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sábado, 8 de agosto de 2009

A ÁRVORE DO BEM E DO MAL

Machismo e Pessimismo no Relato da Queda do Homem

 

   E a Adão disse Deus: "Você deu ouvidos à sua mulher e comeu aquela fruta que Eu disse para não comer. Por isso, lanço maldição sobre a terra. A vida toda você terá de lutar para conseguir o ganha-pão. Ela produzirá também espinheiros e ervas daninha; e você comerá verduras. A vida inteira você vai suar para dominar a terra, até o dia de sua morte". Assim, o Senhor Deus mandou o homem embora do jardim do Éden (Gen. 3:17-34)[1]

 

            De início, um aperitivo.

            "Árvore do bem e do mal" é uma figura bem sugestiva para se falar sobre realidades que despertam os nossos desejos. Da mesma forma, a figura do Éden estimula a reflexão sobre situações vividas pelos humanos, as quais, depois de existenciadas, reportam-nos àquele dito popular: "eu era feliz e não sabia". É isso mesmo! Às vezes, perdemos os nossos Édens por desejarmos o fruto de alguma "árvore do bem e do mal". Essa figura pode ser interpretada como um ponto referencial; algo que aponta para alguma tomada de compreensão; nada necessariamente histórico. Ou seja, podemos ter necessidade de alguma referência que nos situará num estado que não gostaríamos de alcançar, mas só o percebemos depois que alcançamos o tal estado. Às vezes somos levados a desejar algo que, pela nossa interpretação, dar-nos-á uma melhor condição de existência, mas não percebemos que também entraremos numa nova condição que nos fará rejeitar o antigo desejo de chegar aonde chegamos. O curioso é que todos têm "árvores do bem e do mal". A questão é: como alcançarmos um entendimento de cada situação para não sermos pegos de surpresa em algum momento? Essa é uma abordagem de reflexão sobre o texto de Gênesis certamente cabível.

O Gênesis diz que "a mulher viu que a árvore era bonita e que as suas frutas eram boas para comer" (3, 6). O papel dos olhos reporta-nos ao universo da percepção. No momento em que a mulher acreditou na sugestão, a "árvore" adquiriu um colorido atraente e na verdade pareceu boa. Esse é um plano explorado consideravelmente pela propaganda. Ela tem o poder de nos fazer ver o que não vemos ou não precisamos ver. O livro de Provérbios 14, 12-13 diz: "Há caminhos que a alguns parecem retos, mas no fim conduzem à morte". A ilusão é tão forte e o Éden se vai. Depois não há mais condições de voltar ou recuperar o jardim-paraíso, pois são levantadas barreiras que não permitem mais a recuperação do "Éden". O problema é que o significado de tal Éden só é percebido depois. Qual não foi o sofrimento de Adão e Eva ao relembrarem o Éden, diante dos espinhos que passaram a enfrentar. E aqui lembramos os lamentos de tantos: "Bem que meus pais diziam".

É necessário que tenhamos cuidado com nossas decisões futuras para que não estejamos escolhendo a "árvore do bem e do mal". Essa "árvore do bem e do mal" pode ser um casamento, uma profissão, uma casa, uma nova situação. Há certas decisões que não precisamos tomar.

 

Agora, o grosso da questão.

Além dessa interpretação existencialista que este texto possibilita, existe a possibilidade de interpretarmos o texto de Gênesis, capítulo três, como reflexo do machismo e do pessimismo judaico, respectivamente aplicados aos humanos e à terra; ou seja, uma interpretação pelo viés puramente cultural. Por esse ângulo, per­cebe-se a sagacidade do texto contra a mulher quando as palavras "você deu ouvi­dos à sua mulher" são colocadas na boca do Criador. Num primeiro momento, no qual a mulher abriu sua boca, suas palavras enredaram o homem no caminho da desobediência. E qual foi o resultado de o homem dar ouvidos à mulher? Segundo as palavras colocadas novamente na boca do Criador: "maldição sobre a terra".

O texto da queda do homem apresenta dois pontos cruciais para uma compreensão antropológi­ca da cultura bíblico-judaica. Primeiro, apresenta uma visão machista que enquadra a mulher em um papel de veículo da tentação para a desobediência; segundo, sugere uma visão pessimista de uma terra amaldiçoada. Na verdade, essas duas visões permeiam o texto bíblico de uma forma contundente. Milhares de exemplos podem ser citados na Bíblia, mos­trando como a mulher é mesmo considerada como objeto e como ser aviltado, cau­sador de transtorno ao homem. Refletindo o preconceito contra a mulher, é curioso que a trama do texto não apresenta o homem como foco da atenção da serpente?

Séculos de tradição judaica criaram na mente do homem judaico um condicionamento que aparece refletido em toda a sua literatura bíblica. Literatura esta que é marcadamente escrita por homens. Esta tradição literária judaica foi mordaz com a mulher, condenando-a a uma quase marginalização, senão um isolamento. Paulo de Tarso, que nunca deixou de ser judeu quanto a muitas de suas tradições, escreveu a seu discípulo, Timóteo, dando-lhe uma orientação que reflete a realidade da mulher hebréia:

 

A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em trans­gressão (I Tim. 2, 11-14).

 

Silêncio e sujeição: duas palavras que resumem a situação da mulher dian­te do homem. Silêncio porque, quando falou pela primeira vez, levou o homem à desobediência. Por isso deve estar calada. Sujeição porque, uma vez enganada, caiu em transgressão. O transgressor deve ser punido. É grave a situação. Sem contar que o texto apresenta as dores de parto como também resultado do castigo sobre a mulher. É estigma demais para um ser por tanto tempo oprimido.

Dois agravantes mais são postos pelo texto: Primeiro: Paulo hierarquiza a re­lação entre o homem e a mulher, pois que primeiro foi formado Adão e depois Eva. A ideologia é que, por ser primeiro formado, o homem é a autoridade. Segundo: porque foi a mulher quem caiu em transgressão. E, caindo em transgressão, arrastou o homem consigo. Ou seja, biológica e moralmente a mulher está fadada a ser menor do que o homem. Sobre a mulher pesa a vergonha de ter sido enganada e ter transgredido. E, como se não bastasse, por ter sido enganada, revelou-se inapta para merecer confiança. Daí à tradição judaica não dar crédito a uma mulher como testemunha foi um passo curtíssimo.

Por que o texto diz que Adão não foi enganado? Porque Paulo crê que Eva não enganou a Adão. E tem sentido, sim. Adão deveria ter con­trole da sua situação, afinal ele tinha ciência da ordem de Deus. A partir destes pressupostos, quem mais pe­cou? Digo: Adão, e não Eva. Uma pessoa é enganada por outra quando sua ca­pacidade de discernimento é suplantada pela sagacidade de alguém. Na verdade, Adão não foi enganado. Ele desobedeceu a Deus consciente do ato que praticava. Sejamos razoáveis: quem merece pena maior? Aquele que praticou uma ação pensando que estava a fazer o melhor, ou aquele que prati­cou a ação sabendo que estava mesmo a desobedecer? Percebe-se, no entanto, que toda a responsabilidade da transgressão para efeito de punição social foi colocada sobre Eva. Por que tal ofensiva à mulher? A explicação para tal deve-se à visão de uma cultura machista em que o homem é o senhor e a mulher é um mero objeto dos desejos masculinos. Deste ponto a escrever uma lenda na qual palavras são colocadas na boca de uma divindade, condenando a mulher, o espaço é ínfimo. O re­sultado é uma vituperação milenar sobre a mulher. Aquela que seria auxiliadora tornou-se a vilã.

Esta visão é caótica, deprecia a mulher e não merece o aval de ninguém

No decorrer da história encontramos muitos que ensinaram uma visão semelhante a respeito da mulher. Aristóteles entendia que a mulher é um homem incom­pleto (Política - Livro I, cap. II, § 12)[2]. No seu Tratado da geração dos animais [3], recebe destaque o papel gerador e ativo do macho na procriação. Este princípio geral da natureza[4], Aristóteles ilustra-o com provas tiradas da fisiologia da união sexual. Por não emitir esperma a mulher é inferior[5]. Para Aristóteles "as fêmeas são naturalmente mais fracas e mais frias do que os machos; pode-se crer que isto é uma espécie de inferioridade de natureza do sexo feminino".[6] O professor de Aristóteles, Platão, foi mais longe no rebaixamento da mulher. Professor e aluno acreditavam na inabilidade natural da mulher para o exercício de funções de mando[7]. Coisa que a contemporaneidade contradiz perfeitamente.

Agostinho, o bispo de Hipona, ensinava que

 

A imagem de Deus reside no homem, de modo a que ele seja tido como que senhor; de onde alguns deduzem que o homem tem o império de Deus, como seu vigário [...] Mas a mulher não é feita à imagem de Deus (Decreto, 2. p., C. 33, q. V, c. 13)[8].

 

O pressuposto é que Adão saiu de Deus, mas Eva saiu de Adão. Ela não é a imagem nem de Adão nem de Deus.

            Tomás de Aquino partilhava dos pontos de vista de Aristóteles sobre a condição feminina. Na Summa theologica [9], Tomás diz

 

[...] que, pela natureza particular, a mulher é algo de deficiente e ocasional. Pois a virtude ativa que reside no esperma do varão, tende a produzir um efeito semelhante a si mesmo, de sexo masculino. Porém, se foi gerada uma mulher, isto aconteceu por causa de debilidade da virtude ativa, ou por alguma indisposição, ou ainda por alguma mudança extrínseca, como os ventos do sul, que são úmidos.

 

Uma visão que coloca a mulher numa condição de infe­rioridade em relação ao homem merece desabono total. Não comungo com a visão bíblico-judaica, nem com estes outros doutrinadores históricos sobre a mulher.

Portanto, abaixo todos os que usam o nome de Deus para cometer injustiças contra a mulher.

A outra problemática do texto de Gênesis é a visão pessimista de uma terra amaldiçoada. O texto é bastante incisivo ao colocar na boca de Deus as palavras conde­natórias: "Porquanto deste ouvidos à tua mulher; maldita é a terra por causa de ti" (Gen. 3, 17). Essa maldição está também refletida no texto bíblico da 2ª Carta de Pedro, capítulo 3, 10 a 12:

 

10 Mas o dia do Senhor virá como o ladrão em a noite, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se abrasarão e desfarão, e a terra, e todas as obras que nela há, se queimarão.

11 Pois como assim seja que todas estas coisas se desfazem, quais vos convém a vós ser em santo trato, e piedade?

12 Esperando, e apressando-vos para a vinda do dia de Deus, em que os céus, sendo incendiados, se desfarão, e os elementos, sendo abrasados, se fundirão (derreterão).

 

Este texto refere-se ao dia do juízo final. Não só homens serão julgados mais a própria terra, por conta da maldição, passará por purificação pirotécnica. Na verdade esse pessimismo mais reflete uma miopia quanto à natureza do universo. Explicar fenômenos naturais de forma mítica contribui para neurotizar os humanos que se deixam levar por essas explicações. Que a Terra será torrada não é nenhuma novidade para os cientistas. Esse fenômeno terá lugar quando chegar o dia em que a nossa estrela maior se tornar uma Nova. E isso é fenômeno natural; não se trata mesmo de maldição divina.

De outra forma, querer explicar os espinhos como castigo de Deus é ser no mínimo infantil, não querendo admitir que é da natureza dos seres vivos a busca da autoproteção. Que jardim é esse que produz flores sem espinhos? Por que rejeitar a existência dos contrários? Por que ter aversão aos espi­nhos, se estes são as defesas que a natureza providenciou para algumas de suas criaturas? O texto de Gênesis, nos termos desta abordagem, mais parece um reflexo de um homem que nunca está satisfeito diante das dificuldades da vida? Por que não vê as dificuldades com ou­tros olhos? Como, por exemplo, com os olhos de Provérbios 15: 13,15; 17, 22, que diz que somos aqui­lo que projetamos na nossa subjetividade:

 

O coração alegre anima o semblante, mas a preocupação do coração aba­te o espírito. O coração sensato procura o saber, mas a boca dos insensatos ocupa-se de tolice. Todos os dias do oprimido são maus, mas um coração feliz é um festim pe­rene.

 

Conhecemos o bem e o mal quando passamos a desfrutar das amarguras de uma nova situação e reconhecemos que uma situação anterior era melhor.

            Se vamos tirar proveito do texto de Gênesis, por que não o lermos pelo prisma do otimismo? A terra é um lugar maravilhoso e digno de nossa presença. O homem foi levado a um novo mundo. Ele foi levado a não viver na limitação de um suposto jardim e em uma suposta inocência, muitas vezes, se não todas, irmã da ignorância. Seria a inocência melhor do que as novas situações que abriram os olhos hu­manos, possibilitando-lhes progressos?

Graças a Deus Adão ouviu a sua mulher.

Teria Jesus sido crucificado se Pilatos tivesse ouvido a sua mu­lher (Mt. 27, 19)? Mas dirá o opositor: "Era necessária a morte de Jesus. Ele é a nossa salvação da condição criada com a queda do homem no Jardim do Éden". E eu respondo: Considere-se esta ideologia como também resultado da mentalidade judaica, criadora do "mito da queda". Quantos males foram e ainda serão desencadeados por essa mentalidade?

Willians Moreira

[1] BLH.

[2] ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2002.

[3] Ed. util. Traité de la génération des animaux, ed. J. Barthélemy-Saint Hilaire, Paris, 1887.

[4] I, 2, 2-5; I, 14, 15-18; I, 15, 4-8; II, 5, 6-7.

[5] I, 13, 12-13; I, 14, 2-3, 15-18; II, 5, 20.

[6] IV, 6, 7.

[7] II, 5; II, 6.

[8]  S. Agostinho, Quaestiones veteris et novi test., c. 106.

[9] Summa theol., I, 92.1 ad 1.

3 comentários:

Rogério Calew disse...

Olá Willian Moreira, ei rapaiz, difícil não te chamar de Pastor Willian.rsrs! Era um guri e cresci te chamando assim...rsrs! Quem sou eu para comentar um texto teu, excelente exegese e aplicações hermenêuticas, iluminariam muito bem várias comunidades, caso assim elas desejassem né! Gosto dessa leitura bíblica que se apresenta na contra-mão da sistemática, acredito que seja o único caminho para desfazer os mitos criados pela pregação cristã ao longo da história, trabalho nada fácil, mas "único". Um abraço meu pastor.rsrs!

Anônimo disse...

Camarada Rogério,
Fique à vontade, rpz!
Esqueça o pastor e pense no amigo.
Conte comigo.

Rodrigo disse...

perfeito! sEM PALARAS!

aBRAÇÃO

rODRIGO mAGALHÃES

www.rodrigocmagalhaes.com