Se a (r)amartologia[1] (doutrina do pecado) tradicional estiver certa quanto ao que ensina sobre o Pecado Original; se Pelágio[2] não tinha razão quanto ao que ensinava, parece que a teologia tradicional[3] precisa enfrentar decorrências seriíssimas, mais do que se imagina nos redis cristãos. E isto não significa que eu seja pelagiano, diga-se de passagem.
A tese é: Se o homem é pecador por natureza, o "gérmen" de todas as práticas do pecado encontra-se essencialmente em sua constituição. Sendo assim, desde a sua concepção o homem está condenado pela divindade, pois que o Pecado Original, desde a suposta queda do primeiro Adão, passou a ser parte intrínseca da natureza humana, seja por traducionismo[4] ou por mera hereditariedade. Os sete pecados capitais[5] e suas ramificações encontram-se na natureza humana, essencial e potencialmente[6]. Esse pecado potencial torna-se ato ou não em função de direcionamentos possíveis que aconteçam durante a vida do humano. Esse raciocínio explica porque o homem se dá a comportamentos diversos, como também pode explicar porque muitos vivem práticas condenadas pela própria sociedade. O curioso nessa relação é que a mesma sociedade que condenada o pecado é a mesma que o estimula. Por outras palavras, potencialmente, enquanto depositário do Pecado Original, o homem está condenado pela divindade. Enquanto depositário de uma cultura, o homem poderá comportar-se como bem ou mal lhe for o caso, em consonância com sua natureza. Ora, desde que para a interpretação de uma teologia tradicional a cultura é expressão própria do pecado, pois que "o mundo jaz no maligno"[7], qualquer comportamento humano isolado da divindade é pecado, mesmo seus atos de justiça "são como trapo de imundícia" (Isaías 64:6)[8]. Este é o resultado de uma dedução bíblico-teológica-essencialista[9] reducionista[10]: Todo o ser do homem é explicado por uma interpretação teológica, hoje anacrônica, de uma época destituída de tinos necessários a uma antropologia hoje pertinente. Decorre disto que, quando censuramos a alguém por conta de seus atos, ou mesmo o condenamos num tribunal, estamos a nos condenar a nós mesmos, pois que temos potencialmente o mesmo pecado, embora ainda não em ato. Compreende-se assim o lembrete Paulino: "Aquele que estiver de pé, abra do olho: não caia"[11].
Um dos problemas que essa interpretação reducionista acarreta é a constante expectativa de que os relacionamentos possam desandar, unicamente por conta do pecado que não meramente está, mas é parte do homem. Existencialmente, o homem caminha por esta terra, marcado pela desconfiança. Daí uma exegese inadequada de Jeremias 17:5[12], para se dizer que não se deve confiar em ninguém, e isso de uma perspectiva moral; ninguém merece confiança. As pessoas se relacionam, esforçando-se ao máximo para confiarem em quem amam, mas sempre sobressaltadas com as possibilidades de surpresas indesejáveis. O problema é que as portas são fechadas para quaisquer outras possibilidades de explicação dos problemas humanos, e aquele que é considerado culpado de algo só tem solução se praticar o arrependimento ou penitência, voltar para Deus, para assim ter solução em sua vida. Sem contar que, muitas vezes, além de lutar pela confiança de quem lhe condena, precisa também depositar valores na conta bancária de alguns interessados pela sua recuperação.
Além da constante expectativa de que as relações não desandem, acontece o pior na mente humana, aturdida por aquela teologia reducionista: sensação constante de culpa. O raciocínio é: "Sou assim ou pratico isso porque sou pecador". É a expressão essencialista[13] do finado Paulo, contida em sua Carta aos Romanos: "Miserável homem que sou"[14], emitida por quem está petrificado pela ação de uma teologia medusóide[15]. É, na verdade, uma auto-imagem pessimista, embora racionalizada como realista. Será que os direcionamentos religiosos de muitos clientes de manicômios não contribuem pesadamente para tal estado de enfermidade mental? Enquanto em seus redis, esses enfermos são ensinados que, se não conseguirem alcançar uma compreensão devida da obra do Cristo, não lhes chegará cura tão cedo.
Outra decorrência é o prejuízo do livre arbítrio. Se o homem é o que é, pecador por natureza, seu livre arbítrio é sempre relativo, condicionado mesmo, a esta natureza[16]. Diz-se assim, pois que o homem tende necessariamente à realização da sua natureza e nisto está o seu fim e, por conseqüência, a sua lei (isto se pensarmos aristotelicamente). Portanto, nenhum humano poderá fugir de tal sina. Mesmo não tendo participado ativamente do Pecado Original. Ou seja, cada exemplar da espécie humana já nasce com uma dívida que ele não contraiu pessoalmente e esta lhe é cobrada de forma que ele deve desdobrar-se para pagá-la. O problema, pois, se assevera: O homem tem uma dívida; mas como pagá-la, se sua natureza é justamente contrária ao pagamento? Como ser obediente a uma lei que é contrária à sua própria natureza, pois que seu livre arbítrio tende necessariamente para o lado oposto da lei? Decorre disso que, se sua salvação é exclusivamente por decisão da divindade, os que permanecem no pecado podem muito bem raciocinar: "Não me livro de tal pecado porque isto é da minha natureza e, além do mais, sou um preterido. Afinal, Deus tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer"[17]. É possível, sim, que esse raciocínio aconteça! Por que não? É possível, sim, mas também é problemático! Principalmente se for o caso de um homem pecar, sem saber que nisso incorre. Porque a divindade o permite e logo após o castiga, se aquele homem está inocente na situação? É o caso de Faraó, relatado em Gênesis[18]. A explicação de que a divindade sabe o que faz e porque faz é mera escapatória de mente, no mínimo preguiçosa, quando deveria reconhecer sua incompetência para a solução do problema teológico.
Nesse passo, não há nenhuma crítica à divindade, mas um pedido de reconsideração em relação ao que se entende por Pecado Original, por Livre Arbítrio, por natureza pecaminosa e por tantos outros temas vinculados à teologia tradicional. Recorrer à tese da Soberania de Deus até que traz luz sobre o problema (Deus pode fazer as coisas do jeito que quiser), mas não é suficiente; Deus não age meramente por querer; e levar esta tese às últimas consequências complica a justiça divina. Isto será abordado quando do texto sobre a compreensão soteriológica[19] da Carta aos Romanos nos seus primeiros três capítulos.
A esperança é que a produção teológica viabilize possibilidade de respostas para tal dificuldade contida na teologia tradicional sobre o pecado, levando em consideração implicações teológico-filosóficas contemporâneas, principalmente quando se tratar de assuntos relativos à existencialidade humana.
Willians Moreira
[1] Do grego, amartia e logia (hamartia e logia), respectivamente "pecado" e "ciência", estudo, doutrina.
[2] Pelágio (360 – 423 d. C.), monge britânico. Escreveu dois livros sobre o pecado, o livre arbítrio e a graça (Da natureza e Do livre-arbítrio). Seus opositores foram Agostinho e Jerônimo. Pelágio negava o pecado original; negava que a graça é essencial para a salvação; defendia um livre arbítrio absoluto. Foi condenado como herege pelo Concílio de Éfeso, em 431 (OLSON, Roger E.. História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida, 2001. pag. 272.).
[3] Por teologia tradicional entenda-se a teologia que o cristianismo adota nos meios dominantes; teologia esta resultante ainda do pensamento medieval, nos meios protestantes e católico-romano. Teologia fundada em uma compreensão hermenêutica unicamente fideísta, que não abre espaço para interpretações fundadas em transdiciplinaridade cuja hermenêutica aponta para uma compreensão de mundo não reducionista.
[4] Segundo essa doutrina, tudo o que o homem é em sua completa constituição transmite aos seus descendentes quando os mesmos são gerados.
[5] Avareza, luxúria (ligado à vaidade), ira, melancolia, preguiça, gula e orgulho.
[6] Potencialmente, o homem é homossexual, bissexual, sodomita, hedonista, homicida, suicida, adúltero, ladrão, avarento, lascivo, preguiçoso, invejoso, e todas as ramificações possíveis dos sete pecados capitais.
[7] I João 5:19: "o` kosmoj o[loj en tw|ponhrw| keitai.ponhrw" reporta-se a um adjetivo que pode ser traduzido por "mal" ou por "diabo", a depender do contexto. Neste caso, maligno está associado ao diabo e, como tal, associa-se à degeneração ético-moral; é isso que não toca "aquele que é nascido de Deus (I Jo. 5:18).
[8] Isaias 64:6: "Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; e todos nós caímos como a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arrebatam" (Almeida Revista e Corrigida).
[9] Por essencialista quer-se entender a compreensão antagônica à filosofia existencialista.
[10] Por reducionista quer-se entender aqui o pensamento que restringe a compreensão de um fenômeno a apenas uma possibilidade de o entender, não deixando espaço para outras possíveis explicação do mesmo fenômeno.
[11] I Coríntios 10:12: "Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia" (Almeida Revista e Corrigida).
[12] Jeremias 17:5: "Assim diz o SENHOR: Maldito o homem que confia no homem" (Almeida Revista e Corrigida).
[13] Nesse caso, claro, esteriotipa-se a compreensão paulina, mas apenas como forma de mostrar que as raízes do essencialismo não são tão recentes, como alguém poderia pensar.
[14] Romanos 7:24 (Almeida Revista e Corrigida).
[15] Reporte-se aqui ao mito grego da Medusa, personagem mitológica que paralisava quem a olhasse direto nos olhos.
[16] Romanos 6:20: "Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça". Um servo não faz a própria vontade, mas a do senhor.
[17] Romanos 9: 15, 16: Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece.
[18] Genêsis 12:10-20. Faraó tomou a mulher de Abraão sem saber que era mulher casada; afinal Abraão havia dito que ela era sua irmã (meia verdade). Por conta deste ato, Faraó foi castigado e muito. Quando o Faraó soube do fato, devolveu a mulher a seu marido. Ou seja, Deus permitiu que Faraó pecasse, mesmo que por ignorância, e depois o castigou. O que é complicado, se considerarmos a ação e Faraó como pecado.
[19] Do grego, sothri,a e logi,a (soteria e logia), respectivamente "salvação" e ciência, "discurso", estudo, doutrina.
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