tentativa de resposta ao
problema do mal
Leibniz parece ter sido um buscador de
harmonia em vários sentidos. Tanto “Os
Princípios da Filosofia ditos a Monadologia” como no “Discurso de Metafísica” e na “Teodicéia”,
há uma elaboração teórica voltada para uma harmonização de contrários. Esta
tendência de Leibniz à harmonização estampa-se em sua vida pública, em sua
teologia e em sua filosofia. Leibniz buscava mesmo uma conciliação entre pontos
os mais diversos e muitas vezes irreconciliáveis. Os pressupostos de Leibniz
apontam para uma vida que se define pela pluralidade que busca uma unidade. Na
política, na teologia e na filosofia, Leibniz viveu a construção de uma
harmonia. A harmonia era tão importante para ele que no seu título “Novos ensaios sobre o Entendimento Humano”
Leibniz apresenta-se como “Autor do
Sistema da Harmonia Preestabelecida” (LEIBNIZ, 1996). Leibniz queria
harmonia em todos os níveis da existência e procurou explicá-la na filosofia da
Mônadas. Politicamente, procurou harmonizar os povos; como também o
protestantismo com o catolicismo. Tal é a sua luta e sofrimento face às
divergências religiosas. Tratava-se de um reconhecimento da necessidade de
unidade na pluralidade.
Sua
doutrina da harmonia universal é, sem
dúvida, um marco em todo o seu sistema. É um dos pontos que dá sentido
fundamental para que se entenda o fenômeno do mal.
O
mal visto da perspectiva do todo adquire outro sentido.
Dizendo
Leibniz que Deus é a harmonia máxima
rerum, sem perceber talvez, acaba por implicar que o mal faz parte desta
harmonia. É como falar de notas dissonantes executadas por uma orquestra que só
serão desagradáveis aos ouvidos quando tocadas isoladamente. No conjunto, tudo
são harmonia e beleza. Do ponto de vista de uma bordadeira, o bordado só é
“feio” se percebido pelo lado errado. Só existe um lado pelo qual o bordado tem
o sentido estético devido, o qual a bordadeira quer lhe dar. Sob o prisma
leibniziano, este mundo é o melhor possível e está em harmonia com o plano do
seu criador. Encontrar o mal é olhar o “bordado” pelo lado errado; é escutar as
notas dissonantes isoladamente. E notas isoladas não têm sentido.
A
compreensão do mal estaria para Leibniz situada na questão da percepção humana?
O mal percebido isoladamente estaria fora do contexto maior que lhe dá outro
sentido. Dessa forma, o bem, visto isoladamente, estaria também fora de um
contexto maior e teria um sentido diferente do isolado. A compreensão do mal e
do bem tem dependido de percepções isoladas e, portanto, sem o sentido do todo,
consequentemente sem o sentido que a divindade tem do universo. E isto tem sido
o motivo para equívocos de compreensão do fenômeno do mal. Para Leibniz, o
problema está, na verdade, no homem que não consegue compreender devidamente a
realidade da criação. O § 213 da Teodicéia
deixa claro que há um erro em se supor que parte do todo, tomada isoladamente,
deve ser tão perfeita quanto o todo em si mesmo (RUTHERFORD, 1998. Pág. 08). A
perfeição está no todo. O homem só vê partes isoladas. Isto leva-nos a uma
visão relativista do mal. Como diz Rutherford, “embora uma circunstância
isolada pareça oferecer um contra
exemplo para a perfeição superior do universo, quando retornado a seu contexto
apropriado pode ser vista como a contribuir de uma maneira essencial para essa
perfeição (do todo do universo)” (RUTHERFORD, 1998. Pág. 09). E qual é o
contexto apropriado de uma circunstância? É
justamente aquele em que a variedade dos seres diferentes participam em sua
constituição e no grau de relação ou ordem que os une. Aqui se dá a harmonia;
aqui o todo é absoluto.
A
Teodicéia, primeira parte, § 9º, vem
fundamentar mais ainda esta visão sobre o pensamento de Leibniz:
todas as coisas estão
ligadas em cada um dos mundos possíveis: o universo, qualquer que seja, é todo da mesma espécie, como um oceano:
o menor movimento estende seus efeitos a qualquer distância, muito embora esses
efeitos se tornem menos perceptíveis na proporção da distância. Nisto Deus
ordenou, de uma vez por todas, a totalidade das coisas de antemão, tendo
previsto os rezadores, as boas e as más ações e todo o resto; e cada coisa
enquanto uma ideia contribuiu, antes de sua existência, para a resolução que
foi tomada sobre a existência de todas as coisas; de modo que nada pode ser
alterado no universo (ainda que em número) exceto sua essência ou, se tu
desejares, exceto sua individualidade numérica. Assim, se o menor dos males que
ocorre no mundo não ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se
omitindo e tudo se considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu.[1]
Aqui há uma ideia do todo com
suas partes interligadas. Uma observação das partes isoladas não permite a
compreensão necessária à visão da perfeição do todo. Por este prisma, as partes
são perfeitas, pois é o todo que tem o significado do ser perfeito. Existe
neste todo a harmonia do melhor de todos os mundos possíveis, fundada na
determinação divina. “Assim, se o menor dos males que ocorre no mundo não
ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se omitindo e tudo se
considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu” (GERHARDT, Vol. 7.
Pág. 108). No § 59 da Monadologia, fala-se de uma “‘harmonia universal’ que faz
toda a substância exprimir exatamente todas as outras devido às relações nela
contidas”. É a relação de interligação harmônica que possibilita a perfeição.
O mal como resultado do encadeamento de
acontecimentos-causas.
Da perspectiva de Leibniz
conclui-se que aquilo que é chamado mal pode ser ocasionado por uma cadeia de
acontecimentos-causas iniciada desde o momento da criação. Leibniz diz na
Monadologia:
Há uma infinidade de figuras e
movimentos presentes e passados entrando na causa eficiente deste meu ato
presente de escrever, e uma infinidade de pequenas inclinações e disposições da
minha alma presentes e passadas que entram na sua causa final (LEIBNIZ, 1983).
Um ato considerado bom ou mau, realizado no presente, tem sua causa eficiente
num conjunto de “figuras e movimentos presentes e passados...”, e que o tal ato
enquadra-se na realidade de que não há verdade de fato ou qualquer
verdade relativa que não dependa da infinita série de razões. Leibniz diz: “Assim, se o menor dos males
que ocorre no mundo não ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se
omitindo e tudo se considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu”
(GERHARDT, Vol. 7. Pág. 108). Esta interligação
entre os males que ocorrem no mundo complica
a compreensão do livre-arbítrio que responsabiliza o ser humano por seus atos
morais. Como pode ser responsável a alma humana por algo que extrapola o poder
de controle sobre os seus atos? Afinal, atos presentes estão na sequência entre
atos passados e futuros que acontecerão necessariamente. Sobre isto será dito
mais ao se comentar os “futuros contingentes”.
A compreensão do melhor dos mundos possíveis cria uma
desarmonização entre a filosofia e a teologia leibnizianas
Quase
todo o trabalho de Leibniz buscou uma harmonia entre filosofia e teologia. Esta
busca dava-se tanto pelo fato de o filósofo ser cristão, quanto pelo fato de
estar politicamente envolvido com magistrados. Por isto, fé e razão tornaram-se
pontos importantes de consideração na filosofia de Leibniz de modo a merecer
aqui uma análise.
O
pensamento de Leibniz sobre a harmonia preestabelecida no que respeita ao
melhor dos mundos possíveis traz em si um problema que Leibniz, parece, não
pensou que ocasionaria. Ora, Leibniz, em sua Teodicéia, tratando sobre a “questão da
conformidade entre fé e razão, e o uso da filosofia na teologia”, diz: “O
objeto da fé é a verdade que Deus tem revelado de maneira extraordinária, e que
a razão é o encadeamento de verdades, porém particularmente (quando é comparada
com a fé) daquelas que o espírito humano não pode alcançar naturalmente, sem o
auxílio das luzes da fé” (LEIBNIZ, 2006. Pág. 73). Vê-se claramente a intenção
de harmonizar a fé com a razão. É nesse afã que Leibniz não atentou para qual
era de fato o melhor de todos os mundos possíveis para Deus. Como cristão
conservador e como quem cita várias vezes a própria Bíblia para se respaldar,
Leibniz esqueceu “da verdade da revelação”, a verdade da fé. Se os dogmas da
revelação estão mesmo em conformidade com a razão, Leibniz deveria admitir que
este não é o melhor mundo possível, senão provisoriamente, pois que a “verdade
revelada” do cristianismo prega um novo céu e uma nova terra, nos quais “não
haverá choro, nem ranger de dentes”; o que, Leibniz há de convir, existe muito
neste mundo. A harmonia universal preestabelecida pode até existir, mas este
mundo, para a teologia tradicional não é o melhor. Este mundo comporta males
que só serão erradicados no próximo mundo que, segundo a “verdade revelada”,
será mesmo o melhor. Como será que Leibniz relacionava o mundo da perspectiva
cristã e o seu mundo que era o melhor dos mundos possíveis? O problema do mal
que Leibniz procurava resolver referia-se ao fenômeno que acontece no mundo
tratado pela perspectiva cristã. Está lá o problema do sofrimento humano e o
problema do livre-arbítrio que são tratados por Leibniz. Em que mundo estes
problemas acontecem? Claro, neste que é melhor de todos os mundos. Mundo aqui é
o todo da natureza. Desde que todos os acontecimentos estão interligados, o
sofrimento humano, de uma forma ou de outra, tem abrangência universal. Não há
aqui que setorizar o mundo, pensando em terra, céu, inferno ou purgatório.
Estas categorias, talvez existentes na mente de Leibniz, por ser cristão, fazem
parte do todo. Portanto, visto haver para a teologia um inevitável futuro mundo
melhor, no qual não haverá o mal, Leibniz falhou em tentar uma conformidade
entre fé e razão. Sua filosofia solapou sua teologia.
Willians Moreira
Damasceno
Esta abordagem continuará no texto "O MAL AGRAVADO PELO PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO".
[1] Texto original: Car il
faut savoir que tout est lié dans chacun dos Mondes possibles: l’univers, quel
qu’il puisse être, est tout d’une pièce, comme un Ocean; le moindre mouvement y
etend son effect à quelque distance que ce soit, quoyque cet effect devienne
moins sensible à proportion de la distance: de sorte que Dieu y a tout reglé
par avance une fois, pour toutes, ayant prevu les prieres, les bonnes et les
mauvaises actions, et tout le reste; et chaque chose a contribué idealement
avant son existence à la resolution qui a été prise sur l’existence de toutes
les choses. De sorte que rien ne peut être changé dans l’univers (non plus que
dans un nombre) sauf son essence, ou si vous voulés, sauf son individualité
numerique. Ainsi, si le moindre mal qui arrive dans le monde y manquoit, ce ne
seroit plus ce monde, qui tout compté, tout rabattu, a été trouvé le meilleur
par le Createur qui l’a choisi (GERHARDT, Vol 7. Págs. 107 e 108).
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