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terça-feira, 13 de março de 2012

O MAL AGRAVADO PELO PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO

CONTINUAÇÃO DO TÍTULO " O PROBLEMA DO MAL EM LEIBNIZ"


O MAL AGRAVADO PELO PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO

Os Princípios da Filosofia ditos a Monadologia estabelecem que as mônadas, mesmo qualitativamente diferentes, estão submetidas a uma hierarquia entre si. As mônadas aperceptivas,[1] dotadas de inteligência (almas humanas) (§ 63, 66, 82), estão acima das Mônadas que têm apenas sensibilidade (alma dos animais - § 63, 66) (LEIBNIZ, 1983). Mesmo não havendo contato entre as mônadas (§ 7º da Monadologia), existe entre as mesmas uma harmonia preestabelecida. Esta harmonia é sustentada pelo fato de que Deus regula as mônadas (§ 51) "desde o começo das coisas". No § 22, Leibniz diz que "todo estado presente de uma substância simples é uma continuação natural do seu estado passado, assim também o presente está prenhe do futuro". Este § e os §§ 26, 27, 28, 36 e 37 possibilitam considerações que complicam a compreensão de Leibniz sobre o livre-arbítrio e, consequentemente, a sua explicação para o problema do mal. O § 22 assevera que o futuro já está no presente. Os §§ 26, 27 e 28 trazem a ideia da consecução. Este fenômeno ocasiona atos, tantos nos irracionais como nos racionais, que são ditos por Leibniz como atos do "papel de um velho hábito ou o de muitas percepções fracas e repetidas". O que pode ser identificado com o fenômeno do condicionamento. Este fenômeno indica que muitas das ações são puros reflexos do passado. Leibniz diz: "Em três quartas partes das nossas ações somos exclusivamente empíricos". Logo, apenas uma quarta parte de nossas ações ficaria na dependência da razão, segundo Leibniz. Aquelas três quartas partes podem ser enquadradas facilmente no encadeamento que um presente já prenhe de um futuro tem estabelecido. Restaria uma quarta parte de nossas ações para serem explicadas quanto à harmonia preestabelecida. Leibniz no § 28 apresenta o procedimento do astrônomo, que é segundo a razão. O fato estabelecido é que mesmo os procedimentos segundo a razão, pelo conhecimento das verdades necessárias, estão sujeitos ao encadeamento da harmonia preestabelecida. De outra forma, aqueles procedimentos fugiriam ao controle do Ser necessário. Leibniz refere-se a uma causa eficiente do seu ato de escrever (Mon. § 36) que engloba "uma infinidade de figuras e movimentos presentes e passados", como também "uma infinidade de pequenas inclinações e disposições de minha alma presentes e passadas que entram na sua causa final". Assim, o todo dos procedimentos, por consecução ou por razão, está controlado pelo encadeamento estabelecido na harmonia universal. Isto posto, fragiliza-se a compreensão de livre-arbítrio que Leibniz tenta estabelecer, pois que toda ação humana atual encontra-se já gestada no passado recente e/ou remoto, visto ter sua causa eficiente em uma instância que não o agente humano que a pratica na atualidade. Mesmo que se diga que há uma participação sua na ação atual, não se anula o problema do livre-arbítrio, pois permanece a determinação inicial do Ser necessário de todo o encadeamento de "figuras", "movimentos", "inclinações" e "disposições" que agiram através dos tempos para se chegar à tal participação atual.

O livre-arbítrio de Leibniz e o livre-arbítrio Spinozista
Considerando ainda que o preestabelecido encontra-se em contingência devido às limitações das mônadas, não se faculta a liberdade aos Espíritos como se pretende no sistema leibniziano, segundo o qual serão prestadas contas dos atos da "Cidade de Deus": "Enfim, sob este governo perfeito não haverá boa ação sem recompensa, nem má sem castigo" (§ 90). Ora, se tudo está relacionado e uma ação presente é decorrente de uma sequência de momentos anteriores, nada acontecendo sem uma causa, de onde viria uma boa ou má ação, assumida por uma alma humana em determinado instante, desde que se considere uma série de acontecimentos anteriores (ao infinito?) que explicariam a escolha presente? Aqui não acontece meramente o fato de Deus saber que ação será praticada, boa ou má, pela alma humana. Deus só o sabe por que o futuro foi determinado por ele. O fato de a alma humana ignorar o futuro já a exime de responsabilidade de muitas ações más involuntárias, muitas das quais acontecem em funções de suas limitações de conhecimento. Considere-se ainda que a responsabilidade pelo que se pratica está mais em função das relações sociais. Dentro do próprio raciocínio de Leibniz, Deus não seria tão tolo para não levar em consideração que os atos de sua "Cidade" (Mon. § 90) devem-se aos procedimentos por "consecução" ou por "razão", encadeados no processo da "harmonia preestabelecida", decretada por Deus mesmo. Que responsabilidade tem a alma humana diante do Ser necessário, se suas ações estão determinadas por "figuras", "movimentos", "inclinações" e "disposições" que agiram através dos tempos, para operarem ações presentes?
Na sua compreensão de uma harmonia preestabelecida, Leibniz parece, de certo modo, concordar com Spinoza, mesmo que este não fale de tal harmonia. Comparando-se o pensamento de ambos, parece que Leibniz perde força no seu argumento em defesa do livre-arbítrio.
            O raciocínio de Spinoza, considerando a "ligação infinita de causas", parece mais coerente quando pensa sobre a questão da liberdade. Para ele, a ação de Deus procede de Deus mesmo de maneira necessária. Só se pode falar de liberdade divina entendendo-se por isso a ausência de toda coação exterior, tudo procedendo da simples "necessidade de sua natureza" (LUCIEM, 1992. Pág. 164). Portanto, falar de liberdade humana é inviável. O homem é uma "coisa natural" que, como todas as coisas, "segue as leis ordinárias da natureza". Dizer-se o homem livre, é ignorar causas que operam a sua vontade. Observe-se que, em Leibniz, o próprio Ser necessário tem sua vontade submetida às leis do seu entendimento. Pode-se entender que Deus é impotente para agir à revelia de seu entendimento. É da natureza do Ser necessário agir como age e não diferente. Portanto, Deus não pode escapar de Deus, assim como a alma humana não pode escapar de si mesma.
            Spinoza entende que o homem, alma e corpo, são dois modos finitos em correspondência no seio da totalidade infinita das ideias e dos corpos, dois modos finitos que são determinados a existir e agir pelos outros modos de mesmo atributo no seio da "ligação infinita das causas", tal como o mecanismo, no mundo dos corpos (LUCIEN, 1992. Pág. 165). Observe-se aqui a expressão "ligação infinita das causas". Parece compatível com as palavras de Leibniz na Teodiceia. Como também parece corroborado pelas palavras de De Libertate:

não há substância[2] individual criada tão imperfeita que não atue sobre todas as outras e que não sofra suas ações; [...] nem há qualquer verdade de fato ou qualquer verdade relativa às coisas individuais que não dependa da infinita série de razões (Leibniz, 2006. Pág. 01).[3]

            Portanto, estabelecida esta comparação entre o livre-arbítrio Leibniziano e o livre-arbítrio Spinozista, apresenta-se mais uma incompatibilidade entre o livre arbítrio e a harmonia preestabelecida no sistema de Leibniz.

Livre-arbítrio, futuros contingentes e o impedimento divino da prática do mal
            O ponto nº 13 do Discurso de Metafísica diz: "Toda a gente concordará estarem assegurados os futuros contingentes, visto Deus os prever, mas daqui não se segue a sua necessidade". Difícil provar que não. Para Leibniz, Futuros contingentes, como hábitos, disposições e inclinações compreendidos virtualmente na noção individual de cada homem, seriam como,

[...] veios na pedra [de mármore], que assinalassem a priori a figura de Hércules de preferência a outras, esta pedra seria mais determinada, e Hércules estaria como que inato nela de alguma forma, embora não se possa esquecer que se necessitaria de trabalho para descobrir tais veios, para limpá-los, eliminando o que os impede de aparecer. (LEIBNIZ, 1984, p.10).

Tais virtualidades, portanto, inclinam o homem a agir de um modo de preferência a outro. A respeito da distinção entre o certo e o necessário acerca da realização dos futuros contingentes, Leibniz diz:

[...] que é certo, mas não necessário o que sucede em conformidade a estas antecipações, e que se alguém fizesse o contrário não faria coisa em si impossível, embora fosse impossível (ex hypothesi) que tal acontecesse (LEIBNIZ, 1979,p.128).

Ora, a necessidade dos futuros está estabelecida, pois que Deus não meramente os prevê, mas, antes, decreta-os. Por isso são previsíveis e Leibniz mesmo assevera: "embora fosse impossível que tal acontecesse". A possibilidade de acontecer é puramente teórica. Na prática, não há como escapar. Os futuros contingentes do sujeito "César" não possuem realidade a não ser no entendimento de Deus, mas se realizarão visto Deus os decretar e incutir na natureza de César. "Poderia dizer-se não ser devido a esta noção ou ideia que César praticará tal ação, pois ela só lhe convém porque Deus sabe tudo" (LEIBNIZ, 1979, p.128), mas se da noção de um sujeito é possível extrair tudo o que lhe seja devido, faz-se necessário tornar real o que até então era virtual. Se for previsto por Deus que César se tornará ditador, será inevitável esta ação acontecer; caso contrário, a noção individual mostrar-se-ia falha e imperfeita.
            A revelação cristã que tanto Leibniz quis harmonizar com a razão, apresenta um Deus que age sempre para sua conveniência. O que não é de se estranhar, pois sua vontade é soberana, embora subjugada à sua razão. Assim, Leibniz esquece que a mesma Bíblia que ele cita em seu apoio quando argumenta sobre as regras de bondade às quais Deus se submete, no ponto nº 02 (Discurso de Metafísica), apresenta um deus que, quando lhe convém, impede indivíduos de pecarem. O testemunho das Sagradas Escrituras, como Leibniz gosta de usar, apresenta os casos de Faraó e Abimeleque que, quando prestes a tomarem a mulher de Abraão, Sara, para os seus leitos, em situações diferentes, Deus se encarregou de impedi-los de cometerem tal erro (Gênesis 12: 14 – 20; 20: 1–17). Decorre disto que, se Deus impede a uns, porque não faz o mesmo com outros? Ora, se o "poder" de agir livremente de alguns é dominado por Deus, por que outros são deixados a agir de forma a "contrariar" o bem? Estes episódios bíblicos podem ser interpretados filosoficamente, de modo a expressarem no tempo o que o Ser necessário decretou em face do seu entendimento a respeito de Faraó e de Abimeleque. O futuro contingente, no "tempo bíblico", foi visto e decretado na mente divina de antemão. Ora, está determinado que a natureza das criaturas não tenha a perfeição do criador. Mas há nelas uma perfeição como criatura, visto o criador não fazer coisa alguma que seja imperfeita (diz Leibniz).
            Com respeito ao questionamento de Arnauld sobre o pensamento de Leibniz sobre o livre-arbítrio divino, a análise de Marques é bem sugestiva quando afirma que, segundo Leibniz,
A liberdade de Deus fica preservada na medida em que cabe a ele estabelecer quais conexões dentre as infinitas possíveis devem se realizar na efetividade. O intelecto divino concebe, assim, as infinitas possibilidades de combinações de eventos, cabendo à vontade divina a escolha dentre as infinitas possibilidades apresentadas (MARQUES, 1998).

Assim, Deus é livre para impedir o que bem determinar e, da mesma forma, deixar acontecer.
            Marques conclui, dizendo que "com essa teoria Leibniz aparentemente apresenta uma resposta coerente ao desafio lançado por Arnauld de compatibilização da tese da liberdade divina com a tese de que são intrínsecas as relações entre uma substância individual e as suas determinações" (MARQUES, 1998). No entanto, com essa teoria que possibilita tal liberdade ao Ser necessário, fundamenta-se, sem que Leibniz perceba, o contraditório à sua tese do livre-arbítrio humano. Ou seja, sua fuga do determinismo absoluto quanto à natureza humana torna-se inconsistente pois, como atrás foi dito, Deus interfere quando quer e bem deseja nas decisões humanas, impedindo os homens de praticar o mal, segundo as mesmas fontes que Leibniz chama ao seu favor. Ora, no princípio do Discurso de Metafísica, ponto nº 02, Leibniz chama o testemunho das Escrituras (Gênesis, cap. 01) para respaldá-lo quanto à bondade de Deus. Mas, sabe-se lá porque, Leibniz não apresenta o texto do mesmo livro de Gênesis que mostra Deus não deixando Faraó e Abimeleque pecarem contra Abraão. Se filosofando, Leibniz usa a autoridade da Bíblia para se fundamentar, por que não a usa em sua inteireza, quando a mesma o contradiz quanto à ação de Deus, interferindo no suposto livre-arbítrio humano?

O Livre-arbítrio e a limitação de conhecimento humano
            De onde viria a limitação de conhecimento ocasionada ao ser humano? Na Monadologia, § 42, Leibniz:
Segue-se, também, que as criaturas devem suas perfeições à influência divina, e as imperfeições à sua própria natureza, incapaz de ser ilimitada. É por isso que se distinguem de Deus. Essa imperfeição original das criaturas manifesta-se na inércia natural dos corpos (LEIBNIZ, 1983).

É o próprio Leibniz quem vai dizer o que é essa "imperfeição original":

O mal pode ser considerado metafísica, física e moralmente. O mal metafísico consiste numa simples imperfeição, o físico consiste no sofrer, e o moral é o pecado. Embora o mal físico e moral não sejam necessários, é suficiente que, em virtude das verdades eternas, sejam possíveis (GERHARDT, Vol. VI. Pág. 115).

            Considere-se que as duas citações acima apontam para o fato que leva a entender o mal metafísico como causador dos outros males. Ora, quem senão o Ser necessário criou o mal metafísico? A tal "inércia natural dos corpos" foi decretada pelo Criador. É esta imperfeição, um mal, que ocasiona as limitações nas mônadas. Estas limitações ocasionam o problema das escolhas erradas. Leibniz ainda diz:

Os antigos atribuíram a causa do mal à matéria, que acreditavam incriada e independente de Deus, mas nós, que tudo derivamos de Deus, onde encontraremos a fonte do mal? A resposta é que ele deve ser procurado na natureza ideal da criatura, na medida em que sua natureza está contida entre as verdades eternas, que estão no entendimento de Deus independentemente de Sua vontade.[4] Pois temos de considerar que existe uma imperfeição original na criatura, anterior ao pecado, porque a criatura não pode conhecer tudo e pode enganar-se e cometer outras faltas (GERHARDT, Vol. VI. Pág. 114-115).

O mal, a imperfeição original na criatura, aparece aqui como contido "entre as verdades eternas, que estão no entendimento de Deus independentemente de Sua vontade". David Blumenfeld diz que "issues of good and evil rest on God's intellect rather than his will" (JOLLEY, 1998. Pág. 383). Leibniz consegue libertar o Ser necessário de haver desejado o mal para a sua criação. Mas isso não elimina o problema de Deus ser responsabilizado pelo mal. De uma forma ou de outra, seja da vontade ou do entendimento divino, o mal vem de Deus. Não foi a criatura que o escolheu ou desejou.
            Segundo Russell, foi por isso que Leibniz rejeitou "o princípio cartesiano segundo o qual os erros dependem mais da vontade do que do intelecto" (RUSSEL, 1968). A conclusão é que o Ser necessário foi obrigado a seguir o seu entendimento quanto a permitir o fenômeno do mal na sua criação.
            Dito isto, a limitação do conhecimento humano não poderá jamais alcançar a perfeição quanto a agir sem praticar o mal. Mesmo que sua vontade queira o melhor, seguindo o seu entendimento, está fadada a errar de vez em quando. A imperfeição da natureza condiciona o livre-arbítrio humano a ser relativo à sua limitação de conhecimento. A imperfeição se apresenta no momento em que se faz necessária a escolha. Como Leibniz diz: "Every act of will implies some reasons for willing and ... this reason naturally precedes the act of will itself" (JOLLEY,1998. Pág. 383). Ora, a análise de razões para uma determinada escolha é ocasionada segundo o conhecimento que se tem da mesma e do que a envolve, conhecimento este que estabelece os critérios de escolha. Uma vez limitado o conhecimento é passível de erro. Consequentemente a prática do mal em face da limitação de conhecimento não é da responsabilidade do agente. A falha deve ser atribuída ao intelecto e não à vontade, visto que está no homem como no Ser necessário, segue o princípio do melhor segundo o intelecto.
            Há um decreto sobre a natureza humana que a torna imperfeita em relação ao Criador. Sendo assim, não poderá agir fora deste decreto. Se o homem age sempre dirigido pelo que entende ser o melhor, nisto imita a Deus. Neste caso, a imperfeição em relação ao Criador impede o homem de sempre fazer o bem. Sua limitação de conhecimento, de entendimento, leva-o ao erro. Mas quem é responsável por sua limitação de origem? Poderia o Criador reclamar de sua criatura? Mas o Criador pode, sim, destruí-la para empreender uma nova criação. Como o deus de Leibniz sempre faz o perfeito, e foi assim que quis o que aí está, não há nada a reparar ou recriar.

Willians Moreira Damasceno

[1] Ou conscientes.
[2] Guarde-se aqui as diferenças entre Leibniz e Spinoza quanto ao conceito de substância.
[3] LEIBNIZ, G. W. Sobre a liberdade (De Libertate). (1689?). http://www.leibnizbrasil.pro.br/delibertate.htm. Acesso em 08/03/2006.
[4] Destaque nosso.

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