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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO AFRICANA NO BRASIL

O texto a seguir foi escrito no ano 2000. Algumas arestas são identificáveis. Considere-se, no entanto, a pertinência do assunto; e que sejam apresentadas observações.

            O fenômeno religioso sempre esteve presente na história do Brasil. Aqui, são encontradas quatro manifestações básicas deste fenômeno: O catolicismo, trazido pelos portugueses; o culto africano, trazido pelos negros escravos; o protestantismo, transculturado por missionários da América do Norte e da Europa, e a religião dos nativos. Destas quatro manifestações, interessa a este ensaio tratar sobre o culto africano. Nesta “trilha” procura-se mostrar que a influência da religião africana é uma realidade patente, abrangente e desenvolvente no Brasil; tanto pela miscigenação genética, como pelo intercâmbio e pela miscigenação culturais. O prisma desta abordagem transcorre basicamente pelas dimensões sócio-cultural e antropológica. Intenciona-se identificar quatro fatores, considerados os mais importantes, responsáveis por explicar o porquê desta religião ter resistido a percalços mil e ter influenciado consideravelmente a cultura brasileira. Serão considerados os seguintes fatores: A função catártica; a abertura para o sincretismo; o crescimento demográfico; e respostas fáceis para perguntas complexas.
Não se trata de um texto exaustivo, de vez que seria necessário muito mais tempo e material para uma fundamentação mais consistente. De sorte que esta abordagem deteve-se apenas na pesquisa bibliográfica, relativamente restrita.

A VINDA DOS NEGROS PARA O BRASIL

            Negros já existiam em Portugal muito antes do descobrimento do Brasil. Para lá, foram como escravos adquiridos em transações comerciais. Vindo Portugal a invadir as terras brasileiras, entenderam os portugueses que precisariam de mão de obra escrava, em virtude de os nativos brasileiros não se prestarem para tal. Conhecedores que eram da eficiência negra no trabalho escravo, os portugueses não tardaram em lançar mão deste expediente.
            Os navios negreiros chegaram ao Brasil entre os séculos XVI e XIX, trazendo africanos para trabalhar como escravos no Brasil Colônia. Os africanos trazidos pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais variadas regiões da África. Africanos do Congo, de Guiné, do Cabo, de Serra Leoa e de Angola, foram trazidos para o Brasil durante o período da conquista e do desbravamento do Brasil Colônia. Segundo Juana Elbein dos Santos, estes africanos (os Nagô, os Bantu, os Minas, os Daomeanos, os Haúça, os Niam Niam, os Mangbatu, os Kanembu, os Bagirmi, os Bornu, os Kanuri, Os Mandingo, os Ioruba, e outros) “foram distribuídos pelas plantações, espalhados em pequenos grupos por um imenso território, principalmente no centro litorâneo, nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais”[1].
            Com os africanos viajava também uma religião relativamente estranha aos colonizadores. Cerca de um século depois da abolição da escravatura, a religião considerada feitiçaria, transformou-se em uma das religiões mais conhecidas do Brasil. Se perguntarmos a um brasileiro, em geral, sobre a religião dos negros, sempre haverá uma resposta que não será de todo insatisfatória. Quem gosta de cachaça? Exu. Quem veste branco? Oxalá. Quem recebe oferendas em alguidares (vasos de cerâmica)? O Orixá. E quem adora os orixás? Milhares de brasileiros. O culto africano, com seus batuques e danças, uma festa. Com suas divindades geniosas, uma religião por demais influente no Brasil.
            Para chegar ao grau de influência ao qual chegou, o culto afro passou por muitas intempéries. Enfrentou barreiras, as mais diversas, desde as circunstâncias inóspitas de sobrevivência nas Senzalas até a resistência da religião dominante do país. A despeito de tais realidades não podemos contestar a influência do culto africano, em especial do Candomblé.
            Em vista destes fatos, surge um questionamento por demais pertinente: Que fatores explicam a resistência e a influência que a religião africana conseguiu no Brasil?

FATORES QUE EXPLICAM A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO AFRICANA NO BRASIL

            Toda e qualquer religião, para se manter em ação, precisa apresentar certas características fundamentais. Desde os aspectos festivos até o aspecto de caráter moral radical, contribuem para atrair os interessados por soluções religiosas. As religiões são diversas para poderem atender aos mais diversos interessados. Quando não se recebe satisfação em uma, outra haverá de aparecer (geralmente aparece) não sendo extremamente exigente o interessado. Afinal, religião pode ser comparada a restaurante: A adesão é questão de paladar e de apetite.
            Valendo a analogia, no cardápio religioso do culto africano fatores há que ajudam para que, desde o princípio, este culto alcance projeção admirável. Podem ser citados pelo menos quatro fatores: a) a função catártica; b) a abertura para o sincretismo; c) o crescimento demográfico dos negros; d) respostas fáceis para questões complexas.

A Função Catártica
            Esta abordagem não desconhece o caráter patológico que, muitas vezes, é detectado nas manifestações religiosas. Atém-se, no entanto, ao “caráter terapêutico” que é veiculado pela religião; fator este que atuou com um instrumento que facilitou a vida do negro que veio para o Brasil como escravo. Isto é verdade, principalmente considerando as condições em que o africano foi trazido para cá. Segundo Roger Bastide, as religiões do negro

estavam ligadas a certas formas de família ou de organização clânica, a meios biogeográficos especiais, floresta tropical ou savana, a estruturas aldeãs e comunitárias. O tráfico negreiro violou tudo isso. E o escravo foi obrigado a se incorporar, quisesse ou não, a um novo tipo de sociedade baseada na família patriarcal, no latifúndio, no regime de castas étnicas[2].

Por estes dados, fica fácil imaginar o sofrimento que caiu sobre o africano, vendo todos os seus valores culturais atacados e destruídos. Restaram-lhe os seus rituais nos quais encontravam meios de extravasarem suas dores e angústias.
            Um fator característico das religiões em geral, é a sua função catártica; sua função de permitir ao cultuante o expressar de suas emoções através de cânticos, orações, rituais e de outros expedientes, possibilitando a liberação de muitas das mazelas, conscientes ou inconscientes, vividas pelo ser humano. A função catártica da religião tem motivações as mais diversas, desde aquelas que passam pela imaturidade até àquelas que operam a depuração emocional, permitindo ao cultuante um alívio de suas tensões. No que se refere a esta função, a religião afro possui um instrumento que não se deve descartar quando se trata da busca de fatores que explicam a sua influência: As festas.
Religião que se preza realiza festa. Os encontros religiosos devem ser caracterizados pela alegria. Que ambiente seria mais festivo do que aquele em que atabaques, cânticos, muito ritmo envolvente, atuam sobre o emocional dos presentes? O cultuante precisa ser muito indiferente para impedir que seu corpo e sua mente sigam as batidas rítmicas de um terreiro. O fator festas carrega consigo o significado do prazer. E quem não deseja prazer? Nas festas dos terreiros sempre há algo novo manifestando-se aos sentidos dos participantes. Algo que, via de regra, não se encontra em religiões tradicionais, elitizadas e dominantes, no sentido político dos termos.
Festa sem música é praticamente impensável! Atabaques, agogô e o xequerê são instrumentos responsáveis pelos ritmos que, reproduzindo as modulações da língua africana iorubá (língua cantada), chegam a mais de quinze ritmos diferentes. Cada casa-de-santo tem até 500 cânticos. Segundo a fé dos praticantes, os versos e as frases rítmicas, repetidos incansavelmente, têm o poder de captar o mundo sobrenatural. Essa música sai dos terreiros no Carnaval (na Bahia, por exemplo) e alcança milhões, revelando a amplitude de sua influência.
Muitas festas estão vinculadas a um calendário litúrgico; outras não têm dia marcado. O fato é que todo dia é dia de festa.
Fato por demais interessante é que estas festas estão associadas aos dias dos santos católicos. As datas podem variar de terreiro para terreiro, mas a festa não deixa de acontecer. De maneira geral o que importa é comemorar o orixá na sua época.
Estas festas acompanharam os negros por onde andaram, sempre dando alento àqueles corações sofridos. Verdade é que existe uma doutrina, uma filosofia, mas não se pode deixar de admitir que se não fora o clima festivo, seria difícil enfrentar o que por eles foi enfrentado.
Considere-se, pois, que estas festas eram assistidas por muitos que se encontravam nas mesmas condições dos negros. Vulneráveis como eram pelas dificuldades da vida, o caminho estava aberto para a religião africana. Não faltava quem não escapulisse e frequentasse um terreiro. E este fato aponta para o fator que ajuda a abrir as portas para “os de fora”.

Abertura para o Sincretismo
            Se o português se revelava plástico no contato com outras civilizações, o negro se revelou superlativamente plástico, para quem veio para o Brasil nas suas condições, conseguindo sobreviver às atrocidades e chegando, hoje, a ter influência cultural deveras considerável. A abertura para o sincretismo é espantosa e faz lembrar aqui do texto de Gilberto Freyre, no seu livro Casa Grande & Senzala, que diz: “em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra” (Grifo nosso).
Quanto à abertura para o sincretismo, note-se aqui os seguintes aspectos:
a) Sincretismo, “uma forma moderna de aculturação”.
Roger Bastide apresenta Nina Rodrigues (médico-legista) como o descobridor do sincretismo religioso entre os deuses africanos e os santos católicos - uma forma moderna de aculturação.
Nina Rodrigues, citado por Roger Bastide, distinguia dois tipos de candomblés: O dos africanos (africanos puros) e o dos nacionais (negros crioulos). O dos africanos puros “justapõem-se” o culto católico a suas crenças e práticas “fetichistas” e concebem os orixás e os santos “como de categoria igual ainda que perfeitamente distintos”. O candomblé dos crioulos... “uma tendência monista e incoercível para identificar os dois ensinamentos.” Fica claro que

a África ocultou-se sob roupas ocidentais, mas sua forma de família habitual sobrevive no concubinato, suas formas de trabalho coletivo no mutirão, a independência econômica da mulher na divisão sexual do trabalho e pelo comércio do grupo feminino (Roger Bastide).

b) O sincretismo como meio de relação com o simpatizante do culto afro.
            Este ponto refere-se ao sincretismo como meio de contato com “o outro” interessado na religião negra. O outro que, estando em condições sociais semelhantes às do negro e sendo de outra religião, procurava respostas e alento. Considerando-se o fato de que a religião dominante não tolerava a migração religiosa, ficava difícil para a maioria assumir a adesão a outra disposição de fé. O sincretismo possibilitava o desfrutar das bênçãos da outra religião, sem, ao mesmo tempo, despedir-se dos arraiais religiosos dominantes. Esta prática, extremamente sutil, ainda hoje é assumida pela população brasileira, embora não mais pelas mesmas motivações do passado.
c) O sincretismo como máscara para permitir a sobrevivência.
            A religião dominante considerava a religião africana como feitiçaria, portanto, obra demoníaca. O demoníaco precisava ser exorcizado, erradicado. O negro precisa ser convertido ao catolicismo. Não bastava a escravidão física; a escravidão só estaria completa com o subjugo espiritual, ideológico, com amarras também na vida interior. Diante disto, o negro se encontrou com a necessidade de sincretizar a sua prática religiosa com o imaginário cristão-católico. Nada mais prático! Esta máscara daria livre trânsito aos valores africanos. Evidentemente que este sincretismo não deixa de ter efeitos desgastantes para a própria essência da religião afro, principalmente naqueles que iam nascendo já envolvidos por esta nova conjuntura.
            O fato é que o sincretismo aconteceu e, em termos de guardar a integridade do negro, foi um fenômeno positivo.
            O sincretismo tanto atuou como máscara, ou seja, permitiu ao negro sobreviver ante a religião oficial e dominante, como foi também um meio de facilitar a aproximação com os simpatizantes de outras religiões. A influência deu-se, mais fortemente, quanto ao primeiro aspecto. A religião negra penetrou no catolicismo, deixando-se também penetrar pelo mesmo. Cite-se aqui, que quando se perguntou a Mãe Menininha do Gantois, não se sabe em que recenseamento, qual era a sua religião, ela disse: “Católica, é claro!”. Nada mais prático do que o sincretismo, tanto para se esconder, como também para se propagar.
            Como se não bastasse, líderes católicos manifestam o sincretismo abertamente. A revista Veja, de 03 de março de 1999, traz uma reportagem que merece consideração. A reportagem apresenta vários padres que, em seus paramentos clericais, trazem as marcas da cultura afro. Alega um dos clérigos que “o traje facilita a comunicação”. Este uso estratégico reflete a forte influência dos valores africanos na igreja católica. Diga-se, de passagem, que reflete também o quanto a própria igreja católica, tão fechada no passado, conseguiu superar a sua intransigência religiosa.
            Roger Bastide conclui: “O que os antropólogos ressaltam sob a ilusão do sincretismo é o perpetuamento da civilização africana”.
            Fica aqui uma pergunta: Poderia se falar, hoje, de uma civilização africana pura no Brasil, ou esta afirmação seria apenas a confirmação de que valores africanos compõem a cultura brasileira?

O crescimento demográfico.
            É deveras interessante analisar este aspecto da vida dos negros no Brasil.
            Em 1550, perto de 10% da população de Lisboa era composta de escravos negros. Os portugueses que vieram para o Brasil entenderam que poderiam usar do mesmo expediente de mão de obra, já que em Portugal o mesmo estava a dar certo.
            Roger Bastide apresenta algumas estatísticas que são interessantes. Diz ele que “há um acordo em relação a uma quantia aproximada de três milhões e meio de negros chegados ao Brasil desde os primórdios da colonização até o fim do tráfico legal ou clandestino”.
            O CD-Rom “A História do Brasil” da ATR Multimédia - 1995, diz:

Apesar de enormes divergências entre os estudiosos, calcula-se que ingressaram cinco milhões de escravos, no Brasil desde o século XVI. Somente na primeira metade do século XIX, as estimativas indicam um milhão e quinhentos mil cativos traficados para o Brasil.

            É curioso observar os dados estatísticos quanto ao crescimento demográfico no Brasil. A estatística oficial, 1817 - 1818, apresenta o Brasil com uma população total de 3.817.000 de habitantes, dos quais 585.000 mulatos e negros livres e 1.930.000 escravos. Desta maneira, no início do século XIX os negros dominam demograficamente os brancos, o que permite compreender por que eles puderam manter parte de sua herança cultural e mesmo influenciar a civilização dos portugueses. Entretanto, é preciso não esquecer que os brancos comandam e dirigem o país; o escravo é rejeitado pelos brancos e esta estratificação das cores prejudicou em maior ou menor grau a ação do fator demográfico.
            O crescimento demográfico contribuiu para a disseminação da religião. A influência dos valores culturais religiosos expandiu-se na proporção de sua propagação através do crescimento demográfico. E mesmo no silêncio, os valores religiosos negros foram influentes.
            Hoje, a demografia religiosa apresentada pelas estatísticas aponta o número de fiéis que compõem as religiões no Brasil (aqui já são englobados os influídos: negros, brancos e mestiços). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1988, informou que 6 % dos chefes de família (ou cônjuges) seguiam cultos afro-brasileiros.
            Registre-se o contingente humano que lota as praias do Brasil, na passagem de ano, homenageando Iemanjá, a orixá (deusa) dos mares e oceanos, podemos ver que os números são mais expressivos ainda. Isto fica ainda mais evidente, se for admitida a informação da Federação Nacional de Tradições e Cultura Afro-Brasileira (FENATRAB) de que há 70 milhões de brasileiros, direta ou indiretamente, ligados aos terreiros - seja como praticantes assíduos, seja como clientes, que ocasionalmente pedem uma bênção ou um “serviço” ao mundo sobrenatural veiculado pelo culto afro. Terreiro é o que não falta. Na região metropolitana de Salvador são mais de 1.200 terreiros. O Instituto de Estudos de Religião (ISER) verificou que 81 novos centros “espiritas” haviam sido abertos no Grande Rio de Janeiro no ano de 1991, e que, em 1992, surgiram outros 83. O sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo, contou, em 1984, 19.500 terreiros registrados nos cartórios da capital paulista.
            Estes dados indiciam o quanto se expandiu a cultura negra no Brasil. Não somente com a presença do negro entre as famílias portuguesas, mas também através da proliferação de unidades de proclamação de sua religião, os terreiros. Os números são importantes nesta conjuntura, de vez que, do ponto de vista quantitativo, o crescimento, a expansão e a influência são patentes.
            O que levaria a pensar que os números teriam baixado? Diante das sugestões que uma religião com as características da religião negra possui e entendendo as circunstâncias político-econômico-sociais em que vive o Brasil, a tendência é continuar a sua expansão.

Respostas fáceis para perguntas complexas
            A influência de uma religião atua na mesma proporção das necessidades de seus adeptos. Quanto mais significativas forem as necessidades, mais aberto o interessado se torna às investidas religiosas. Viu-se acima que o fator festa da religião africana é por demais influente. Há, no entanto, outro fator que exerce ação bastante significativa quando se trata de influir sobre o ser humano em geral. As religiões trabalham também com a proposta de atender aos questionamentos humanos. A religião africana não se furtaria a este dispositivo tão importante. Na verdade, o que mais os humanos gostam de dar e de receber são respostas. Partindo deste raciocínio, é preciso lembrar que o Brasil, de certo modo, em especial, é um terreno fértil aos investimentos religiosos de quaisquer ordens. As multidões buscaram, buscam e buscarão respostas para tantos questionamentos, não só sobre a vida imediata, como também sobre aspectos considerados de mistério sobre o porvir e sobre o além. Assim, uma religião pode, muito bem, explorar caminhos de respostas. A questão se apresenta quanto ao tipo de resposta apresentada. É aqui onde mora a problemática.
            Os satisfeitos e resolvidos, mais das vezes, não são tão influenciáveis pelas religiões. No entanto, os insatisfeitos procuram soluções. É sabido que num país tão viciado em nepotismo e em tantas outras práticas do “jeitinho brasileiro”, só se dá bem, via de regra, quem dispõe de condições cujas forças estão aliadas ao capitalismo, ou quem, sabe-se lá como, aproveita certas oportunidades. Assim, os insatisfeitos são milhões em busca de um milagre. Nesta busca vale tudo. Vale o sincretismo religioso, como também a adesão aberta. Não deixa de valer a busca circunstancial da religião como quem entra em um supermercado, compra o de que precisa e se retira.
            O ser humano é ávido por soluções recebidas de bandeja. Quanto menor o esforço, o trabalho, melhor. Religião que estimula o pensar, a reflexão, a busca da maturidade emocional, que fomenta a independência de soluções infantis, não preenche requisitos da religião ideal que o povo procura. Sem esquecer outras religiões, é aqui que atua outro fator do culto afro na sua influência no Brasil. É mais fácil e cômodo receber respostas de búzios e rituais mediadores do que procurar descobrir o caminho por si. Conta bastante o grau de maturidade do cultuante. Indivíduos infantis tendem a viver esperando respostas feitas e vindas de fora. Rejeitam qualquer esforço na busca de resposta. Tanto por viverem como quando dependiam dos pais, como também por se sentirem inseguros para tomarem decisão, assumindo quaisquer riscos; procuram assim, outros “pais” e “mães”.
            A maior identificação com o culto afro deu-se e dá-se por parte de indivíduos de classe social baixa. Parta-se do pressuposto que, após a abolição da escravatura, os negros ficaram a “ver navios” (que não lhes levavam de volta para a África) no que respeita à situação social. Precisaram deixar as propriedades onde eram escravos e passar a dar conta da própria vida. Quem os trouxe da África, não se apresentou para devolvê-los. E nem deveria, em virtude de os negros de então não serem mais africanos, e, sim, brasileiros. Levá-los de volta, em certo sentido, seria o mesmo erro que brancos cometeram, tirando-os da África. Agora, sua terra era o Brasil. Menos mal terem de encontrar soluções aqui mesmo.
            Com a mudança do regime de produção, com o trabalho forçado sendo substituído pelo trabalho remunerado, a estrutura demográfica transforma-se com a evasão de negros do campo para a cidade. Pobres, doentes, desprezados, marginalizados, vão para as cidades em busca de soluções. Consigo levam o que possuíam (quase nada) e o que eram. A religião estava lá... indo com eles para onde iam.
            Na ida para as cidades, com os negros onde se instalou a religião africana? Entre as elites? Evidente que não! Ela se manteve com os negros. E onde estes se instalaram, senão em favelas e arrebaldes. Lá era o lugar dos marginalizados e desprovidos.
            De sorte que, numa condição como aquela, a religião de festas e com função catártica admirável, fortificou-se consideravelmente, passando a atender aos seus próprios conaturais e a outros interessados, também nas mesmas condições dos negros. Dai a expandir-se era só questão de tempo. Expandiu-se e influenciou.
            Expandiu-se entre aqueles que precisavam de soluções para situações de sobrevivência, como também entre aqueles que nutriam queixas e intrigas contra outros.
            Os procedimentos da religião africana atendem a demandas as mais exóticas. Desde conseguir emprego até interferir na vida íntima de alguém, positiva ou negativamente. Outras religiões se negam a estas práticas. Mas a religião africana entende-se, por parte de seus praticantes, na incumbência de cumprir missões as mais extravagantes. É verdade que, para alguns, a Parapsicologia explica, de modo científico, muitos dos fenômenos da religião africana. Mas para o popular, mais das vezes, desinformado, alienado, ávido ao extremo por se safar de dificuldades, somada a estas vicissitudes, o interesse pelo suposto “místico” e “misterioso”, o caminho chega ao terreiro, onde terá um “pai” ou uma “mãe” que lhe “abrirá” os olhos e lhe dará alento. Instrumentos: rituais, jogo de búzios, cumprimento de obrigações, etc. Para quem se encontra, muitas vezes, nas condições dos negros quando foram libertos no século XIX, nada mais sugestivo do que se deixar levar. Juntamente com todas as práticas concretas, vem a sugestão psicológica exercida pelo “pai” ou pela “mãe”. Resultado: a “criança” está “educada”.
            Claro está que o fator acima colocado entra em consonância com outro fator que, em contrapartida, é natural da contingência humana. As religiões, mais das vezes, aproveitam-se do medo humano para, nesta estrada, transitarem à vontade.

           Pode-se concluir dizendo que a influência da religião africana no Brasil é fato incontestável. Os fatores apresentados não são absolutos, claro, mas sugerem a continuação da reflexão sobre o assunto. Uma reflexão com contribuições até mesmo de outras manifestações religiosas.
            Os fatores festa, sincretismo e respostas fáceis para questões complexas são patentes e vigentes em, praticamente, todas as religiões. O fator crescimento demográfico, sem dúvida de que é considerado forte, especialmente falando de religião identificada com uma raça, possui uma influência superlativamente expressiva. Crescendo o número de representantes de uma raça, inclusive com a miscigenação genética, acompanha-o, naturalmente, a disseminação de seus valores religiosos, seja por pregação ou simplesmente por prática aberta. Dai compreender-se que, em relação aos africanos, os judeus, por não permitirem miscigenação racial, a não ser entre suas próprias tribos, identificada a genealogia, são inexpressivos na divulgação de sua religião. Junte-se a isso o fato de haverem sido bastante perseguidos, incontáveis vezes, pelos séculos a fora, tendo milhões de vidas sacrificadas e ainda mais o não serem evangelizadores.
            Assim, a influência da religião africana se faz sentir de modo nítido no Brasil, de vez que se encontra não só um povo relativamente inteirado do culto afro, como também uma liderança política (o que não se admitiria no passado, em qualquer hipótese) que busca os conselhos espirituais dos orixás e os próprios clérigos católicos a usarem indumentária africana para facilitar o diálogo entre as culturas. Admira sobremaneira que a religião dominante, hoje não tanto, tenha consentido a invasão do seu espaço pelos valores africanos, mesmo que estrategicamente, visando uma aproximação entre si e os considerados inferiores no passado.
            Sendo assim, esperem-se os resultados futuros, almejando que tudo venha a resultar em considerável encontro, não só entre os valores religiosos africanos e o culto católico, como também entre estes e outros cultos existentes no Brasil. Uma unidade teológico-doutrinária pode ser impossível, mas é possível uma união que possibilite a realização de uma fraternidade que se coadune com a mensagem global pregada pelas religiões.
            Com base nos argumentos anteriormente expostos, tem-se aqui uma compreensão que, espera-se, continue sendo desenvolvida, aprimorada, reciclada, revista, com o propósito de que, nesta caminhada, abram-se novos horizontes de reflexão cultural.
Willians Moreira Damasceno

BIBLIOGRAFIA
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BINGENNER, Maria Clara L. (Org.). O Impacto da Modernidade sobre a Religião. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
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SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. 8ª Edição. Petrópolis, RJ. Editora Vozes. 1997.
HISTÓRIA DO BRASIL. CD-Rom ATR Multimédia - 1995, Rio de Janeiro.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Zaar Editores. 1983.


[1] SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. 8ª Edição. Petrópolis, RJ. Editora Vozes. 1997.
[2] BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora - Editora da Universidade de São Paulo, 1971. Vol. I