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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

DESCARTES

UM EXEMPLO DE ESPÍRITO FILOSÓFICO

 

O Discurso do Método de René Descartes aborda a decepção deste filósofo ante o conhecimento até então adquirido pela humanidade; aborda as aventuras do filósofo em busca da verdade; como também deixa transparecer a altivez do filósofo. Além da abordagem objetiva, O Discurso do Método destila a retórica praticada por Descartes.

Descartes é um exemplo fidedigno de alguém que encarnou o espírito filosófico, servindo de estímulo para que ninguém receie quebrar as cadeias dos preconceitos em tantos já enraizados e que, no mais das vezes, prende o espírito em um senso comum ridículo.

 

O ITINERÁRIO À LIBERTAÇÃO DA TRADIÇÃO

No primeiro momento Descartes relata como acontece a sua desilusão com o conhecimento aprendido. No 5º § desenvolve-se a abordagem sobre a instrução de Descartes. Referencia-se ao estudo das letras desde a infância. Os primeiros oito enunciados expressam sua esperança inicial e sua frustração, descobrindo-se ignorante (enunciado nº 8). Mesmo tendo estudado na melhor das escolas, não se sentia satisfeito. Percebe-se nisto o espírito inquieto do filósofo.

Descartes cita elementos do seu percurso de instrução, como a melhor escola e Exercícios com os quais se ocupam as escolas: línguas, fábulas, leitura de todos os bons livros, oratória, poesia, matemáticas, teologia, filosofia, jurisprudência, medicina e outras ciências.

Depois de toda uma maratona acadêmica chega Descartes à conclusão de que "não havia doutrina no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir" (5º §, enunciado nº 20).

Descartes continua insistindo na absorção do conhecimento estatuído. Entendia a importância do aprendizado das línguas; entendia que o espírito se desenvolve com as realizações históricas. Não ignorava a importância em geral das ciências.

Mesmo entendendo certo valor do conhecimento, chegou um momento em que Descartes julgou já ter gasto bastante tempo com o estudo das realidades por ele conhecidas: línguas, oratória, poesia, matemáticas, teologia, filosofia e outras ciências. (7º § Enunciado nº 1).

Descartes chega ao ponto do extravasamento. "Aqui está por que apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. (13º §, enunciados nºs 1 e 2).

Observa-se que Descartes é bem explícito quanto a "sair da submissão aos professores". Aqui é o ponto máximo: estar disposto a romper com os argumentos de autoridades que direcionam a sua vida. Daí parte para a busca de sua própria compreensão.

 

A AVENTURA É O CAMINHO DO FILÓSOFO

Depois de sua desilusão com o conhecimento estabelecido, Descartes resolve viajar pelo mundo. Não se contenta com o mero conhecimento de sua cidade. "Aproveitei o resto de minha juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para frenquentar pessoas de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas (propósito)".

Depois de suas viagens, Descartes chega à conclusão de que... "a verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos." (Enunciado nº 1-3).

"Porém, após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, tomei a decisão de estudar também a mim próprio [...]. Isso, a meu ver, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros." (Enunciado nº 13-15).

Na verdade, Descartes reconheceu a máxima socrática: "conhece-te a ti mesmo". A partir de si mesmo Descartes chega ao objetivo de sua investigação.

Mesmo havendo a possibilidade de uma aventura pelos lugares da terra, na verdade, a aventura maior é no mundo da reflexão subjetiva. O filósofo é aventureiro. Não se fixa num único terreno. Sente o desejo de desbravar terras desconhecidas do conhecimento.

 

A ALTIVEZ DO FILÓSOFO

O filósofo precisa mesmo ser altivo; querer alcançar regiões da reflexão que outros ainda não alcançaram. Para isto não deve ter medo de ferir a falsa moral da sociedade, podendo até parecer, para alguém, arrogante, orgulho, presunçoso ou adjetivo que o valha. Afinal, a franqueza em dizer o que se pensa pode parecer a muitos arrogância.

Descartes quer conhecer o todo possível. Não se contenta com particularidades. Isto é patente no filósofo. A filosofia busca a compreensão da totalidade. As particularidades que fiquem para as ciências particulares. Embora o Método Cartesiano parta do princípio analítico: compreender as partes para alcançar o todo. A filosofia é altiva e não se contenta com o pouco das particularidades. Descartes não se contenta com o mero conhecimento de sua cidade. Ele quer conhecer o mundo; a totalidade. Lança-se então a várias experiências. Pena é que tenha morrido relativamente cedo, em virtude da pneumonia que o atingiu.

 

A RETÓRICA DE DESCARTES

A apresentação que alguém faz de si mesmo sempre carrega algo que revela suspeita. Ao Apresentar-se como estudioso das matemáticas, teologia, filosofia, letras, oratória, ciências; ao se revelar como alguém que deseja aprender: "eu sempre tive um enorme desejo de aprender..." (13º §, Enunciado nº 14); ao reconhecer a sua ignorância: "Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito... senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância." (5º §, enunciado nº 8); como se não bastasse, passa uma desconfia de si mesmo quanto a uma consciência de poder estar equivocado: "Contudo pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor." (3º §, enunciado nº 1 – 4). Cumula ainda o seu Discurso expressando que tem um objetivo modesto, não impondo o seu método: "Meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha." (4º §, enunciado nº 1 – 2). Mostra-se conhecedor do conhecimento da época; diz ter estudado na melhor escola; diz ter lido todos os bons livros; mostra-se um homem viajado.

O argumento por traz está claro: não há como desconsiderar o meu método, o meu conteúdo. Todo o seu relato de como se processou a sua caminhada em busca do conhecimento pode valer como premissa para a conclusão: o meu método é o melhor e não há como desconsiderá-lo. O que não passa de uma premissa puramente retórica. O próprio fato de Descartes "aconselhar" a cada um a busca da própria verdade, dizendo que não se deve acreditar em tudo o que ele diz é uma medida retórica que ratifica o conselho dele. Pode parecer humildade ou que ele estar reconhecendo as suas limitações. Mas ele mesmo vem a dizer que o seu método é o melhor. Para ele, a verdade do seu método está sobre todos os outros. O conteúdo existencial pode atuar como indução retórica para alcançar o objetivo do filósofo. O fato é que Descartes logrou êxito. Passou a ser considerado como o pai da filosofia moderna.

Não se prescreve a retórica pela retórica. A retórica deve ser vista também como instrumento da pedagogia. Quando Descartes destila toda o seu Discurso, ele está passando também um estímulo psicológico ao seu leitor para que este se sinta apto e desarmado diante do conteúdo apresentado, o que facilitará o aprendizado e a compreensão do exposto pelo filósofo.

Descartes trabalha retoricamente não só com o lógos, mas também com o ethos. Neste sentido, significa que Descartes apresenta seus "motivos" ou "causas" de sua conduta, ou mesmo das "forças" que determinaram o seu caminho, que não poderia ser outro, senão aquele que fez chegar ao conhecimento do método por execelência.  Para ir à razão do leitor, apresenta a si mesmo (4º §, enunciado 5: "não proponho este escrito senão como história - e esta é a sua história).

Do modo como Descartes expõe as suas idéias, capta-se a altivez filosófica, fruto da sinceridade. Seria mais danoso para ele ser meramente retórico, elogiando os métodos já existentes e conhecidos, e depois sair com: "a minha idéia é melhor". De outro modo, ele foi muito direto e transparente:

 

... observando com olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, ..., atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi"[1]

 

Não seria possível alguém falar como Descartes falou, tendo sinceridade em seu coração? Afinal, posso ser bastante transparente para dizer o que entendo sobre um assunto sem precisar de uma falsa modéstia que me faça parecer humilde só para ser aceito e agradável.

Aí está Descartes através dos séculos. Mais ou menos forte hoje, valeu ou não valeu a sua retórica?



[1] René DESCARTES, Discurso do Método. In: Descartes, Pensadores. Pág 36.

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