Sócrates
é uma dessas figuras imortais da História que se converteram em símbolo. Do homem de
carne e osso e do cidadão ateniense nascido em
469 a. C.
poucos traços ficaram gravados na história da humanidade, quando esta o elevou
à categoria de um dos seus poucos “representantes”. (JAEGER, 1994, pág. 493).
A grande maioria dos
comentários sobre Sócrates não se dá ao trabalho de abordar, especifica e
substanciosamente, a sua consciência religiosa ou a sua certeza de estar
servindo a um deus. Encontram-se algumas linhas, aqui e acolá, considerando o
assunto, mas de modo lacônico. Ventila-se, predominantemente, o Sócrates
filósofo. A filosofia socrática como cumprimento de uma missão religiosa não é
expressivamente comentada. Seria este fato indício de preconceito por parte dos
filósofos contra a religião? Certo que não. Até porque a própria filosofia
reflete seriamente sobre o fenômeno religioso. Considere-se que Sócrates, em alguns
momentos, elabora um discurso com linguagem religiosa como instrumento retórico
para alcançar um fim filosófico? Por que não seria possível? Fato é que tanto
Platão como Xenofonte apresentam um Sócrates inteiramente compromissado com a
religião.
Cabe assim discutir esta
questão de modo direto, procurando-se um melhor direcionamento sobre este
assunto.
SÓCRATES E SUAS VÁRIAS VERSÕES
O debate sobre qual versão de
Sócrates realmente merece crédito já foi bastante acirrado. O “Problema
socrático” já se encontra, de certo modo, resolvido com o consenso de um
“Sócrates provável”, resultado dos vários testemunhos apresentados por seus
seguidores.
Repassar algumas versões,
direcionando-as para o foco da discussão proposta, alicerça a tese aqui
apresentada.
Platão apresenta uma versão de
um Sócrates que se utiliza da linguagem religiosa no seu discurso, ou, no
mínimo, uma versão de um mestre que tem uma consciência de estar cumprindo uma
missão a mandado do deus de Delfos. Em muitas partes da “Apologia de Sócrates”,
expressões são colocadas nos lábios do filósofo que vinculam a sua ação a uma
missão religiosa. No texto são apresentadas as acusações que levam Sócrates a
juízo. Quais sejam: A acusação de desvirtuar a juventude e a “de não acreditar nos deuses em que o povo acredita,
e sim em outras divindades novas”. (PLATÃO, 2000, pág. 48). O que
Sócrates faz em todo o seu discurso é mostrar que não prejudicou a juventude e
não foi sacrílego em relação aos deuses do Estado.
Na versão veiculada por
Aristófanes, chamada “As Nuvens”, é apresentada uma caricatura de Sócrates antes
mesmo de o mestre ateniense desempenhar a atividade missionária de que se
julgou incumbido por Apolo. As palavras de Pessanha ressaltam este detalhe:
O
depoimento de Aristófanes sobre Sócrates possui assim – para muitos historiadores
– certo fundamento, sobretudo em relação ao Sócrates que ainda não havia sido
tocado pela palavra do oráculo. Mesmo porque o efeito de comicidade a que
visava Aristófanes não teria nenhum resultado se a caricatura traçada não
apresentasse, aos olhos do público, alguma semelhança com o modelo real.
(PESSANHA, 2000, pág. 46).
A expressão “ainda não havia sido tocado pela palavra do
oráculo”, é pertinente, pois,
mesmo que despretensiosamente, dirige a discussão para o fator religioso na
vida de Sócrates. As palavras de Pessanha já dão um indício de que se concebe
um caráter religioso na pessoa do mestre ateniense.
Outro texto chave para esta
discussão é “Ditos e feitos memoráveis de Sócrates”. No primeiro capítulo do
livro I, Xenofonte, sempre apresentando uma imagem hiperbólica de seu mestre,
esboça a acusação elaborada contra o filósofo de “não reverenciar os deuses que
cultua o Estado e introduzir extravagâncias demoníacas.” (XENOFONTE, 2000, pág.
79). A defesa do autor diz que Sócrates “fazia sacrifícios frequentes às
abertas, ora em casa, ora nos altares públicos...” além de recorrer à arte
divinatória. Xenofonte acrescenta que “Sócrates falava o que sentia, dizendo-se
inspirado por um demônio.” (XENOFONTE, 2000, pág. 79). Não se entendendo demônio
neste contexto como se entende no contexto do cristianismo. No cristianismo,
demônio é uma entidade espiritual contraposta à Trindade divina, instigadora de
toda sorte de males e desobediência ao deus cristão. (O’GRADY, 1991, págs. 23 -
32). No caso de Sócrates a conceituação é diametralmente oposta. Demônio é
identificado com uma “espécie de voz interior”. (PESSANHA, 2000, pág. 25).
Neste caso não indicando qualquer semelhança com o demônio do cristianismo. No
caso de Sócrates, pode-se entender como a voz da consciência. A dúvida se
instala: um homem como Sócrates, não saberia distinguir entre o que ele chamava
de “demônio” e a voz de sua consciência? Ou ambas as realidades seriam sinonímicas?
No terceiro capítulo do mesmo
livro, Xenofonte retoma a temática da religião em Sócrates, dizendo: “No que
diz respeito aos deuses, agia e falava de acordo com as respostas que dá a
Pítia sobre como deve agir em relação aos sacrifícios.” (XENOFONTE, 2000, pág.
99). Pode-se entender que a indução do texto está na direção de que seu mestre
era alguém compromissado com o Oráculo. O autor, engajado numa defesa de que
seu mestre era religioso sem a mácula apresentada como acusação, diz que
Sócrates “louvava este verso: ‘Ofertai
aos deuses imortais conforme vossas posses’.” (XENOFONTE, 2000, pág.
100). Encontra-se aqui um religioso dado às atividades cúlticas com seus
rituais litúrgicos. É a imagem de um religioso que, tanto comunitária, quanto
individualmente, cultua o seu deus. Portanto, esta é a imagem de um Sócrates religioso,
encontrada em Xenofonte.
Tovar enfoca que a imagem
socrática veiculada por Xenofonte, admitida no século XVIII, não consegue o
mesmo efeito de testemunho nos dias atuais. (TOVAR, 1966, pág. 31). Mesmo nesta
condição, considerando que a imagem religiosa de Sócrates passada por Xenofonte
concilia-se com a imagem socrática de Platão, não há porque desconsiderá-la.
Outros depoimentos existem,
como o de Aristóteles, um de Diógenes Laércio (século III d. C), já bem
tardiamente. (PESSANHA, 2000, pág. 16). Pessanha ressalva que a interpretação
de Aristóteles sobre Sócrates “é vista com reservas pelos historiadores, pois o
Estagirita sempre ‘aristoteliza’ o pensamento de seus antecessores”. (PESSANHA,
2000, pág. 16). Mas quem poderia ser absoluto em dizer que Platão não platoniza
Sócrates?
Marilena Chauí, tratando do
“Problema Sócrates”, é expressiva ao apresentar, mesmo que sucintamente, como a
querela se processou e a chegada a uma possível síntese: “um Sócrates
provável”. Textualmente, Chauí diz:
Finalmente,
os estudos mais recentes desistiram de procurar e encontrar o “verdadeiro” Sócrates
ou o Sócrates “autêntico” e se contentam com um Sócrates provável, resultado da
combinação dos diferentes testemunhos. (CHAUÍ,
1994, pág. 139)
Mesmo assim, Chauí diz
literalmente que a fonte mais respeitável é Platão. Afirmar Platão como fonte
mais respeitável não é algo sem o devido fundamento. Segundo Antonio Tovar, “a
revalidação de Platão como fonte histórica é obra do grande Schleiermacher.” (TOVAR,
1966, pág. 31). É interessante esta observação, pois que este mesmo
Schleiermacher (1768-1834), teólogo e filósofo protestante, considerado o
fundador da hermenêutica moderna, contribuiu também para a discussão sobre o
problema do “Jesus histórico”. (GIBELLINI, 1998, pág. 57 - 70). Problema este
que já passou por semelhantes entraves aos do “Problema socrático” e que o
consenso teológico aponta também para um “Jesus provável”.
Assim sendo, embora
sucintamente, as versões socráticas acima apresentadas são suficientes para o
enfoque deste trabalho, de vez que outras a mais não acrescentariam material
que alterasse a conclusão.
A consciência de Sócrates quanto a sua missão divina
Pode-se falar sobre uma
consciência de Sócrates no sentido de sua missão realizar-se por indução
divina?
O livro “A República” é
iniciado com Sócrates dizendo: “fui ontem ao Pireu com Glauco [...] com o
objetivo de fazer minhas orações à deusa [...]”[1].
(PLATÃO, 2000, pág. 11). Sócrates era um homem de fazer orações. Mesmo que o
mero fato de fazer oração não indique que alguém seja devidamente compromissado
com a divindade, no caso de Sócrates, essa é uma informação importante, pois
que o revela como alguém que levava a sério a sua comunicação com uma
divindade. Não há como se pensar em Sócrates como um inconseqüente; como alguém
que praticasse ação qualquer sem a devida reflexão. A própria construção do
texto leva à reflexão. “Com o objetivo
de fazer minhas orações à deusa.” Ora, de antemão se coloca que a ida
possuía um objetivo. Não se conceberia Sócrates como um homem que andasse por
aí aleatoriamente. Não era uma ida qualquer ao Pireu. Havia um objetivo específico.
O objetivo era orar. É sugestivo para a reflexão a referência ao pronome possessivo
“minhas” quando diz: “minhas orações”. Traz a conotação de que as orações eram
tidas pelo filósofo como algo particular mesmo. Um momento de comunhão entre
ele e sua deusa. Afinal, é ele mesmo que aconselha que se busque o parecer
divino sobre questões de importância para as quais os seus contemporâneos não
tinham respostas em si mesmos.
Na “Apologia de Sócrates”, o
servo do deus de Delfos, (o filósofo assim se entende) é apresentado como
alguém completamente compromissado com a missão de filosofar por obediência ao
ser divino. De início, ressalta-se a acusação que é impetrada contra Sócrates
por seus inimigos: Meleto e Anito. A acusação: “Sócrates é réu de pesquisar sem
discrição o que existe sob a terra e nos céus. De fazer que prevaleça a razão
mais fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento.” (Platão, 2000, pág. 42). Percebe-se um
sentido vago nesta acusação, embora a mesma tenha tomado algum tempo da defesa
do mestre. A outra acusação apresentada é: “Sócrates é réu de corromper os jovens e de não acreditar nos deuses em
que o povo acredita, e, sim em outras divindades novas”. (Ibid,
pág. 48). Esta segunda acusação é, na verdade, a que vai mexer com o raciocínio
do mestre ateniense. A referência a uma não crença nos deuses conhecidos e a
apresentação de outras divindades são ítens por demais valiosos, pois que
indicam o tom religioso do processo lançado sobre Sócrates. Haveria como não se
chegar a esta constatação? Pois é justamente desta acusação que Sócrates vai se
defender, não somente isentando-se de ser corruptor da juventude, como também
mostrando que é tão bom religioso quanto aquele que a divindade estima.
Empenhando-se em sua defesa,
Sócrates, em várias partes do texto, é apresentado como consciente de sua
missão por obediência à divindade. Sócrates chega mesmo a citar o testemunho do
deus Apolo: “Para testemunhar a minha
ciência... vos trarei o deus de Delfos.” (Platão, 2000, pág. 44). O mestre passa então a fazer
referência a Querefonte[2],
seu amigo de infância, o qual interrogara ao Oráculo de Delfos sobre quem era
mais sábio do que Sócrates. A resposta do Oráculo foi de que não havia ninguém
mais sábio do que ele. O testemunho reclamado é veiculado pela Pítia,
sacerdotisa do tempo de Delfos. E em segundo plano pelo amigo Querefonte.
Sócrates mesmo não foi diretamente abordado. Mas isso não anula o mérito da palavra
ser divina. Aconteceram os testemunhos da Pítia e do amigo, testemunhos dignos
de confiança para o filósofo. Em obediência, o filósofo parte para verificar a
sabedoria dos seus contemporâneos.
Na verdade, antes de qualquer
ação missionária, Sócrates conjeturou sobre as palavras do deus. Prática bem
comum na vida daqueles que passam por uma experiência religiosa do tipo aqui
abordado. O texto abaixo expressa o questionamento de Sócrates:
Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto
colocou na resposta? Eu não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco;
que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Logicamente não
está mentindo, porque isso lhe é impossível.
(Platão,
2000, pág. 44).
Primeiro, Sócrates parece
entender que o deus não é superficial. Há mais do que o evidente em suas
palavras. Estaria como que reconhecendo a profundidade que existe na palavra
divina. Em segundo plano, ele reconhece a sua relativa ignorância. Por fim,
entende que, dada a impossibilidade de se projetar mentira dos lábios divinos,
a conclusão é de que a sabedoria está com ele. Mas o que significa isto? Que
sabedoria será esta? É interessante observar que esta visão da divindade, entendida
por Sócrates, choca-se de frente com a concepção divino-mitológica dos gregos.
As divindades gregas eram passíveis de erros à semelhança dos homens. No
entanto, a visão de Sócrates sobre o deus de Delfos, era de um ser que, além de
profundo em seus significados, não pode mentir. Disto pode-se deduzir que o
mestre teologava de maneira bem oposta aos seus contemporâneos. O que poderia
indicar, para os seus acusadores, a introdução de novas divindades. Quando, na
verdade, era uma concepção teológica apenas divergente da concebida e
sancionada pelo Estado.
Sócrates, pois, lança-se na
empreitada de investigação da sabedoria dos seus contemporâneos, chegando, como
não é de se estranhar, a causar ódio em muitos. Conclusivamente
ele diz: “Por isso, não parei esta investigação até hoje, vagueando e
interrogando, de acordo com o deus”. (Platão,
2000, pág. 47).
Outro momento no qual Sócrates
expressa a sua convicção, acontece “[...] quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de
filósofo [...]”. (Platão,
2000, pág. 55). Este fragmento aponta realidades da sua convicção religiosa que
são consideravelmente elucidativas. Observe-se que o texto diz: “acreditava e
admitia”. Dois pontos importantes: crer e admitir. Crer somente não implica em obedecer. Mas a sua
crença era completa, visto está ratificada pela admissão. Admitir implica na
aceitação da incumbência crida. Outro aspecto importantíssimo da última citação
refere-se a “levar vida de filósofo”. Este detalhe é luminoso neste enfoque,
visto indicar que a vida de Sócrates, não meramente partes estanques da mesma,
estava fundamentada num imperativo categórico da divindade. Neste mesmo
momento, Sócrates arremata: “Tais são
as ordens que o deus me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à
cidade maior bem que minha obediência ao deus.” (Platão, 2000, pág. 57). Tal é a compreensão de Sócrates sobre
si mesmo, chegando a hiperbolizar o seu valor para a cidade. “Podeis reconhecer
que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por esta reflexão”. (Platão, 2000, pág. 58). Palavra bem característica
de um profeta em missão. O
fenômeno profético em várias religiões é alicerçado nas premissas de uma
vocação e um imperativo divinos, assim entendidos pelo escolhido. Vemos isto
semelhantemente nas religiões judaica, islâmica e cristã. O profeta judeu,
Jeremias (626 – 609 a.
C), por exemplo, escreve: “a mim me veio a palavra do Senhor, dizendo: Vai, e
clama aos ouvidos de Jerusalém [...]”. (PLAMPIN,
1987, pág. 20). Do mesmo modo que Jeremias se entendeu como enviado à capital
judaica, Sócrates assim se entendia em relação a Atenas. Jeremias foi dado pelo
seu deus a Jerusalém; Sócrates, a Atenas.
Sócrates chama para auxiliar a
sua defesa, várias instâncias de sua vida. Sem dúvida que é retórica a
convocação do seu ethos pessoal para
auxiliá-lo. Pode-se dizer que sua relação com a divindade, como ele a concebe,
leva também em consideração um fenômeno pelo qual passa desde criança: “uma
inspiração que me vem de um deus ou de um gênio (demônio); [...] Isso
começou em minha infância; é uma voz que se produz e, quando se produz, sempre
me desvia do que vou fazer [...]”. (Platão,
2000, pág. 59). Sócrates entende este fenômeno como devido à intervenção do
deus em sua vida. Na verdade, “o dado
místico” impregna a consciência de Sócrates: oráculos, sonhos, “outros
meios” (a voz que ele ouvia desde criança?). É possível que a referência à fase
de criança leve o seu ouvinte a pensar sobre o tempo de experiência que o
filósofo tem de convivência com estes “contatos” divinos. Evidente que o fator
tempo numa experiência conta muito bem como argumento retórico. Mas isto não
anula a informação que parece ser superlativa para o mestre ateniense. E
Sócrates continua expondo a sua convicção: “eu vos disse toda a verdade [...] faço-o por uma determinação divina,
vinda não só por meio do oráculo, mas também de sonhos e de todas as vias pelas
quais o homem recebe ordens dos deuses.” (Platão, 2000, pág. 61). Forma-se assim uma compreensão da
consciência religiosa de Sócrates em face destes episódios.
Tovar comenta, comparando
Sócrates com Solón, herói ateniense:
Como
Solón, (Sócrates) adorava as divindades recebidas, desejava a sua glória e temia
a Zeus, que governava as nuvens e depois da tempestade descia sempre as cortinas
do céu azul. Pensava Sócrates, como Solón, [...] que a justiça tem uma sanção
divina e que aquele que comete um pecado termina sempre por pagá-lo. (TOVAR, 1966, pág. 63).[3]
Esta citação faz referência à
justiça, um dos temas abordado pelo mestre ateniense. O comentário é de que
Sócrates concebia a justiça como tendo sanção divina. E não seria de estranhar,
pois para quem levava vida de filósofo por imperativo divino, não deixaria de
pensar a ética pelo prisma do deus. A compreensão socrática sobre o pecado como
merecendo a pena divina, ratifica o seu lado de pensador também teológico.
Concebe o mestre que o deus está a interferir diretamente nas ações humanas,
aplicando suas sanções sobre aqueles que não são devidamente justos.
Outro
comentário de Tovar, entitulado: “Sócrates en la religión helénica”[4]
diz:
É
evidente que o oráculo de Delfos converte-se para Sócrates em consciência de
missão, em consigna para sua vida. Basta ler a Apología platónica para convencer-se. O oráculo é a chave da
mudança súbita na vida de Sócrates, tal como se nos relata no Fedón, e que oferece os caracteres de
una verdadeira conversão de tipo
religioso, mais semelhante àquela que acontece entre cristãos que a qualquer
experiência espiritual entre filósofos antigos. Religiosa é, pois, a
consciência que tem Sócrates de reformador. (ToVAR, 1966, págS. 166 e 167).[5]
É bem
forte esta comparação feita por Tovar quanto à conversão religiosa. O fato de a
experiência de Sócrates “oferecer os caracteres de uma verdadeira conversão” é
ponto sugestivo para a reflexão. O autor coloca Sócrates bem fundado num
contexto religioso. Por se tratar de conversão e por assemelhá-la à acontecida
no cristianismo, Tovar abre espaço, nas entrelinhas, para se compreender
Sócrates como alguém que tem como alicerce de sua vida a religião. O que não é
de estranhar, pois que o próprio mestre diz que o deus ordenou-lhe “levar vida
de filósofo”. Se antes não havia esta consciência, após a suposta conversão
passou a haver.
Mesmo sendo também lacônico
quanto ao aspecto religioso da vida de Sócrates, Werner Jaeger diz:
Abundam
extraordinariamente nos socráticos as passagens em que se fala do cuidado da
alma ou da preocupação com a alma, como a missão suprema do Homem. Deparamos
aqui com a medula da própria consciência que Sócrates tinha da sua tarefa e da
sua missão: uma missão educacional, que interpreta a si próprio como serviço
de Deus. Este caráter religioso da sua missão baseia-se no fato de ser
precisamente do cuidado da alma que se trata, pois a alma é para ele o
que há de divino no Homem. (JAEGER, 1994,
pág. 528 – Grifo nosso).
Note-se
que, com estas palavras, mesmo não dedicando espaço considerável ao assunto,
Jaeger se enfileira com outros autores quanto a entender a missão de Sócrates
vinculada à realidade religiosa. Ele é categórico quando escreve: “caráter
religioso da sua missão”. Chega mesmo a admitir que a missão de Sócrates era
religiosa. O “cuidado da alma”, citado por esse autor, é elucidativo, pois que
é a abordagem socrática sobre a alma que vai influenciar os seguidores de Jesus
na abordagem teológica sobre a alma humana, a partir do século II d. C. Muito
da obra patrística apresenta aspectos que podem ser referenciados com o
conceito de alma em
Sócrates. A esta altura, com esta relação acima apresentada,
é digno de destaque o caso do mártir São Justino que, em 155 d. C. identificou
Sócrates como cristão, visto ter o mesmo vivido no Logos. O que para ele
significava, no próprio Cristo. (BERGE,
1996, pág. 11). Não esquecendo que, mesmo em tempos pósteros, Sócrates referencia
o espiritual. Não é possível que toda esta compreensão sobre o mestre ateniense
fosse equivocada. Não se trata, evidentemente, de querer provar que Sócrates
serviria como fundador de religião, mas de constatar em sua vida uma
religiosidade compromissada e justificativa de sua ação.
A questão
que se pode colocar é: considerando que a compreensão teológica veiculada por
Sócrates, de um modo ou de outro expressa em sua filosofia, distanciava-o da
visão de divindade ou de religiosidade concebida pelos atenienses, não teria
sido, aos olhos de seus acusadores, devidamente colocada a acusação que lhe
imputaram, e não meramente um artifício para se livrarem de um inimigo, no
caso, Sócrates? Este assunto é bastante complexo para alguns. O que se pode
sugerir além do dado religioso no processo, é que a acusação recaiu sobre o
filósofo visto ter sido ele educador de Alcibíades e Crítias os quais traíram a
democracia ateniense. (barsa,
1999, pág. 300 – Verbete sobre Sócrates). O que se constitui num dado político
e que também substancia a acusação de corrupção à juventude. Sócrates, na interpretação
de seus acusadores, pôs-se contra o Estado e contra a divindade. Nada mais
justo que penitenciá-lo.
Esta temática continuará com outros tópicos.
BIBLIOGRAFIA
BARSA, Nova Enciclopédia. – São Paulo: Encyclopaedia
Britânica do Brasil Puclicações, 1999. Vol. 13. 506 págs.
BERGE, Damião. O
lógos heraclítico: introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro.
Instituto Nacional do Livro, 1996.
CHAUÍ,
Marilena de Souza. Introdução à
história da filosofia: dos pré-socráticos a aristóteles. Vol. I. 3ª edição.
São Paulo. Brasiliense, 1994.
GIBELLINI, Rosino. A
teologia do século XX. São Paulo. Edições Loyola. 1998. Págs. 591.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3ª edição. São Paulo. Martins
Fontes. 1994. 1413 págs.
O’GRADY, Joan. Satã,
o príncipe das trevas. São Paulo. Editora Mercuryo Ltda, 1991. 189 págs.
PESSANHA, José Américo Motta (Consultoria). Vida e obra (de Sócrates). In: Os pensadores:
Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultural, 2000. 287 págs.
PLATÃO. A república.
São Paulo: Editora Martin Claret. Coleção a obra prima de cada autor. 2000.
PLATÃO. A apologia de Sócrates. In: Os pensadores:
Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultura, 2000. 287 págs.
PLAMPIN, Richard T. Jeremias:
Seu ministério, Sua mensagem. Rio de Janeiro. Junta de Educação Religiosa e
Publicações, 1987. 193 págs.
TOVAR Antonio. Vida
de sócrates. 3ª edição. Madrid (Espanha). Editora Revista de Occidente, S. A. 1966. 498 págs.
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates.
In: Os pensadores: Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultura, 2000. 287 págs.
Willians Moreira
Damasceno
[1]
Bêndis, deusa trácia que se
confundia com Ártemis.
[2]
algumas
versões trazem Xenofonte.
[3] “Como Solón, (Sócrates) adoraba a las divindades
recibidas, deseaba la gloria e temía a Zeus, que gobernaba las nubes y después
de la tempestad descorría siempre las cortinas del cielo azul. Pensaba
Sócrates, como Solón, aunque interiorizase más esta creencia, que la justicia
tiene una sanción divina y que el que comete un pecado termina siempre por
pagarlo.”
[4]
Mesmo
tendo este título, o autor não explora o tema da missão religiosa de Sócrates;
na verdade, sobre isto é lacônico.
[5] Es evidente que el oráculo de Delfos se convierte para Sócrates en
conciencia de misión, en consigna para su vida. Basta leer la Apología
platónica para convencerse. El oráculo es la clave del cambio súbito en la vida
de Sócrates, tal como se nos relata en el Fedón,
y que ofrece los caracteres de una verdadera conversión de tipo religioso, más semejante a la que se da ya entre
cristianos que a ninguna peripecia espiritual en filósofos antiguos. Religiosa
es, pues, la conciencia que tiene Sócrates de reformador.
Um comentário:
Que excelente texto e reflexão! De fato não vemos por aí muitas considerações sobre esse tema. O que é estranho, uma vez que no próprio discurso de Sócrates, seja por Xenofonte e principalmente por Platão, fica evidente a importância fundamental da divindade, do caráter missionário-religioso desse pensador. Parabéns pela visão a um fenômeno tão importante!
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