O
pensamento sociniano sobre a onisciência de Deus não pode ser aceito pelo sistema de Leibniz. Como mencionado, tal
pensamento assevera uma limitação em Deus que não pode ser concebível na
teologia tradicional, nem no sistema de Leibniz. Os socinianos ensinaram que
Deus não é onisciente. Assim sendo, que ele não conhece absolutamente o futuro.
Como poderia prever os acontecimentos? Ora, se Deus conheceu o futuro, conheceu
também o mal. Se Deus sabia que o mal existiria em tais e tais circunstâncias,
e uma vez sabendo, permitiu-o, está necessariamente comprometido com o mal.
Este era o pensamento sociniano. Socino não conseguia conceber a ideia de que
Deus determinasse os acontecimentos do mal, visto que, criando Deus o melhor
dos mundos possíveis, e contendo este o mal, estaria Deus determinando a existência do próprio mal.
Acrescenta-se ainda que, sendo Deus Santo e Bom não pode ser onisciente, visto
que o mal existe. Este pensamento é um tanto simplório para Leibniz que o
questionará cabalmente.
Na
Teodicéia, § 364, Leibniz diz:
Assim, os socinianos não
podem ser excusados de negar a Deus o conhecimento exato de eventos futuros, e,
sobretudo de decisões futuras de uma criatura livre. Pois mesmo que tenham
suposto que há uma liberdade de indiferença completa, então aquilo que eles
poderiam escolher sem causa, e que isto efetuado não poderia ser visto neles causa
(o que é um absurdo grande), eles devem sempre levar em conta que Deus foi capaz
de prever estes eventos na ideia do mundo possível que ele resolveu criar. Mas
a ideia que eles têm de Deus é indigna do Autor das coisas, e não é
comensurável com a habilidade e inteligência que os escritores deste grupo
frequentemente mostram em certas discussões particulares. O autor de Reflexões sobre a descrição do socinianismo
não tinha no geral errado em dizer
que o Deus dos socinianos seria ignorante e impotente, como o Deus de Epicuro,
todo dia confundido por eventos e pela vida de um dia para o outro, se ele
somente conhece por conjectura o que a vontade dos homens pode ser.[1]
O deus sociniano é considerado
por Leibniz como “ignorant” e “impuissant”. Ora, Leibniz é teologicamente tradicionalista.
Ele não admitiria que o Deus cristão comportasse em si tais limitações. As
mesmas contradiriam parte considerável do teor teológico de muitos concílios
eclesiásticos, como também os ditames da razão leibniziana. Para Leibniz, razão
e fé estão em perfeito acordo e o que têm alcançado não admite o deus
sociniano, “ignorant” e “impuissant” quanto aos atos futuros dos seres humanos.
Na
verdade, Leibniz tem uma resposta inteligente para o problema levantado pelos
socinianos. Na Teodicéia, Leibniz diz:
Assim os platônicos, Santo
Agostinho e os escolásticos tiveram razão em dizer que Deus é a causa do (elemento) material do mal, que consiste na (parte)
positiva, e não da (parte) formal, que consiste na privação.[2]
Como se pode dizer que a corrente é a causa do (elemento) material da
diminuição de velocidade, sem ser do (elemento) formal, isto é, ela é a causa
da velocidade do barco sem ser a causa do limite desta velocidade. E Deus não é
mais a causa do pecado do que a corrente do rio é a causa da limitação de
velocidade do barco. A força é assim em relação à matéria como o espírito é em
relação ao corpo; o espírito está pronto, mas o corpo é fraco, e o espírito estimula
ação... _quantum non noxia corpora
tardant.
A sutileza de Leibniz está em repetir que Deus é
causa apenas do “[elemento] material do mal” e não do seu elemento formal. Para
Leibniz, ser causa do elemento material do mal é positivo. Ao homem fica a
criação do elemento formal; o que é negativo. Isso se aplicaria também ao bem?
O elemento formal quanto ao bem seria também negativo? Ora, que “material”, se
o mal está desontologizado, pois que é apenas uma privação do bem? Leibniz
expressa ainda sutileza em seu argumento com a analogia da “corrente” de um
rio. Mas uma vez a retórica leibniziana atua, esquecendo das consequências do
seu argumento do encadeamento dos acontecimentos-causas deste as origens. Onde
está a causa do limite da velocidade do barco? Não estaria no início, quando da
harmonia preestabelecida? E quem a estabeleceu? No ponto nº 07 de seu Discurso de Metafísica, Leibniz admite
que o mal é fruto da concorrência causada pelas leis naturais que Deus
estabeleceu. Como fica então o seu argumento da “corrente” do rio? Não parece que Leibniz
respondeu satisfatoriamente à questão.
Distinção entre vontade
decretatória e vontade permissiva
em Deus.
A
onisciência divina está em coerência com uma distinção entre vontade decretatória e vontade permissiva feita por Leibniz. Vontade decretatória atém-se ao bem do mundo; vontade permissiva atém-se ao mal que acontece no mundo. Desde que a
vontade permissiva segue naturalmente
sua razão, Deus tem lá os seus motivos racionais para permitir que o mal
estivesse no mundo. Deus não foi surpreendido pelo acontecimento do mal, pois
que o mesmo só acontece em virtude do seu decreto. Sua vontade decretatória
agiu dirigida pelo seu entendimento. Permitiu-o antes por saber que o mesmo é
necessário ao melhor de todos os mundos. Afinal, como as criaturas saberiam que
seu Criador é tudo que diz ser, se não experimentassem o seu contrário? Como
uma criatura saberia o que é a bondade, se não conhecesse a maldade? O que
levaria a razão divina a dirigir a sua vontade a decretar o mal metafísico que,
por sua vez, ocasionaria os outros males? Dizer que a vontade decretatória atém-se
ao bem do mundo é dizer que Deus sabe que o melhor dos mundos, para Leibniz,
precisa do mal metafísico. Sua vontade permissiva poderia não abrir espaço para
o mal moral e o mal físico. Mas só o permitiu porque o seu entendimento o
prescreveu. Desse modo, fica complicado isentar Deus da responsabilidade sobre
o mal. A não ser que se raciocine como Leibniz que pensa o mal como uma
aparência, e isso é bem coerente com a tese do mal-nada. Se o mal está desontologizado, ele não passa de uma
aparência. É o que Leibniz diz na Monadologia:
Assim não há nada inculto, estéril ou morto no
universo; nem há caos, ou confusão, senão
em aparência;[3]
seria como num lago onde, à distância, se veria um movimento confuso, um
bulício de peixes do lago, sem que se discernissem os próprios peixes (§ 69).
O que é chamado de mal, na verdade não passa de um fenômeno mal
entendido pelo intelecto humano. Se o intelecto divino entendeu que essa tal
aparência era necessária, é um bem. Como resolver então o problema do mal
moral? Leibniz não quis ir às últimas consequências.
A onisciência de Deus funda-se em sua onipotência em decretar
Leibniz,
em seu De
Libertate, diz:
Na verdade, não há porção de matéria tão diminuta
que não contenha um tipo de mundo de criaturas, infinitas em número, e não há
substância individual criada tão imperfeita que não atue sobre todas as outras
e que não sofra suas ações, nenhuma substância tão imperfeita que não contenha
o universo inteiro, e o que quer que seja, foi ou será, em sua noção completa
(tal como existe na mente divina), nem
há qualquer verdade de fato ou qualquer verdade relativa às coisas individuais
que não dependa da infinita série de razões;[4]
o que quer que esteja nessa série pode ser visto apenas por Deus. Essa também é
a razão pela qual apenas Deus conhece as verdades contingentes a priori e vê
sua infalibilidade de outro modo que não através da experiência (Leibniz, 2006.
Pág. 01).[5]
O
detalhe está em “nem há qualquer verdade de fato ou qualquer verdade
relativa às coisas individuais que não dependa da infinita série de razões”. O
mal visto em sua individualidade, depende da “infinita série de razões”. Razões
divinas, claro. Portanto, razões que levam ao decreto da vontade permissiva.
Decreto este determinado pelo entendimento divino e, portanto, sujeito à sua
onisciência.
O argumento leibniziano
(da interligação dos acontecimentos deste o passado remoto ou desde a
antiguidade – Monadologia, § 36 e Teodicéia, parte I, § 9) leva às consequências
de que Deus é onisciente não porque meramente prevê o futuro, mas porque sua
onipotência determinou todo o futuro, desde que escolheu este mundo. Deus
conhece o que determinou acontecer,
portanto, ele conhece todas as coisas. Inclusive sabe por que e para que existe a imperfeição da
natureza. Neste ponto, pode-se dizer que Leibniz foi genial em sua resposta aos
socinianos quanto à questão da presciência divina, submetendo-a a sua
onipotência: Deus conhece o futuro porque teve (e tem) o poder de decretar tudo
quanto acontece e acontecerá. Assim o fez por saber que era o melhor. Mesmo que
a razão sociniana não alcance tal sabedoria.
Willians Moreira Damasceno
[1] Texto original: Ainsi
les Sociniens ne sauroient être excusables de refuser à Dieu la science
certaine des choses futures, et sur tout des resolutions futures d’une creature
libre. Car quand même ils se seroient imaginés qu’il y a une liberté de pleine
indifference, en sorte que la volonté puisse choisir sans sujet, et qu’ainsi
cet effect ne pourroit point être vu dans sa cause (ce qui est une grande
absurdité), ils devoient tousjours cinsiderer que Dieu avoit pu prevoir cet evenement dans l’idée du monde possible
qu’il a resolu de créer. Mais l’idée qu’ils ont de Dieu, est indigne de
l’auteur des choses, et repond peu à l’habileté et à l’esprit que les Ecrivains
de ce parti font souvent paroitre en quelques discussions particulieres.
L'Auteur du Tableau du Socinianisme n’a pas tout à fait tort de dire que le
Dieu des Sociniens seroit ignorant,
impuissant,[1]
comme le Dieu d’Epicure, demonté chaque jour par les evenemens, vivant au jour
la journée, s’il ne sait que par conjecture ce que les hommes voudront (GERHARDT, Vol 7.
Pág. 108 - 109).
[5] LEIBNIZ, G. W. Sobre
a liberdade (De Libertate). (1689?).
http://www.leibnizbrasil.pro.br/delibertate.htm. Acesso em 08/03/2006.
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