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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

CONTINUAÇÃO DO TEMA: A CONSCIÊNCIA RELIGIOSA DE SÓCRATES


A obediência de Sócrates e a obediência de Jesus

Levando-se em consideração o texto sobre a consciência religiosa de Sócrates, a comparação entre aquele filósofo e Jesus é viável em face de que a mesma vem ratificar a imagem socrática, ou seja, um homem religioso. Aliás, comparações entre esses dois homens são encontradas em outras publicações, tanto entre filósofos como também entre teólogos.
Gaarder intitula uma passagem do seu comentário sobre Sócrates de “Uma Voz Divina”. A certa altura do texto Gaarder diz:

Ao traçar esses paralelos entre Jesus Cristo e Sócrates, não estou querendo colocar um sinal de igualdade entre os dois. Quero dizer apenas que ambos tinham uma mensagem a transmitir e que esta mensagem estava indissoluvelmente associada à sua coragem pessoal. (GAADER, 1996, págs. 81 e 82).

Mais razoável seria dizer que a mensagem de ambos estava associada a uma consciência religiosa de missão que gerava neles coragem. Mas não é de estranhar este modo de pensar de Gaarder. O autor faz essa comparação entre os dois mestres, reconhecendo o valor de ambos para a humanidade. No contexto desta citação, Gaarder afirma que ambos acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior do que eles mesmos. O problema de Gaarder é que não identifica objetivamente esta “coisa” que era maior do que eles. Por que razão este autor se furta a uma possível identificação desta “coisa”? Fica a interrogação. Saliente-se que para os dois mestres não era uma “coisa” que fundamentava a missão e a ação de ambos. Era, na verdade, alguém. E, pelo que se pode interpretar, era alguém bastante pessoal com quem podia se falar, como também alguém a quem se obedecia.

Mestres diferentes – Ensinos diferentes
Releva-se aqui um questionamento pertinente à discussão proposta: sendo a missão de Sócrates religiosa, o que impediu aos seus discípulos de darem direcionamento a sua mensagem semelhante àquele que foi dado pelos discípulos de Jesus à mensagem do mestre judeu? Algumas hipóteses que explicam os caminhos diferentes assumidos pelos ensinamentos de ambos os mestres são possíveis. Basta que se leve em consideração alguns contextos de ambas as partes.
De imediato, entende-se que natureza da religião judaica diferia da natureza da religião grega. Um dos aspectos da natureza da religião judaica era o profetismo. Este detinha em suas linhas a proclamação de um messias salvador de Israel. Por sua vez, na religião grega não consta nenhuma referência ao fenômeno profético-messiânico nos moldes judaicos. Partindo-se desta premissa, a diferença de natureza entre as religiões grega e judaica, entende-se perfeitamente o encaminhamento religioso dado ao ensino de Jesus por seus discípulos, de vez que o próprio mestre judeu entendeu-se como cumprimento profético das previsões sobre o messias salvador. Por sua vez, Sócrates, em nenhum momento atribuiu-se profecia pretérita, no sentido vaticinatório, para fundamentar a sua atividade. O máximo que ele fez foi anunciar que falava por ordem do deus. Neste sentido, ele era profeta tanto quanto Jesus, embora não aplique a si mesmo a prerrogativa de salvador no sentido jesuítico. De sorte que, pelo dado particular da natureza de ambas as religiões, judaica e grega, já se dispõe de uma via plausível de solução para o questionamento aqui proposto.
Concomitantemente, as mensagens socrática e jesuítica são de naturezas opostas entre si. A mensagem socrática é predominantemente humanística, mesmo que ordenada pelo deus. A mensagem de Jesus é teísta. Os próprios contemporâneos de Jesus compreenderam quando o mestre nazareno fez-se a si mesmo “Deus”. (BÍBLIA – NT, 1982, pág. 111 – João 5: 18; 21:28) Pelo menos é esta indução que o texto traz e que os demais escritos do Novo Testamento atestam. Se bem que há controvérsias. Sócrates não teve a mesma pretensão, mesmo tendo sido interpretado como pregando novos deuses. Enquanto a ação de Jesus conclamava os ouvintes para um envolvimento com a dimensão do “espiritual”, celestial (não sem envolvimento com o humano), a ação de Sócrates conclamava os seus ouvintes para uma reflexão dimensionalmente terrena. O máximo que Sócrates disse foi que ele era um homem dado a Atenas pelo deus. Releva-se a esta altura a abordagem de Marilena Chauí:

[...] a imagem de santo não é muito adequada à figura de Sócrates, ainda que, pelo daímon (e Cristo pelo Pai e Espírito Santo), se considerasse investido de uma missão divina e que, segundo alguns relatos, levasse vida ascética, simples e frugal, como a que os Evangelhos atribuem a Jesus [...], e atormentasse as pessoas com perguntas que as faziam duvidar de valores e idéias que haviam tido como certos e verdadeiros. (CHAUÍ, 1994, pág.136 – Grifo nosso).

Realmente, acompanhando Sócrates por todos os testemunhos dos seus discípulos, não se forma a imagem de um santo, mesmo a sua vida sendo de uma simplicidade e frugalidade superlativas. Observe-se, no entanto, que a própria Chauí admite que o mestre ateniense entendia que a sua missão era divina, portanto, religiosa. Ou será que a análise da vida de Sócrates está tão condicionada por fatores da visão filosófica que não se permite vê-lo daquela outra forma? Para uma mente livre, não há objeções a tal. Daí encontrar-se um Erasmo de Rotterdam[1] referenciando Sócrates como santo, embora se extrapolando para um ponto inadmissível.
As diferenças entre os contextos históricos da Palestina e da Grécia socrática também são patentes e ratificam esta abordagem. O contexto histórico da Palestina contribuiu também para um direcionamento religioso da mensagem do mestre judeu, como também, em alguns momentos, para o campo político. A Palestina estava sob o domínio romano e ansiava por libertar-se daquele império. Nada impedia que Jesus fosse visto como mais um “libertador” ante a opressão romana. Muitos se levantaram naqueles dias incitando as massas a uma insurreição contra a dominação romana. Tanto que alguns dos seus discípulos o entenderam como alguém destinado a comandar uma revolução política. Para muitos intérpretes, o próprio Judas o traiu, objetivando levá-lo a uma reação revolucionária. Decorre-se que a libertação proclamada por Jesus, mal entendida pelos discípulos ao princípio, era libertação que extrapolava a dimensão política. Poderia até atingir esta dimensão humana, mas seria como decorrência de uma transformação da existência no aspecto da subjetividade.
O contexto histórico da Grécia socrática não era pintado pelas mesmas cores políticas da Palestina de Jesus. Mais especificamente, a Atenas socrática encontrava-se ainda dona de si mesma. Segundo os historiadores, transcorria ainda o período Clássico da filosofia (séc. V a. C. ao IV a. C.). As reformas de Clístenes e, em seguida o governo de Péricles colocaram Atenas à frente de todas as outras cidades gregas. A democracia desenvolveu-se consideravelmente e o império marítimo ateniense adquiriu vulto espantoso. Justamente o Pireu, para onde Sócrates se encaminhava objetivando fazer suas orações, era o centro convergente de toda uma cultura riquíssima que influenciou um desenvolvimento urbano, intelectual e artístico. Nada, pois, levava Sócrates a se proclamar como libertador político. Tratava-se antes de um homem questionador de uma cultura tão rica, porém, na visão do filósofo, comprometida com certos vícios. Tinha ele seguidores? Sem dúvida! Mas jamais se lê de discípulo seu entendo-o como chefe de movimento de libertação política. Sua ação foi ordenada pelo deus, como assim entendia, mas não havia no seu ensinamento indução de movimento político-libertador caracterizado. O seu deus estava mesmo era interessado em reformas que mudassem a compreensão de fatores que condicionam a existência em seu aspecto interior, do que Jesus não se distancia também. Com esta reforma Sócrates concordava, visto prescrever a “cura da alma”. Vale lembrar as palavras de Marilena Chauí sobre Sócrates: “[...] e atormentasse as pessoas com perguntas que as faziam duvidar de valores e idéias que haviam tido como certos e verdadeiros.” (CHAUÍ, 1994, pág.136) Era uma cura da alma em relação a si mesma, numa dimensão horizontal, humana. Jesus por sua vez, encaminhava o seu ensino não só na dimensão horizontal, mas também na dimensão vertical, e este caracterizamente foi o seu caminho de ação: uma cura da alma, para alinhar os homens com Deus.
De acréscimo, considere-se que os discípulos de cada mestre deram interpretação à mensagem do seu mestre totalmente aplicada aos seus momentos histórico-culturais, condicionados que foram por fatores que já não eram do próprio contexto do mestre. Toda uma bagagem existencial também é acrescida depois de algum tempo que os discípulos não estão mais com os seus mestres. Isso é comum acontecer na história, e não seria diferente com os discípulos de Sócrates e os de Jesus. Considere-se ainda que de discípulo para discípulo também há um “separador de águas”, nos termos acima colocados, que vai direcionar a apresentação do depoimento sobre o mestre. Sem falar de estilo literário, de enfoques principais para cada um, de realidades inconscientes e de outras tantas realidades que vão interagir, formando-se, em muitos casos, imagens do mestre que vão suscitar os chamados “Problemas históricos”. Pode-se acreditar que estes tipos de problemas resultam desta interpretação condicionada da imagem do mestre em foco.
De um modo ou de outro, o fato é que os ensinamentos de Sócrates e os de Jesus se prestam a orientar a vida dos humanos. A realidade agravante é que, dos dois mestres, o que mais se tem prestado ao controle e exploração dos humanos é “Jesus”, reinterpretado como vem sendo através dos séculos. Dificilmente Sócrates foi ou é usado para “dominar” as massas. Jesus já o foi inúmeras vezes. Embora, em si mesmos, de modo integral, estes homens estejam isentos de qualquer repulsa ao seu caráter.
Pode-se concluir que ambos os mestres entendiam a sua missão como religiosa. No entanto, em termos de ação, foram por caminhos diferentes: Jesus teve uma ação religiosa; enquanto Sócrates teve uma ação filosófica. Frise-se, no entanto, que esta diferença não é um mero detalhe. Trata-se antes de um “divisor de águas”. Na verdade é o que explica decisivamente os caminhos diversos seguidos pelos ensinamentos de ambos.
Em face desta abordagem, e aqui relevando Sócrates e Jesus, sugere-se a lembrança das palavras de Nietzsche quando comenta a realidade de pessoas que se consideram investidas de imperativo divino:

Quando alguém tem deveres sagrados, como por exemplo tornar os homens melhores, salvá-los, redimi-los, quando se traz a divindade no peito, quando se é o porta-voz dos imperativos supraterrenos, uma tal missão coloca-o já acima de qualquer avaliação intelectual – já não é ele próprio sagrado por uma tal tarefa, já não é ele o próprio tipo de uma hierarquia superior? (NIETZSCHE, 2001, pág.46).

O Anticristo disse estas palavras referindo-se aos teólogos cristãos. No contexto de tal comentário está patente uma crítica a esses religiosos, que faz sentido analisá-la, de vez que muito do que é dito é verdade. Quanto a Sócrates, não seria possível direcionar-lhe tais críticas, pois que sua atividade em nada se caracteriza pelas mesmas realidades que maculam uma grande maioria de profissionais da religião.
            A proposta de considerar a consciência religiosa de Sócrates no sentido de que o mestre ateniense entendia a sua missão como religiosa, embora com ação filosófica, foi lançada. Sem dúvida que os depoimentos dos seus discípulos são indubitáveis quanto a traçarem, também, uma imagem socrática no sentido religioso.
            Tanto os discípulos de Sócrates, como também os vários autores que foram citados apresentam a visão de que Sócrates nutria a consciência de uma missão ordenada a si por um deus.
            Toda a atividade de Sócrates, oferecendo sacrifícios, orando e referindo-se a uma experiência com o oráculo divino que lhe transmitiu a palavra de Apolo, como também a sua consciência de ter sido dado a Atenas pelo deus, reportam a reflexão para a dimensão da experiência religiosa. Este fato não descaracteriza em hipótese alguma a ação filosófica de Sócrates. Independentemente do que seja dito por qualquer, para Sócrates o fundamento de sua ação filosófica estava no serviço que ele prestava ao deus. E, como ele mesmo dizia, mas valia servir ao deus do que aos homens.
Ratifica-se assim, um Sócrates religioso que, na sua ação filosófica (e esta por demais enfatizada), não se furtou a uma experiência religiosa, experiência esta passível de acontecer na existência humana. Mas que, no caso de Sócrates, causou uma grande diferença a ponto de torná-lo imortal.

BIBLIOGRAFIA

BARSA, Nova Enciclopédia. – São Paulo: Encyclopaedia Britânica do Brasil Puclicações, 1999. Vol. 13. 506 págs.
BERGE, Damião. O lógos heraclítico: introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro. Instituto Nacional do Livro, 1996.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a aristóteles. Vol. I. 3ª edição. São Paulo. Brasiliense, 1994.
GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo. Edições Loyola. 1998. Págs. 591.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3ª edição. São Paulo. Martins Fontes. 1994. 1413 págs.
O’GRADY, Joan. Satã, o príncipe das trevas. São Paulo. Editora Mercuryo Ltda, 1991. 189 págs.
PESSANHA, José Américo Motta (Consultoria). Vida e obra (de Sócrates). In: Os pensadores: Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultural, 2000. 287 págs.
PLATÃO. A república. São Paulo: Editora Martin Claret. Coleção a obra prima de cada autor. 2000.
PLATÃO. A apologia de Sócrates. In: Os pensadores: Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultura, 2000. 287 págs.
PLAMPIN, Richard T. Jeremias: Seu ministério, Sua mensagem. Rio de Janeiro. Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1987. 193 págs.
TOVAR Antonio. Vida de sócrates. 3ª edição. Madrid (Espanha). Editora Revista de Occidente, S. A. 1966. 498 págs.
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. In: Os pensadores: Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultura, 2000. 287 págs.

Willians Moreira Damasceno


[1] Embora o cristianismo tenha esteriotipado Sócrates como mártir pré-cristão; e o humanista Erasmo de Roterdam tenha orado ao “Santo Sócrates”: “Sancte Sócrates, ora pro nobis!"

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