] que tem sua origem na má vontade. O bispo de Hipona constrói uma resposta que se vincula muito bem ao mal praticado por decisão voluntária. Visto que o problema do sofrimento injusto não se resolve tão facilmente pelo fato de que o mesmo, em muitos casos, deve-se ao mau uso do livre-arbítrio por parte do sofredor ou de outro agente. Agostinho deixa em aberto a questão deste tipo de sofrimento, para que os pósteros tenham a oportunidade de resolver o problema.
            Fato é que na antiguidade cristãos e pagãos neoplatônicos aderiram à tese do mal como não-ser.
            A reflexão da Idade Média sobre o problema do mal não seria mudada. Escolásticos aristotélicos, platônicos e neoplatônicos, trilharam o mesmo caminho da reflexão antiga. A teologia natural resolvera o problema da existência divina, apresentando-se o problema do mal apenas quando filósofos e teólogos refletiam sobre a bondade e a santidade de Deus (MURRAY, 2005. Pág. 02). É neste caminho de pensar Deus e o mal que a abordagem refletia a mesma luz do período anterior. Tomás de Aquino (1224-1274) diz: "Uma vez que bem é tudo o que é apetecível e uma vez que a cada natureza apetece seu ser e sua perfeição, cumpre dizer que o ser e a perfeição de qualquer natureza são essencialmente bem.[5] Portanto, não pode acontecer que mal signifi­que algum ser, alguma forma ou natureza;[6] con­clui-se, pois, que significa apenas a ausência do bem" (AQUINO, 1954. Pág. 48). Esta ausência de ser, implica justamente um mal-nada. Percebe-se aqui uma correspondência entre Tomás e Plotino.[7] A forma do raciocínio tomista é silogística. Tomás de Aquino parte de uma afirmação universal, um princípio filosófico previamente estabelecido: "o ser e a perfeição de qualquer natureza são essencialmente bem" (premissa maior). Em seguida, Tomás de Aquino estabelece uma afirmação de natureza filosófica (menor). Nesse caso, Tomás de Aquino estabeleceu duas premissas menores: a) "bem é tudo o que é apetecível"; e b) "a cada natureza apetece seu ser e sua perfeição", para concluir com "portanto, não pode acontecer que mal signifi­que algum ser, alguma forma ou natureza". O que Tomás de Aquino queria com o argumento já estava estabelecido na premissa maior: a conclusão, "mal [...] significa apenas a ausência do bem", é apenas decorrência. A finalidade não é provar o princípio universal, mas o que dele decorre. Assim procedeu Tomás de Aquino, usualmente, em toda a sua Suma Teológica. Muito engenhoso para fundamentar a não substancialidade do mal.
            Em linhas gerais, essa parece ser uma concepção do mal com a qual Leibniz comunga em sua carreira filosófica. Russel, comentando sobre a Ética de Leibniz, diz:

A doutrina dos juízos analíticos deve ter contribuído para a concepção de que o mal é uma simples negação. Pois é óbvio que bom e mau são predicados incompatíveis, e se ambos são positivos, teremos um juízo sintético. Donde o mal é considerado como mera negação do bem... (RUSSEL, 1968. Pág. 198).[8]

Rutherford diz que a resposta de Leibniz ao problema do mal segue mesmo a resposta agostiniana de que o mal é falta ou privação do ser (RUTHERFORD, 1998. Pág. 07). Este mesmo autor falando sobre a Teodicéia, diz que Leibniz revela um endividamento ao platonismo (RUTHERFORD, 1998. Pág. 08).
            A concepção que considera o Mal como um conflito interno do ser, como uma batalha entre dois princípios antagônicos,[9] não parece transitar na reflexão leibniziana. Talvez, Leibniz, em sua filosofia, esteja também direcionando uma resposta a Spinoza[10], uma vez que este admitia, com Hobbes e Locke, a teoria subjetivista do mal como objeto negativo do desejo. Mas não parece que uma consideração sobre isto receba atenção de Leibniz em sua filosofia (ABBAGNANO, 2000. Pág. 640).

Esta abordagem continua com "O problema do mal na época de Leibniz".
Natal/RN, 09-03-2012
Willians Moreira Damasceno




[1] Esta abordagem terá continuidade em outras postagens.
[2] Art. 94 do Livro VII.
[3] "Eiv dh. tau/ta evsti. ta. o;nta kai. to. evpe,keina tw/n o;ntwn( ouvk avn evn toi/j ou=si to. kako.n evnei,h( ouvd' evn tw|/ evpe,keina tw/n o;ntwn\ avgaqa. ga.r tau.ta) Lei,petai toi,nun( ei;per e;stin( evn toi/j mh. ou=sin ei=nai oi-on ei=doj ti tou/ mh. o;ntoj o'n kai. peri. ti tw/n memigme,nwn tw|/ mh. o;nti h'"' o`pwsou/n koinwnou,ntwn tw|/ mh. o;nti"[3] (PLOTINO, 2000).
[4] Um mal sem substância. Posição neoplatônica.
[5] Esta é a premissa maior; é a base do raciocínio dedutivo.  
[6] Corolário das três premissas ou do argumento silogístico: decorrente do princípio filosófico previamente estabelecido – premissa maior.
[7] Citação das Enéadas feita anteriormente.
[8] Destaque nosso.
[9] A religião persa do profeta Zarathrustra; concepção também da seita dos maniqueus, contra os quais Agostinho combate filosófica e teologicamente.
[10] Russel diz que a ética para a qual Leibniz tendia era muito semelhante à de Spinoza (RUSSEL, 1968. Pág. 199).

quinta-feira, 8 de março de 2012

UMA TRADUÇÃO DA BÍBLIA É A PALAVRA INSPIRADA DE DEUS?

 

            O Cristianismo é um depósito de muitas dificuldades para os que se dizem crédulos em suas supostas verdades. Dogmas como o nascimento virginal de Jesus de Nazaré e sua ressurreição; as duas naturezas de Jesus e sua segunda vinda a este mundo e, na verdade, outros tantos são passíveis de dificuldades ante uma análise crítica. Como se não bastasse, o Cristianismo ainda enfrenta dificuldades ante as sustentadas verdades de outras religiões. Cada religião possui o seu depósito de dogmas; dogmas estes contrários aos dogmas de outras religiões. Se quisermos condescender com as religiões, o único dogma que é pertinente a todas é a crença na existência de uma divindade. O que decorrer desta crença teológica é passível de contestação entre as religiões. Ou seja, cada dito sobre a própria divindade passa por controvérsias intermináveis entre os religiosos.

            De per si, o Cristianismo, entre as suas facções ou ramos, também enfrenta controvérsias sem fim, embora existam muitos adeptos seus buscando um elo que propicie união entre todos os cristãos num ecumenismo, mesmo que não seja possível uma unidade teológico-doutrinária.

            Além desses problemas, existem outros que não são tratados nos redis cristãos; ou por deficiência epistemológica de seus mentores teológicos ou por desinteresses sobre tais assuntos; ou ainda por medo de que, uma vez tratados tais assuntos, o Cristianismo venha a perder influência na humanidade. E este último motivo revelaria a covardia de alguns que se escondem atrás da máscara de uma chamada prudência jesuológica que se traduz pela expressão: "tenho muito que vos dizer, mas vós não podeis suportar agora". Admita-se que seja usada esta prudência nos ambientes de culto; porém, nos ambientes de ensino teológico faz-se necessário o tratamento de muitos assuntos tabus e esse tratamento deve acontecer mesmo de forma crítica. Esse tratamento levaria os estudantes a buscarem respostas menos infantis para os seus questionamentos mais recônditos.

            Um dos assuntos carente de tratamento sem disfarces refere-se à própria Bíblia. Existem muitas considerações bibliológicas que são negligenciadas aos estudantes de teologia. Em face desta situação, este artigo refere-se a problemas bibliológicos relativos à tradução do texto bíblico e aos manuscritos nas línguas originais, grego e hebraico.

 

As traduções

 

Do ponto de vista da tradução, a Bíblia é um texto inacabado; é um texto que está sempre em revisão e mudanças face às novas descobertas lingüísticas, literárias, arqueológicas e de quaisquer ordens que se refiram a qualquer texto traduzido. O texto bíblico traduzido que temos hoje, em qualquer língua, não é o texto original; não é o autógrafo dos profetas e apóstolos, escritores originais. O texto traduzido que temos hoje, em qualquer língua, é apenas uma tradução dos manuscritos nas línguas originais, cópias de cópias de cópias do texto original supostamente inspirado, que já não existe e, por sinal, há muito tempo desaparecido. Portanto, em que sentido as traduções são a palavra de Deus? Esta é uma pergunta pertinente para que os teólogos a respondam. Parta-se do pressuposto de que a suposta inspiração divina foi atuante apenas sobre os primeiros escritores. A não ser que se desenvolva uma doutrina da inspiração a la Filo de Alexandria, o qual sustentava que a Septuaginta, tradução da Bíblia hebraica para o grego, foi feita "não por tradutores, mas por hierofantes e profetas"[1], portanto, também inspirada por Deus.

            Não se pode negar que todo tradutor tem uma formação lingüística necessária para que o seu trabalho possua pertinência à confiança dos seus leitores. Aplique-se este pressuposto às sociedades bíblicas que fazem tradução. Um tradutor que se preza conhece as teorias de tradução e, necessariamente, adota uma delas no seu labor. Uma sociedade de tradução, por sua vez, está para uma teoria linguística assim como uma denominação religiosa, um partido político, etc. estão para uma doutrina pelos tais adotada. Aquela sensação que um religioso protestante fundamentalista ou conservador sente ao ser informado de que tal tradução da Bíblia foi realizada por tradutores católicos ou espíritas, ou de qualquer outro ramo religioso, é bem reveladora do que subjaz ao problema das traduções; em outras palavras, suas diferenças.

 

Mudanças ideológicas

 

As mudanças nas traduções explicam-se por diversos fatores: a) Concepções teóricas surgidas através dos tempos. Essas mudanças teóricas ocasionam correções, subtrações, como também acréscimos às traduções já realizadas; b) As mudanças filosóficas e teológico-doutrinárias ocorridas nas escolas ou sociedades de tradução. A análise de diversas traduções revela diferenças que refletem concepções teóricas linguístico-teológico-doutrinárias diversas, sem contar que influências filosófico-hermenêuticas subjazem às concepções lingüístico-teológicas pertinentes a cada tradução: desde concepções fundamentalistas a compreensões liberais expressas nas traduções. Não só as perspectivas linguísticas são passíveis de mudanças. As concepções teológicas e filosóficas de uma sociedade de tradução também mudam conforme os seus tradutores são remanejados, substituídos, etc., sem contar que as sociedades de tradução também acompanham as mudanças doutrinárias do ramo religioso com o qual se comprometem; resultado disto são as diferenças gritantes entre as traduções. Comparem-se traduções de sociedades bíblicas diferentes; de sociedades de ramos religiosos diferentes entre si; c) deve-se acrescentar ainda o fator das descobertas científicas. Este fator lança novas luzes sobre o conhecimento humano e este passa a ter novos pressupostos que levam a mudanças de visão quanto às traduções. A mudança é, na verdade, um fenômeno natural na cultura humana. Tradução também é cultura.

 

Mudanças existenciais

 

Como, portanto, livrar-se do pressuposto de que toda tradução é também interpretação? O parágrafo anterior é a prova de que toda interpretação leva consigo a marca de uma subjetividade do tradutor. Além disto, acrescente-se o fato circular e dinâmico de que a tradução faz o tradutor e o tradutor faz a tradução. A tradução como atividade e como resultado do trabalho cria novas impressões na subjetividade do tradutor no decorrer e à medida que cada trabalho tradutório se encerra. Afinal, lidar com um texto escrito não é meramente lidar com algo morto. É antes lidar com a vida das idéias. E estas sempre tocam a subjetividade do tradutor. Todo texto ganha vida quando entra em contato com o tradutor. Afinal, todo texto quando ganha voz transmite sempre uma idéia.

 

Os manuscritos nas línguas originais

 

Os manuscritos bíblicos nas línguas originais, conhecidos, são também cópias de cópias de cópias do texto original e não são também inspirados; repita-se: são meramente cópias.

Para o exercício da tradução, os tradutores exercem atividades, cujos métodos e técnicas podem diferir de sociedade para sociedade de tradução. Além do mais, a passividade de diferenças vai também interferir nos resultados da tradução. Podem ser referidas aqui duas atividades do tradutor: A Crítica Textual e a Análise Literária. Ambas são devedoras a pressupostos que condicionam o resultado do trabalho. A Crítica Textual consiste em determinar com a maior exatidão possível o texto que será usado para a tradução. A necessidade da Crítica Textual, no caso do texto bíblico, advém do fato de que os manuscritos foram escritos em línguas que não a do tradutor e estes manuscritos são cópias de originais desaparecidos. Esses manuscritos foram sucessivamente copiados através dos séculos, de modo que existem milhares desses manuscritos cópias na atualidade. A comparação dessas cópias entre si revela que o texto reproduzido nem sempre é igual. A Crítica Textual busca o conhecimento dessas diferenças existentes entre esses manuscritos cópias para que o tradutor possa escolher que cópia ou cópias usar para a sua tradução[2]. Além da Crítica Textual, o tradutor ainda pratica a Análise Literária, ou crítica literária. Os textos contidos nos manuscritos, como unidades literariamente formuladas e acabadas são analisados com a finalidade de se definir

 

a sua exata extensão como unidades literárias autônomas; a estrutura literária dos textos, ou seja, as partes diferenciáveis que os compõem; o grau de integridade literária dos textos, ou seja, determinar se o conteúdo dos textos forma um todo orgânico e coerente, ou se são perceptíveis quebras e rupturas no desenvolvimento do assunto. O uso de fontes literárias alheias ao conteúdo formulado pelo próprio autor[3].

 

Percebe-se, nitidamente, que o tradutor exerce uma influência profunda e considerável na escolha dos manuscritos que ele entende mais confiáveis para o seu trabalho. Esse trabalho de seleção não escapa à subjetividade do tradutor e, consequentemente, não escapa de falhas, por mais que se abuse de procedimentos científicos no exercício da tradução. Devido aos fatores ditos, é comum e natural que tradutores de sociedades de tradução diferentes apontem falhas nos trabalhos de seus colegas de outras sociedades.

 

            Assim sendo, diante das contingências do material usado para a tradução da Bíblia, diante das contingências das traduções e diante das próprias limitações epistemológicas dos tradutores, sem contar com outras limitações, como humanos que são, releva-se um problema: EM QUE SENTIDO UMA TRADUÇÃO É A PALAVRA INSPIRADA DE DEUS? Este problema considera o questionamento: Que diferença faz se o texto é ou não inspirado? Não estaria a pertinência do texto em sua influência na vida humana? Quando os religiosos de Jerusalém disseram ao homem curado por Jesus que o Mestre era pecador, o homem respondeu: "Se é pecador, eu não sei; uma coisa sei: eu era cego e agora vejo" (Jo. 9:25)[4]. O homem curado revelou o âmago da questão quando a direcionou para o fato de uma relação com o Mestre e não para uma questão de saber ou não saber de algo, uma questão epistemológica.

            Portanto, a questão suprema é: qual a influência do texto bíblico na vida humana? De que adianta a lei de Deus escrita em pedras, se no coração está escrita a concupiscência? As palavras da Lei só fazem diferença se estiverem escritas no coração. Essa é a inspiração que conta.

 

Revisado em Natal/RN, março de 2012

Willians Moreira Damasceno



[1] BARRERA, Julio Trebolle. A bíblia judaica e a bíblia cristã. Uma introdução à história da bíblia. 2ª Ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995. Pág. 149: citação do texto apócrifo Vida de Moisés 11:40.

[2] WEGNER, Uwe. Exegese do novo testamento – Manual de metodologia. 3ª edição. São Paulo. Sinodal – Paulus, 2002. Pág. ___

[3] Idem.

[4] BÍBLIA SHEDD. Antigo e novo testamentos. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. 2ª edição, rev. e atual. São Paulo: Edições Vida Nova/Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.