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quarta-feira, 12 de agosto de 2009

DIVISÃO FUNDAMENTAL QUE DEFINE A NATUREZA SEGUNDO JOÃO ESCOTO ERIÚGENA*

João Escoto Eriúgena, filósofo, irlandês, do século IX, foi um dos mais brilhantes pensadores do período escolástico.
 
            O Livro I do Periphiseon inicia-se com o Mestre (Eriúgena) apresentando o seu conceito de natureza. Na segunda fala do Mestre o texto assim reza: "Como dizíamos, pois, natureza é o nome geral apropriado para tudo o que é e tudo o que não é" (ERIÚGENA, 1984. Pág. 45) Por tudo o que é entende-se que se refere às coisas que podem ser percebidas pelo espírito ou que podem ser apreendidas pela inteligência humana. Por tudo o que não é pode-se entender que se refere às coisas que não podem ser alcançadas pela inteligência humana. De imediato, capta-se o caráter epistemológico da definição de Eriúgena sobre a natureza. Na verdade, depreende-se do Periphiseon que a natureza é pensada como conhecimento e ignorância. A natureza é tanto as coisas que são (o que pode ser conhecido), quanto as que não são (as coisas que a inteligência não tem acesso).
            A partir desta definição da natureza, Eriúgena, seguindo o método dialético, procede a dois movimentos: divisão e unificação da natureza. Compreende-se assim os dois termos latinos que vão caracterizar a obra: processio e reversio (ERIÚGENA, 1984. Pág. 21). Sendo o primeiro movimento condição do segundo.
            Eriúgena apresenta "cinco modos de interpretação" da primeira e fundamental divisão da natureza. O primeiro modo de interpretação diz respeito ao que pode e ao que não pode ser percebido. Diz o Mestre que tudo quanto é percebido pelas sensações ou pela inteligência é o que é (as coisas que são). Aquilo que escapa a todo o sentido e também ao intelecto e razão é o que não é (as coisas que não são). Neste particular, o que se pode afirmar das coisas que são é apenas que são; nunca o que são. Assim, o conhecimento refere-se às coisas que são e a ignorância às coisas que não são. Deus, por sua vez, "encontra-se" na dimensão da ignorância humana; na "dimensão" do não-ser. O que na verdade se percebe, segundo Eriúgena, são os acidentes e não a essência da realidade.
            O segundo modo de ser e não-ser refere-se "às ordens e diferenças da natureza criada" (ERIÚGENA, 1984. Pág. 48). Em outras palavras, desde as coisas criadas mais excelsas até àquelas mais inferiores há uma escala de afirmação e negação de umas em relação às outras. Segundo o Mestre, a afirmação do inferior é a negação do superior; a negação do inferior é a afirmação do superior. A afirmação do homem é a negação do anjo, enquanto que a negação do homem é a afirmação do anjo. Em síntese, o que se afirma de um, nega-se do outro. Na verdade, conhecimento e ser dependem da afirmação. Parece que neste ponto Eriúgena se refere exclusivamente às criaturas intelectuais, de vez que o afirmar e o negar é da esfera do homem. Fica claro assim, que o ser atém-se ao que é afirmado e o não-ser ao que é negado.
            O terceiro modo de interpretação atém-se aos fenômenos da natureza e as causas ocultas dos mesmos (ERIÚGENA, 1984. Pág. 49). Tudo o que aparece, tudo o que se manifesta à compreensão do homem: a realidade dos efeitos, seja em forma ou matéria, lugar ou tempo é o que é; o que está oculto (na profundidade da natureza) é o que não é. O exemplo dado está em consonância com a teoria das idéias de Platão. Existe uma idéia de humanidade da qual todos os homens particulares participam e são o efeito. Esta idéia está oculta. Daqueles homens que aparecem no tempo, lugar, etc., diz-se que são. Dos que ainda não apareceram, diz-se que não são. Encontram-se ocultos na imagem divina. O exemplo da virtualidade da semente, sugestivo por demais, vem ilustrar o ensino do Mestre. Na semente, o potencial é não-ser. Só se torna ser quando manifestado e perceptível na fauna.
            O quarto modo de interpretação de ser e não-ser refere-se ao que é fixo, estabelecido e à variabilidade e à multiplicidade contidos na natureza (ERIÚGENA, 1984. Pág. 50). Só é aquilo que se compreende pelo intelecto. Há coisas que existiram e não existem mais. Realidades que são num momento, mas em outro já não o são mais. O exemplo dado é o de corpos que nascem e depois se corrompem. O processo de corrupção já implica no não-ser. Atém-se ao movimento que acontece na natureza, a qual se permite uma dinâmica entre o ser e o não-ser. Ou seja, o que é multiplicidade é o não-ser. O particular é o não-ser. O universal é o ser. Este é o que pode ser conhecido. Por isso é. Pois conhecer é ser.
            E o quinto modo de interpretação de ser e não-ser refere-se ao ser humano (ERIÚGENA, 1984. Pág. 50). O homem perdeu o ser quando de sua queda e seu afastamento de Deus. De sorte que o homem não é enquanto não passa pela restauração que a graça de Deus lhe outorga através de Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus. A linguagem bíblica, na carta paulina aos colossenses, elucida bem esta compreensão quando diz que Deus "nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor" (Colossenses 1, 13). Estar nas trevas é estar no não-ser. Passar para o reino do Filho do seu amor é estar no ser. Neste sentido, o estado de pecado é não-ser. A ignorância acerca de Cristo é o não-ser. O homem só passa a ser quando é recuperado em Cristo. Assim então ele recupera a dignidade de imagem divina na qual havia sido criado.
            Todo este discurso eriugeniano parece reportar a uma compreensão platônica do ser e do não-ser, elaborada por Platão em seu diálogo, "O Sofista", quando se percebe que ser e não-ser atém-se a condições de relação. Pela teoria platônica, todo ser é o não-ser de alguma coisa, e este não-ser tem mais realidade do que aquele outro ser. Ora, pela perspectiva eriugeniana, só o que o intelecto e os sentidos apreendem pode ser dito como ser. Tudo o que escapa à compreensão humana é dito como não-ser. Daí entender porque Deus é não-ser. E aqui é bom que se frise o primeiro modo de interpretação de ser e não-ser. Neste particular, o que se pode afirmar das coisas que são é apenas que são; nunca o que são. De Deus se afirma apenas que é, nunca o que é. Assim, não só epistemológica, mas também ontologicamente, a ignorância é maior do que o conhecimento. O ser é o que se enquadra nas categorias aristotélicas e o não-ser é o que escapa às mesmas (GILSON, 1995. Pág. 250).
            Assim estabelece Eriúgena a sua definição de Natureza. Partindo da mesma, vai elaborar todo um movimento de divisão e analítica mostrando como tudo, num processio e num reversio, começa em Deus e volta para ele mesmo. Ser e não-ser constituem uma unidade. A unidade da natureza.

Willians Moreira
Referências Bibliográficas:

ERIÚGENA, Juan Escoto. División de la naturaleza – Periphiseon. Libro I, Barcelona. Ed. Orbis, 1984

GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo. Martins Fontes. 1995. 949 Págs.

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