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terça-feira, 29 de setembro de 2009

BILLY GRAHAM NO VEL' D'HIV

Esse texto de Roland Barthes apresenta uma análise deveras contundente de um episódio caracterizadamente protestante, mas com seu paralelo em outras plagas religiosas. Vale a pena ler a crítica. Seria bom ler comentário sobre o este texto.
Willians Moreira
 
 

Tantos missionários nos contaram lá os costumes religiosos dos "Primitivos", que é pena que um feiticeiro papua não estivesse no Vel'd'Hiv' para nos contar, por sua vez, a cerimônia presidida pelo Dr. Graham sob o nome da campanha de evangelização. Temos aqui, no entanto, um belo material antropológico, que parece, aliás, ter sido herdado dos cultos "selvagens", visto que nele reencontramos nitidamente as três grandes fases de todo o ato religioso: a Espera, a Sugestão, e a Iniciação.

Billy Grafam demora: cânticos, invocações, mil pequenos discursos inúteis confiados a comparsas pastores ou a empresários americanos (apresentação do grupo: o pianista Smith, de Toronto, o solista Beverly, de Chicago em Ilinois, "artista da rádio americana que canta maravilhosamente o Evangelho"); toda uma encenação de charlatães precede o Dr. Graham que é mil vezes anunciado e não aparece nunca. Ei-lo finalmente, mas é só para transferir melhor a curiosidade, pois o seu primeiro discurso não é verdadeiro: prepara apenas a chegada da Mensagem. E outros intermédios prolongam ainda a espera, aquecem a sala, fixam antecipadamente a importância profética da Mensagem, que, segundo as melhores tradições do espetáculo, começa por tornar-se desejada para, em seguida, existir mais facilmente.

Pode reconhecer-se nesta primeira fase da cerimônia o grande poder sociológico da Espera, que Mauss estudou, e de que já tivemos em Paris um exemplo bem moderno nas sessões de hipnotismo do Grand Robert. Aí, também, se atrasava o mais possível a aparição do Mago, e criava-se no público, através de repetidas simulações, uma curiosidade perturbada, sempre disposta a ver realmente o que lhe fora prometido. Aqui, desde o primeiro minuto, Billy Graham é-nos apresentado como um verdadeiro profeta: suplica-se o Espírito de Deus que se digne baixar a ele, nessa noite em particular: é um Inspirado que vai falar, o público é convidado a assistir ao espetáculo de uma possessão: pede-se-lhe previamente que aceite como palavras divinas as palavras de Billy Graham.

Se Deus fala realmente pela boca do Dr. Graham, temos de reconhecer que Deus é surpreendentemente tolo: a Mensagem espanta pela sua chateza, pelo seu infantilismo. Em todo o caso, certamente, Deus abandonou o tomismo, e demonstra nítida aversão pela lógica: a Mensagem é constituída por uma infinidade de afirmações descontínuas lançadas ininterruptamente, sem nenhuma espécie de relação entre elas, e cujo conteúdo é apenas tautológico (Deus é Deus). O mais insignificante irmão marista, o pastor mais acadêmico, fazem figura de intelectuais decadentes perto do Dr. Graham. Alguns jornalistas, enganados pelo cenário huguenote da cerimônia (cânticos, reza, sermão, bênção) anestesiados pela compunção lenificante característica do culto protestante, louvaram o Dr. Graham e a sua equipe pela sua moderação: esperava-se um americanismo exacerbado, "girls", jazz, metáforas joviais e modernistas (mesmo assim, sempre houve, duas ou três). Sem dúvida Billy Graham depurou a sessão de todo e qualquer pitoresco, e os protestantes franceses puderam recuperá-lo. Apesar de tudo, o "gênero" Billy Graham rompe com toda uma tradição do sermão, católico ou protestante, herdada da cultura antiga, que só funciona em termos de persuasão. O Cristianismo ocidental sempre se submeteu, em seu método expositivo, ao quadro geral do pensamento aristotélico, sempre aceitou colaborar com a razão, mesmo quando se tratava de inspirar confiança no irracional da fé. Rompendo com séculos de humanismo (mesmo apesar de suas formas terem sido ocas e rígidas, a preocupação de um outrem subjetivo raramente esteve ausente do didatismo cristão), o Dr. Graham apresenta-nos um método de transformação mágica: substitui a persuasão pela sugestão: a violência e intensidade da declamação, o expulsar sistemático de todo o conteúdo racional da proposição, a ruptura incessante dos encadeamentos lógicos, as repetições verbais, a designação grandiloquente da Bíblia erguida na ponta dos dedos como o abre-latas universal de um "camelot" e sobretudo a ausência de calor humano, o desprezo manifesto pelo outro, todas estas operações fazem parte do material clássico da hipnose de music-ball: repito, não existe nenhuma diferença entre Billy Graham e o Grand Robert.

E da mesma forma que o Grand Robert terminava o "tratamento" do seu público por uma seleção particular, distinguindo e chamando ao palco os eleitos da hipnose, confiando a alguns privilegiados o encargo de manifestar um adormecimento espetacular, assim Billy Graham coroa a sua Mensagem por uma segregação material dos "Chamados": os neófitos que essa noite no Vel'd'Hiv', entre os anúncios publicitários da Super-Dissolução e do Cognac Polignac, "receberam Cristo" sob a ação da Mensagem mágica, são conduzidos a uma sala à parte, e mesmo a uma cripta ainda mais secreta, se forem de língua inglesa: pouco importa o que lá se passa, inscrição nas listas de conversão, novos sermões, entrevistas espirituais com os "conselheiros", ou peditórios: este novo episódio é o ersatz formal da Iniciação.

Tudo isto nos diz respeito muito diretamente: para começar, o "sucesso" de Billy Graham manifesta a fragilidade mental da pequena burguesia francesa, classe onde se recrutou, ao que parece, a maioria do público dessas sessões: a plasticidade de adaptação deste público a formas de pensamento alegóricas e hipnóticas sugere que existe neste grupo social aquilo a que se poderia chamar uma situação de aventura: uma parte da pequena burguesia francesa já nem é protegida pelo seu famoso "bom-senso", que é a forma agressiva da sua consciência de classe. Mas não é tudo: Billy Graham e a sua equipe insistiram fortemente, e por diversas vezes, no objetivo desta campanha: "desperta" a França ("Vimos Deus fazer grandes coisas na América; um despertar de Paris teria uma influência imensa sobre o mundo inteiro" – "Nosso desejo é que alguma coisa aconteça em Paris, que tenha repercussões sobre o mundo inteiro"). Obviamente tal óptica é idêntica à de Eisenhower nas suas declarações sobre o ateísmo dos franceses. A França existe para o mundo pelo seu racionalismo, sua indiferença à fé, pela irreligião dos seus intelectuais (tema comum à América e ao Vaticano; tema, aliás, já muito batido): é deste pesadelo que se torna necessário arrancá-la. A "conversão" de Paris teria evidentemente o valor de um exemplo mundial: o Ateísmo abatido pela Religião no seu próprio covil.

De fato, sabemos que se trata de um tema político: o ateísmo da França só interessa a América porque, para ela, ele constitui a primeira etapa para o Comunismo. "Despertar" a França do ateísmo é despertá-la do fascínio comunista. A campanha de Billy Graham foi apenas um episódio maccarthista.

 

BARTHES, Roland. Mitologias. 10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 192p.

3 comentários:

Ayrex disse...

A vida tem uma significação e o meu dia a dia é procura-la, já disse Browning. Creio que Grahan, só oferece aquilo que ele tem como significação vital trancedente subjetiva ou coletiva, que mau há nisso?

Anônimo disse...

Prezado Ayres,
Sua observação é pertinente.
Meu questionamento é se o próprio Billy Grahan concordaria com você. Pois que também não concordaria com Barthes e, talvez, considerasse-o um agente do "inimigo das almas".
Quanto à questão do "mau", colocada por você, acredito também que o mesmo não existe, desde que pessoas envolvidas no processo de nossa existência não sejam, ou não se sintam, de alguma forma, prejudicadas.
Conheço muita gente que se diz beneficiada por Billy Grahan. Conheço outros que o abominam. E outros há que são indiferentes ao evangelista dos USA.

No entanto, se a visão bartheana tiver fundamento, desde que revela os aspectos não só antropológicos, mas também psicológicos, sociológicos e ideológicos da daquela evangelização, vale a pena prestar atenção, com cuidado, ao que os Billy Grahans da vida e outros tantos fazem com os seus expectadores.

Obrigado por se manifestar quan
to ao assunto.
Seja sempre bem-vindo.
WM

Rodrigo Magalhães disse...

Olá meu caro amigo Willians, quanto tempo. Ando meio afastado das atividades virtuais, mas devo começar de novo. Estou lendo seus textos.dos ultimos tempos, fazia tempo que não acessava nem o meu blog, dificuldades momentaneas. Imprimi tudo e estou lendo. Voltarei pra comentá-los assim que ler! Abração mestre!