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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

HERESIA E COOPERAÇÃO DENOMINACIONAL

 

Edvar Gimenes de Oliveira,

Pastor da Igreja Batista Emanuel em Boa Viagem, Recife, PE

E-mail: edvargimenes@uol.com.br

 
 

A palavra heresia sempre fez acender uma luz amarela em meu cérebro. Geralmente ela era associada a pessoas más, infiéis a Deus, de quem deveríamos manter distância absoluta. Engano meu. Foi na disciplina História do Cristianismo, há mais de vinte anos, que comecei a compreender o conceito, o como e o porquê da heresia. E com a  compreensão, veio a mudança na disposição interior. A partir daí, antes de participar da caça às bruxas, passei a aprofundar  o conhecimento do assunto e dos "hereges". A cautela, a honestidade e a humildade,  passaram a ser parâmetros norteadores do julgamento dos "casos de heresia".

 

Na caminhada que desenvolvi em torno do conceito heresia, desencadeada naquela aula do mestre Ramos André, encontrei dois textos curtíssimos, porém  elucidadores que merecem reflexão por aqueles que estão em busca da verdade e não apenas de se ajustar a sistemas e deles se beneficiar por razões egoístas. O primeiro, de Rubem Alves em seu livro Dogmatismo e Tolerância, pg. 50; o segundo, de William Barclay, em El Nuevo Testamento, vol. 16, pg. 139.

 

O texto de Rubens Alves esclarece como a heresia se estabelece no plano político afirmando que

 

heresia não é algo que se situa no plano da verdade, como oposição a ela. A heresia se situa no plano do poder. Ortodoxos são os fortes, aqueles que tem o poder para dizer a última palavra. Por isso eles se definem como portadores da verdade e aos seus adversários como portadores da mentira. A heresia é a voz dos fracos. Do ponto de vista dos sacerdotes, os profetas sempre foram hereges. Do ponto de vista dos fariseus e escribas, Jesus foi também herege. E como as Escrituras sistematicamente se situam ao lado dos fracos contra os fortes, é melhor dar mais atenção às heresias do que às ortodoxias.

 

O texto de W. Barclay esclarece como a heresia se estabelece no plano filosófico e espiritual:

 

a heresia sempre é um produto de uma mente que busca e investiga. É, na realidade, um sinal de vitalidade e inteligência; indica, pelo menos, que há quem esteja tentando pensar as coisas por sua conta. A heresia é em geral a ênfase desequilibrada na verdade... A heresia é uma característica do homem e da igreja que não se conforma com uma fé de segunda mão, com uma aceitação da ortodoxia, sem reflexão". Ele continua sua reflexão dizendo que não há estado pior do que o da pessoa que aceita cada ponto e vírgula de doutrina porque é preguiçoso para pensar. E conclui que, talvez seja melhor o herege que sustenta sua fé, com todo o coração, do que o crente capaz de aceitar a doutrina mas que, no fundo, não se interessa em buscar a verdade.

 

Tais textos nos conduzem à compreensão de que a Declaração Doutrinária e a Filosofia da CBB não são a Palavra de Deus; são o registro da percepção que uma maioria, num tempo e espaço, teve da revelação divina. Por isso, defender que elas devem sempre estar sujeitas a novas reflexões parece-me pacífico. Elas - a Declaração Doutrinária e a Filosofia da CBB - não foram criadas para ser instrumentos de padronização do pensamento e motivo de perseguição dos divergentes; foram criadas para viabilizar um trabalho cooperativo entre igrejas, em torno de sua missão bíblica. Se assim não fosse, seríamos incoerentes com os princípios  da liberdade de consciência e da livre interpretação das Escrituras, defendidos por nós através dos séculos.  

 

Assim sendo, um grande e permanente desafio político da liderança denominacional é ajudar seus membros a compreenderem, por um lado, a necessidade de tais documentos para a harmonia e o bom andamento dos trabalhos e, por outro, como conviver com a renovação de pensamento natural numa comunidade que estimula o estudo bíblico-teológico e cuja membrezia e, consequentemente, sua liderança, se altera numa velocidade cada vez maior devido ao seu crescimento.

 

Inevitavelmente heresias sempre surgirão, muito mais movidas por boas do que más intenções. Elas são inevitáveis no processo de construção do conhecimento individual e, geralmente, são motivadas pelo desejo de uma aproximação maior da verdade divina.  Por isso, devemos cultivar um profundo espírito de diálogo entre passado e presente, entre presente e porvir (em perspectiva) e não simplesmente tentar impor, através de regras e ameaças, nossos pontos-de-vista.

 

Todos nós pensamos ou cometemos heresias. Na Assembléia da CBB, de 2002, no Recife, apareceu no plenário uma proposta que dizia mais ou menos o seguinte: para uma igreja participar da CBB, seu pastor deve estar filiado à Ordem dos Pastores. A intenção manifesta era fortalecer os mecanismos de proteção das definições doutrinárias estabelecidas, também conhecidas como "sã doutrina". Seria, portanto, uma espécie de vacina anti-herege. Se aprovada, provavelmente acarretaria um aumento no número de sócios da Ordem dos Pastores - entidade de classe - e inibiria a consagração de pastoras, já que estas não são aceitas em alguns Estados.

 

A aprovação de tal proposta, porém, seria uma heresia em si mesma, primeiro, porque  feriria direitos individuais. Cada pessoa, inclusive um pastor, tem pleno direito de escolher a que agremiações se associar. Que é bom, recomendável até, que os pastores batistas estejam filiados à Ordem, na área de abrangência da Convenção Estadual a que sua igreja pertence, é uma verdade; porém, pode haver circunstâncias locais que dificultem a filiação, até porque, cada Secção estadual tem seus critérios de recebimento e de tratamento dos sócios, desconhecidos, inclusive, da Ordem nacional. (Penso que as Ordens Estaduais, uma vez que são secções da nacional, deveriam, se assim não for, ter seus estatutos pelo menos homologados pela nacional para ser considerada Secção). Em segundo lugar, a aprovação de tal proposta seria uma heresia porque  retiraria poderes da Assembléia Convencional e conferiria mais poderes às assembléias das Ordens Seccionais, uma vez que os critérios para filiação à tais Ordens não passam pelo crivo da Assembléia da CBB. No momento em que a assembléia de sócios de uma entidade auxiliar passa a ter mais poderes do que a assembléia da CBB, estamos cometendo uma heresia eclesiológica, criando uma espécie de presbitério, ainda que movida e recheada de boas intenções.

 

Propostas dessa natureza confirmam a tese de que alguns ainda não perceberam que os tempos mudaram e que, por isso, os mecanismos de arrolamento ou desligamento de igrejas e de preservação doutrinária, devem ser movidos pela força do diálogo, da autocrítica, do conhecimento e da ética e não da manifestação de força político-econômica. Penso que o tempo de referência para se excluir uma igreja do rol cooperativo da CBB não deveria ser inferior ao tempo que tal igreja levou para se formar, desde sua origem como congregação até ser arrolada como cooperadora. Em alguns casos levamos décadas para organizar uma igreja e semanas para abandoná-las mediante desligamento do rol. E o pior é que nos sentimos vitoriosos, felizes até, crendo que herege é a igreja excluída e não nós!