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terça-feira, 15 de setembro de 2009

THOMAS KUHN E A ATIVIDADE CIENTÍFICA

 

A visão Kuhneana revolucionou o debate filosófico quanto à compreensão do trabalho científico. A fama trouxe também a crítica. Kuhn veio a ser criticado por profissionais de outras áreas da ciência, em virtude de sua exclusão das ciências humanas do campo científico.

Um aspecto curioso na abordagem kuhneana é que toda a sua exposição da atividade científica faz lembrar os procedimentos de instituições religiosas.

Após descrever, resumidamente, a compreensão de Thomas Kuhn sobre a ciência, em função da leitura dos capítulos I, II, e III do livro "A Estrutura das Revoluções Científicas", esta abordagem deter-se-á numa discussão sobre as questões do "paradigma" e da "ciência normal" na compreensão de Kuhn, refletindo sobre o aspecto subjetivo que envolve a aceitação de um modelo científico por parte do cientista.

 

Kuhn e a ciência

A abordagem kuhneana está em contraste com outras teorias da ciência. Na verdade é uma crítica a abordagens como o Indutivismo, como método tradicional mais conhecido, e o Falsificacionismo, abordagem metológica desenvolvida por Karl Popper.

A visão de que a ciência não se desenvolve por via acumulativa e continuamente, antes cresce descontinuamente, por "saltos" qualitativos, mediante revoluções, apresenta-se em toda a abordagem do texto "A Estrutura das Revoluções Científicas". Para Kuhn, o que acontece na ciência são mudanças de paradigma. A compreensão de paradigma em Kuhn está associada ao "salto" qualitativo. Estes "saltos" acontecem naqueles períodos em que os princípios já estabelecidos são questionados e confrontados com novas possibilidades de compreensão dos fenômenos da natureza.

Nos primeiros estágios de qualquer ciência há divergências entre as interpretações científicas, mas essas divergências desaparecem em grau considerável. O desaparecimento das divergências deve-se ao triunfo de uma das escolas pré-paradigmáticas, a qual, devido a suas crenças e preconceitos característicos, enfatizava apenas alguma parte especial do conjunto de informações demasiado numeroso e incoativo (KUHN, 1978, Pág. 37).

            A visão kuhneana da ciência é cíclica (pré-ciência – ciência normal – crise-revolução – nova ciência normal – nova crise). O ciclo envolve o surgimento do paradigma, seu estabelecimento, sua crise e seu deslocamento de vigência.

O trabalho do cientista está vinculado a modelos que o condicionam a resultados, de certo modo, esperados. O conhecimento destes modelos não exige um conhecimento formal do paradigma que está por trás do mesmo. Segundo Kuhn, as características "que proporcionaram o status de paradigma comunitário a esses modelos" (KUHN, 1978, pág. 70), não precisam ser conhecidas pelo cientista.

            Um aspecto instigante da abordagem kuhneana é o que permite uma relação entre a subjetividade do cientista e a subjetividade do religioso. Da mesma forma que o cientista compromete-se com um corpo de crença, o qual é seguido em toda a sua prática, o procedimento religioso, semelhantemente, compromete-se com um corpo teológico-doutrinário ao qual o religioso converteu-se e com o qual está comprometido. Assim, desde que o cientista está comprometido com um corpo de crenças (à semelhança do religioso), pode-se questionar sobre até que ponto a razão é fator principal na empreitada científica.

A observação acima é importante comentar, pois que, ao comparar a "conversão científica" com a "conversão religiosa", Kuhn fá-lo de modo abrangente. Objetivamente, Kuhn ao pensar em "conversão científica", parece entender que o "carro chefe" do processo é a discussão racional. Na "conversão religiosa" o "carro chefe" do processo nem sempre é uma controvérsia teórico-racional. Muitos outros fatores entram em jogo. Na mudança de paradigma científico fica estampado o aspecto racional, mesmo que Kuhn assevere que muitos motivos estejam em campo (KUHN, 1978, pág. 158).

Como não poderia deixar de acontecer, o envolvimento com um modelo de interpretação da realidade limita a capacidade de percepção por parte do cientista. O treinamento recebido condiciona a visão do paradigma, em alguns casos não deixando espaço para o aspecto crítico. Isso pode explicar o surgimento da crise em função do aparecimento de outra teoria aspirante a ser paradigma. Segundo Chalmers, "o cientista não estará cônscio da natureza precisa do paradigma em que trabalha e não será capaz de articulá-la". (CHALMERS, 2001, pág. 128).

A visão kuhneana aplica-se bem às ciências naturais, mas não às ciências humanas. Se uma ciência não se adapta à teoria kuhneana não é ciência. Questiona-se: por que dar hegemonia a uma teoria em detrimento de uma prática? Tal exaltação da teoria é sinônima de atitude absolutista ante àquelas ciências que não se enquadram no padrão kuhneano. Essa limitação de visão de Thomas Kuhn compromete a sua teoria, pois que visa a colocar em "leito de procusto" um fenômeno complexo, que é o fazer científico. Tanto assim que outros teóricos não concordam com Kuhn, pois que limitar a ciência apenas ao campo da natureza, renegando as ciências humanas, é presunção estúpida e reducionista, que revela, por sua vez, querendo ou não, a pretensão kuhneana de que sua compreensão seja absoluta.

 

O paradigma Kuhneano

O termo paradigma "sugere exemplos aceitos na prática científica real que proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica" (KUHN, 1978, pág. 30). Paradigma é um modelo ou padrão aceito.

Para Kuhn, o paradigma constitui-se de princípios, teorias, conceitos básicos e metodologias que passam a orientar toda a investigação e prática científica.

Segundo Thomas Kuhn, o historiador descreve tradições científicas "com rubricas como: "Astronomias Ptolomaica" (ou "Copernicana"), "Dinâmica Aristotélica" (ou "Newtoniana"), "Óptica Corpuscular" (ou "Óptica Ondulatória"), e assim por diante" (KUHN, 1978, pág. 30). Como no campo científico, o fenômeno religioso também passa por rubricações. São as tantas denominações dos ramos do cristianismo, por exemplo: "Catolicismo Romano", "Protestantismo", "Anglicanismo", "Luteranismo", etc. esses ramos do cristianismo têm seus paradigmas teológicos com os quais estão comprometidos e em face dos quais atuam e dirigem sua compreensão da realidade humana. Esses paradigmas teológicos são usados para darem respostas aos problemas da humanidade, o que é também tarefa da ciência, enquanto orientada por seus paradigmas.

Para Kuhn, "o estudo dos paradigmas [...] prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica" (KUHN, 1978, pág. 30). Como acontece com toda e qualquer preparação, o condicionamento é inevitável.

Dá-se o mesmo com os aspirantes à atividade teológica em compromisso com uma denominação religiosa. Para se tornar líder religioso em um ramo do cristianismo faz-se necessário aderir a um paradigma de crenças que pode muito bem ser comparado com o paradigma de Kuhn.

Segundo Kuhn, "a aquisição de um paradigma [...] é um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo científico que se queira considerar" (KUHN, 1978, Pág. 31). Pode-se dizer, no entanto, que também não deixa de ser um fator de limitação de perspectivas. Um paradigma aponta sempre para direções que o seu concorrente não apontará. E como garantir que o paradigma concorrente não levaria a progressos outros se devidamente explorado?

Pode um paradigma ter tanto governo sobre a comunidade científica quanto Kuhn o deseja? Ora, vários grupos de cientistas podem fazer usos diferentes de um paradigma em função de interpretações as mais diversas do próprio paradigma vigente. Como também grupos diferentes de cientistas podem seguir paradigmas diversos. Isto é importante frisar. Uma vez que a comparação com a "conversão religiosa" foi feita, sabe-se que uma religião pode possuir um paradigma doutrinário, mas as interpretações e práticas vinculadas ao mesmo paradigma teológico podem variar de maneira inusitada. Essa variação, e mesmo mudança, leva a uma evolução e até mesmo a uma transformação do suposto paradigma, não se percebendo crise alguma nesse transcorrer dos fatos. Crises acontecem, como também outras formas de crescimento, tanto na ciência como na religião, não se justificando assim uma única compreensão de como a ciência se desenvolve. Portanto, não há um império absoluto de um único paradigma. Talvez no passado isso fosse mesmo possível. Mas hoje, com o pluralismo de abordagens científicas se desenvolvendo, fica improvável que um único paradigma consiga ser reinante de modo absoluto.

O termo "conversão", apresentado por Kuhn para nomear o fenômeno que acontece quando um cientista muda de paradigma, sugere mesmo uma atitude religiosa. Kuhn diz textualmente:

 

Quando pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente. Seu desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão e seus trabalhos são ignorados. O novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do campo de estudos. Aqueles que não desejam ou não são capazes de acomodar seu trabalho a ele têm que proceder isoladamente ou unir-se a algum grupo (KUHN, 1978, pág. 39).

 

Podem ser vistos aqui dogmatismo e segregacionismo, comuns em instituições religiosas, impregnados no fazer científico.

Os conceitos de "Paradigma" e "Ciência Normal" são conceitos fundamentais na teoria kuhneana. No livro "A Estrutura das Revoluções Científicas", paradigma é um termo "estreitamente relacionado" com "ciência normal". "Ciência normal, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase todo seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo" (KUHN, 1978, pág. 24). Com esta compreensão, Kuhn entende que o paradigma estará sempre controlando, dirigindo a "ciência normal". O paradigma estabelece modelos de práticas que suscitarão tradições de pesquisa científica. "A pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma" (KUHN, 1978, pág. 45).

Só a existência de um paradigma determina o que é e o que não é ciência. Sem paradigma não há ciência (KUHN, 1978, pág. 32)

Há uma competição entre o paradigma vigente e paradigmas outros que vão aparecendo. Aquele que se impõe, passa a ser seguido pela comunidade científica.

O empreendimento da ciência normal "parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma" (KUHN, 1978, pág. 45). Kuhn faz lembrar a ação de denominações religiosas, que, geralmente, não aceitam mudanças em sua teologia já previamente estabelecida. Na verdade, qualquer teólogo que sair dos limites preestabelecidos pelo dogma, corre o perigo de ser marginalizado pelos colegas. Os cientistas tendem a ser dogmáticos quanto a sustentarem o paradigma por eles aceito. "[...] aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos" (KUHN, 1978, pág. 45).

Da mesma forma que "abandonar o paradigma é deixar de praticar a ciência que este define" (KUHN, 1978, pág. 55), abandonar uma crença paradigmática de uma determinada religião é sujeitar-se a ser visto como apóstata.

A compreensão de Kuhn prescreve que quando um cientista não consegue resolver um problema científico, o fracasso é do cientista e não do paradigma. Tal postulação é questionável pois que paradigma é esse que não é passível de erro? Isso é pura absolutização do paradigma. Ora, se há anomalias num paradigma, como Kuhn assim o reconhece, então ele pode estar errado. Por qual prisma um paradigma pode ser considerado absoluto? Parece que será sempre do prisma do pesquisador que o aceita. Que pesquisador não é passível de contradições? Kuhn resolve esta questão fazendo uma analogia com o trabalho do carpinteiro. Caso o cientista culpe o paradigma por qualquer fracasso em resolver um problema, estará aberto às mesmas acusações que um carpinteiro que culpa suas ferramentas. O paradigma é apenas um instrumento de trabalho. Mas parece ter um poder quase que absoluto. E se essa analogia for levada mais adiante, pode-se dizer que ferramentas são passíveis de limitações à medida que novas demandas de ação funcional são exigidas em determinada tarefa. As ferramentas do homem das cavernas são obsoletas para o homo sapiens.

Quando a crise ataca um paradigma, significa que o mesmo não está suportando os fracassos aos quais está sendo submetido. Uma vez que um paradigma tenha sido enfraquecido e solapado a tal ponto que seus proponentes percam a confiança nele, chaga o tempo de revolução.

            É nesse tempo de crise que a possibilidade de mudança se estampa. Nessa crise o argumento lógico não é páreo para tantos e tantos motivos que forçam o cientista a uma mudança. Alegar a superioridade de um paradigma concorrente em função de uma análise lógico-racional é mera ilusão. Na verdade, há fatores de ordem social e política que forçam a "conversão", e esses fatores são mesmo bem mais incisivos do que o aspecto racional. Segundo Chalmers, "o fato de estar envolvida uma variedade de fatores no julgamento que um cientista faz dos méritos de uma teoria científica", a sua decisão estará subjugada à prioridade que o mesmo dá aos tais fatores (CHALMERS, 2001, pág. 132).

Com essa abordagem não se quer dizer que uma "conversão" é meramente algo destituído do racional. Evidente que em muitos casos o aspecto racional não é levado em consideração. No entanto, as nuances teórico-doutrinárias são levadas em consideração em muitos casos e o aspecto racional pode ser consideravelmente determinante. Parece que exigir que uma mudança de paradigma na ciência seja puramente racional é algo ilusório, pois sabemos que em toda e qualquer decisão ou mudança humana estão envolvidos fatores de ordem as mais diversas.

Por fim, pode ser dito que todo o pensamento de Kuhn é trabalhado com suporte de reflexão sociológica. A comunidade científica está em primeiro plano nas considerações sobre um paradigma. Um paradigma se impõe mediante uma convenção da comunidade científica. Transparece em Kuhn uma pretensão de que sua teoria seja absoluta a ponto de que ciências não naturais estejam fora do escopo do verdadeiramente científico. O "paradigma" não é absoluto na direção da ciência. O fazer científico é um fazer humano tão comprometido com fatores outros que não somente o racional quanto qualquer outro fazer humano. Por mais que se exija uma racionalidade do cientista, este não se livrará de uma subjetividade caracteristicamente religiosa em relação ao paradigma por ele assumido. Esse fato pode revelar o caráter totêmico da ciência, buscando-se nela uma salvação de problemas humanos.

 Willians Moreira

Referências bibliográficas

CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal?. São Paulo. Editora Brasiliense, 2001. 223 Págs.

KUHN, Thomas S., A estrutura das evoluções científicas. São Paulo. Editora Perspectiva, 1978. 261 págs.


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