A obediência de Sócrates e a
obediência de Jesus
Levando-se em consideração o
texto sobre a consciência religiosa de Sócrates, a comparação entre aquele
filósofo e Jesus é viável em face de que a mesma vem ratificar a imagem
socrática, ou seja, um homem religioso. Aliás, comparações entre esses dois
homens são encontradas em outras publicações, tanto entre filósofos como também
entre teólogos.
Gaarder intitula uma passagem
do seu comentário sobre Sócrates de “Uma
Voz Divina”. A certa altura do texto Gaarder diz:
Ao traçar esses paralelos entre Jesus Cristo e
Sócrates, não estou querendo colocar um sinal de igualdade entre os dois. Quero
dizer apenas que ambos tinham uma mensagem a transmitir e que esta mensagem
estava indissoluvelmente associada à sua coragem pessoal. (GAADER,
1996, págs. 81 e 82).
Mais razoável seria dizer que a
mensagem de ambos estava associada a uma consciência religiosa de missão que
gerava neles coragem. Mas não é de estranhar este modo de pensar de Gaarder. O
autor faz essa comparação entre os dois mestres, reconhecendo o valor de ambos
para a humanidade. No contexto desta citação, Gaarder afirma que ambos
acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior do que eles mesmos. O
problema de Gaarder é que não identifica objetivamente esta “coisa” que era
maior do que eles. Por que razão este autor se furta a uma possível
identificação desta “coisa”? Fica a interrogação. Saliente-se que para os dois
mestres não era uma “coisa” que fundamentava a missão e a ação de ambos. Era,
na verdade, alguém. E, pelo que se pode interpretar, era alguém bastante
pessoal com quem podia se falar, como também alguém a quem se obedecia.
Mestres
diferentes – Ensinos diferentes
Releva-se aqui um
questionamento pertinente à discussão proposta: sendo a missão de Sócrates
religiosa, o que impediu aos seus discípulos de darem direcionamento a sua mensagem
semelhante àquele que foi dado pelos discípulos de Jesus à mensagem do mestre
judeu? Algumas hipóteses que explicam os caminhos diferentes assumidos pelos ensinamentos
de ambos os mestres são possíveis. Basta que se leve em consideração alguns
contextos de ambas as partes.
De imediato, entende-se que
natureza da religião judaica diferia da natureza da religião grega. Um dos
aspectos da natureza da religião judaica era o profetismo. Este detinha em suas
linhas a proclamação de um messias salvador de Israel. Por sua vez, na religião
grega não consta nenhuma referência ao fenômeno profético-messiânico nos moldes
judaicos. Partindo-se desta premissa, a diferença de natureza entre as
religiões grega e judaica, entende-se perfeitamente o encaminhamento religioso
dado ao ensino de Jesus por seus discípulos, de vez que o próprio mestre judeu
entendeu-se como cumprimento profético das previsões sobre o messias salvador. Por
sua vez, Sócrates, em nenhum momento atribuiu-se profecia pretérita, no sentido
vaticinatório, para fundamentar a sua atividade. O máximo que ele fez foi
anunciar que falava por ordem do deus. Neste sentido, ele era profeta tanto
quanto Jesus, embora não aplique a si mesmo a prerrogativa de salvador no
sentido jesuítico. De sorte que, pelo dado particular da natureza de ambas as
religiões, judaica e grega, já se dispõe de uma via plausível de solução para o
questionamento aqui proposto.
Concomitantemente, as mensagens
socrática e jesuítica são de naturezas opostas entre si. A mensagem socrática é
predominantemente humanística, mesmo que ordenada pelo deus. A mensagem de
Jesus é teísta. Os próprios contemporâneos de Jesus compreenderam quando o
mestre nazareno fez-se a si mesmo “Deus”. (BÍBLIA – NT, 1982, pág. 111 – João
5: 18; 21:28) Pelo menos é esta indução que o texto traz e que os demais
escritos do Novo Testamento atestam. Se bem que há controvérsias. Sócrates não
teve a mesma pretensão, mesmo tendo sido interpretado como pregando novos
deuses. Enquanto a ação de Jesus conclamava os ouvintes para um envolvimento
com a dimensão do “espiritual”, celestial (não sem envolvimento com o humano),
a ação de Sócrates conclamava os seus ouvintes para uma reflexão dimensionalmente
terrena. O máximo que Sócrates disse foi que ele era um homem dado a Atenas
pelo deus. Releva-se a esta altura a abordagem de Marilena Chauí:
[...]
a imagem de santo não é muito adequada à figura de Sócrates, ainda que, pelo daímon (e Cristo pelo Pai e Espírito
Santo), se considerasse investido de uma missão divina e que, segundo alguns
relatos, levasse vida ascética, simples e frugal, como a que os Evangelhos
atribuem a Jesus [...], e atormentasse as pessoas com perguntas que as faziam
duvidar de valores e idéias que haviam tido como certos e verdadeiros. (CHAUÍ, 1994, pág.136 – Grifo nosso).
Realmente, acompanhando
Sócrates por todos os testemunhos dos seus discípulos, não se forma a imagem de
um santo, mesmo a sua vida sendo de uma simplicidade e frugalidade
superlativas. Observe-se, no entanto, que a própria Chauí admite que o mestre
ateniense entendia que a sua missão era divina, portanto, religiosa. Ou será
que a análise da vida de Sócrates está tão condicionada por fatores da visão
filosófica que não se permite vê-lo daquela outra forma? Para uma mente livre,
não há objeções a tal. Daí encontrar-se um Erasmo de Rotterdam[1]
referenciando Sócrates como santo, embora se extrapolando para um ponto inadmissível.
As diferenças entre os contextos
históricos da Palestina e da Grécia socrática também são patentes e ratificam
esta abordagem. O contexto histórico da Palestina contribuiu também para um
direcionamento religioso da mensagem do mestre judeu, como também, em alguns
momentos, para o campo político. A Palestina estava sob o domínio romano e
ansiava por libertar-se daquele império. Nada impedia que Jesus fosse visto
como mais um “libertador” ante a opressão romana. Muitos se levantaram naqueles
dias incitando as massas a uma insurreição contra a dominação romana. Tanto que
alguns dos seus discípulos o entenderam como alguém destinado a comandar uma
revolução política. Para muitos intérpretes, o próprio Judas o traiu,
objetivando levá-lo a uma reação revolucionária. Decorre-se que a libertação
proclamada por Jesus, mal entendida pelos discípulos ao princípio, era
libertação que extrapolava a dimensão política. Poderia até atingir esta
dimensão humana, mas seria como decorrência de uma transformação da existência
no aspecto da subjetividade.
O contexto histórico da Grécia
socrática não era pintado pelas mesmas cores políticas da Palestina de Jesus.
Mais especificamente, a Atenas socrática encontrava-se ainda dona de si mesma. Segundo os historiadores,
transcorria ainda o período Clássico da filosofia (séc. V a. C. ao IV a. C.).
As reformas de Clístenes e, em seguida o governo de Péricles colocaram Atenas à
frente de todas as outras cidades gregas. A democracia desenvolveu-se consideravelmente
e o império marítimo ateniense adquiriu vulto espantoso. Justamente o Pireu,
para onde Sócrates se encaminhava objetivando fazer suas orações, era o centro
convergente de toda uma cultura riquíssima que influenciou um desenvolvimento
urbano, intelectual e artístico. Nada, pois, levava Sócrates a se proclamar
como libertador político. Tratava-se antes de um homem questionador de uma
cultura tão rica, porém, na visão do filósofo, comprometida com certos vícios.
Tinha ele seguidores? Sem dúvida! Mas jamais se lê de discípulo seu entendo-o
como chefe de movimento de libertação política. Sua ação foi ordenada pelo
deus, como assim entendia, mas não havia no seu ensinamento indução de
movimento político-libertador caracterizado. O seu deus estava mesmo era
interessado em reformas que mudassem a compreensão de fatores que condicionam a
existência em seu aspecto interior, do que Jesus não se distancia também. Com
esta reforma Sócrates concordava, visto prescrever a “cura da alma”. Vale
lembrar as palavras de Marilena Chauí sobre Sócrates: “[...] e atormentasse as pessoas
com perguntas que as faziam duvidar de valores e idéias que haviam tido como
certos e verdadeiros.” (CHAUÍ, 1994, pág.136) Era uma cura da alma em relação a si mesma,
numa dimensão horizontal, humana. Jesus por sua vez, encaminhava o seu ensino
não só na dimensão horizontal, mas também na dimensão vertical, e este
caracterizamente foi o seu caminho de ação: uma cura da alma, para alinhar os homens
com Deus.
De acréscimo, considere-se que os
discípulos de cada mestre deram interpretação à mensagem do seu mestre
totalmente aplicada aos seus momentos histórico-culturais, condicionados que
foram por fatores que já não eram do próprio contexto do mestre. Toda uma
bagagem existencial também é acrescida depois de algum tempo que os discípulos
não estão mais com os seus mestres. Isso é comum acontecer na história, e não
seria diferente com os discípulos de Sócrates e os de Jesus. Considere-se ainda
que de discípulo para discípulo também há um “separador de águas”, nos termos
acima colocados, que vai direcionar a apresentação do depoimento sobre o
mestre. Sem falar de estilo literário, de enfoques principais para cada um, de
realidades inconscientes e de outras tantas realidades que vão interagir, formando-se,
em muitos casos, imagens do mestre que vão suscitar os chamados “Problemas
históricos”. Pode-se acreditar que estes tipos de problemas resultam desta
interpretação condicionada da imagem do mestre em foco.
De um modo ou de outro, o fato
é que os ensinamentos de Sócrates e os de Jesus se prestam a orientar a vida
dos humanos. A realidade agravante é que, dos dois mestres, o que mais se tem
prestado ao controle e exploração dos humanos é “Jesus”, reinterpretado como
vem sendo através dos séculos. Dificilmente Sócrates foi ou é usado para
“dominar” as massas. Jesus já o foi inúmeras vezes. Embora, em si mesmos, de
modo integral, estes homens estejam isentos de qualquer repulsa ao seu caráter.
Pode-se concluir que ambos os
mestres entendiam a sua missão como religiosa. No entanto, em termos de ação,
foram por caminhos diferentes: Jesus teve uma ação religiosa; enquanto Sócrates
teve uma ação filosófica. Frise-se, no entanto, que esta diferença não é um
mero detalhe. Trata-se antes de um “divisor de águas”. Na verdade é o que
explica decisivamente os caminhos diversos seguidos pelos ensinamentos de
ambos.
Em face desta abordagem, e aqui
relevando Sócrates e Jesus, sugere-se a lembrança das palavras de Nietzsche
quando comenta a realidade de pessoas que se consideram investidas de
imperativo divino:
Quando
alguém tem deveres sagrados, como por exemplo tornar os homens melhores,
salvá-los, redimi-los, quando se traz a divindade no peito, quando se é o
porta-voz dos imperativos supraterrenos, uma tal missão coloca-o já acima de
qualquer avaliação intelectual – já não é ele próprio sagrado por uma
tal tarefa, já não é ele o próprio tipo de uma hierarquia superior? (NIETZSCHE,
2001, pág.46).
O Anticristo disse estas palavras referindo-se aos
teólogos cristãos. No contexto de tal comentário está patente uma crítica a
esses religiosos, que faz sentido analisá-la, de vez que muito do que é dito é
verdade. Quanto a Sócrates, não seria possível direcionar-lhe tais críticas,
pois que sua atividade em nada se caracteriza pelas mesmas realidades que
maculam uma grande maioria de profissionais da religião.
A
proposta de considerar a consciência religiosa de Sócrates no sentido de que o
mestre ateniense entendia a sua missão como religiosa, embora com ação
filosófica, foi lançada. Sem dúvida que os depoimentos dos seus discípulos são
indubitáveis quanto a traçarem, também, uma imagem socrática no sentido
religioso.
Tanto os discípulos
de Sócrates, como também os vários autores que foram citados apresentam a visão
de que Sócrates nutria a consciência de uma missão ordenada a si por um deus.
Toda a
atividade de Sócrates, oferecendo sacrifícios, orando e referindo-se a uma experiência
com o oráculo divino que lhe transmitiu a palavra de Apolo, como também a sua
consciência de ter sido dado a Atenas pelo deus, reportam a reflexão para a dimensão
da experiência religiosa. Este fato não descaracteriza em hipótese alguma a
ação filosófica de Sócrates. Independentemente do que seja dito por qualquer,
para Sócrates o fundamento de sua ação filosófica estava no serviço que ele
prestava ao deus. E, como ele mesmo dizia, mas valia servir ao deus do que aos
homens.
Ratifica-se assim, um Sócrates
religioso que, na sua ação filosófica (e esta por demais enfatizada), não se
furtou a uma experiência religiosa, experiência esta passível de acontecer na
existência humana. Mas que, no caso de Sócrates, causou uma grande diferença a
ponto de torná-lo imortal.
BIBLIOGRAFIA
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Britânica do Brasil Puclicações, 1999. Vol. 13. 506 págs.
BERGE, Damião. O
lógos heraclítico: introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro.
Instituto Nacional do Livro, 1996.
CHAUÍ,
Marilena de Souza. Introdução à
história da filosofia: dos pré-socráticos a aristóteles. Vol. I. 3ª edição.
São Paulo. Brasiliense, 1994.
GIBELLINI, Rosino. A
teologia do século XX. São Paulo. Edições Loyola. 1998. Págs. 591.
JAEGER,
Werner Wilhelm. Paidéia: a
formação do homem grego. 3ª edição. São Paulo. Martins Fontes. 1994. 1413
págs.
O’GRADY, Joan. Satã,
o príncipe das trevas. São Paulo. Editora Mercuryo Ltda, 1991. 189 págs.
PESSANHA, José Américo Motta (Consultoria). Vida e obra (de Sócrates). In: Os pensadores:
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PLATÃO. A república.
São Paulo: Editora Martin Claret. Coleção a obra prima de cada autor. 2000.
PLATÃO. A apologia de Sócrates. In: Os pensadores:
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PLAMPIN, Richard T. Jeremias:
Seu ministério, Sua mensagem. Rio de Janeiro. Junta de Educação Religiosa e
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TOVAR Antonio. Vida
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XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates.
In: Os pensadores: Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultura, 2000. 287 págs.
Willians Moreira Damasceno
[1]
Embora o cristianismo tenha
esteriotipado Sócrates como mártir pré-cristão; e o humanista Erasmo de Roterdam
tenha orado ao “Santo Sócrates”: “Sancte Sócrates, ora pro nobis!"
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