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sábado, 16 de janeiro de 2010

TODAS AS COISAS ME SÃO LÍCITAS

Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm.Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma (I Coríntios 6, 12).
Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. I Coríntios 10, 23
Paulo de Tarso


            Às vezes, diante de certas máximas paulinas, a pergunta sobre a sua sutileza não quer calar. Faz-se mesmo necessário dar-lhe atenção: O que era e o que não era conveniente ao teólogo Paulo? Quais conveniências levaram Paulo a tomar decisões que culminaram em sua morte? Que conveniência levou-o a tomar decisões às quais a ortodoxia judaica reprovou e, em alguns casos, deixou uma ala de cristãos, contemporâneos seus, perplexa?
            O fato é que as implicações das epígrafes aqui expostas são extremamente contundentes. Levam o leitor a refletir sobre os "bastidores" de uma vida que tem sido interpretada das formas mais variadas por pensadores de matizes os mais diversos.
            Como se não bastasse, aqui estão mais algumas considerações relacionadas à máxima paulina: "Todas as coisas me são lícitas...".
            Diante mão, alguns questionamentos possíveis: Todas as coisas me são realmente lícitas? Todas sem distinção? As quais coisas o texto se refere? Qual o sentido de licitude? Qual o sentido de conveniência?

Tudo me é lícito?
            Primeiro, o contexto das epígrafes são os capítulos seis e dez da 1ª carta aos Coríntios. Os capítulos trazem uma série de reprimendas contra aquela igreja, relativas a procedimentos morais. O capítulo seis mostra-se contrário à atividade dos Coríntios quanto a questões de ordem judicial (1 a 9); em seguida (10 a 20), desfecha golpes ferrenhos contra atividades consideradas pecaminosas: alcoolismo, pecados sexuais, ladroagem, avareza, maledicência, etc. Neste contexto apresenta-se a máxima: "Todas as coisas me são lícitas". A questão é: Todas aquelas práticas são consideradas lícitas pelo apóstolo a si mesmo, embora ele não se deixe dominar por nenhuma delas, nem lhe convenham? Em I Coríntios 10: 23 a abordagem trabalha a questão da consciência. O assunto culmina com "nem todas as coisas edificam". Paulo conclui: "Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus" (I Cor. 10, 31). Eis aqui, parece, a estampa de um critério para decidir o que é conveniente: "fazei tudo para a glória de Deus". Ou seja, antes de agir, faz-se necessário refletir sobre a possibilidade de os nossos atos contribuírem ou não para a glória da divindade. Na verdade, parece impossível pensar que, ante todas as supostas reprimendas divinas a muitas práticas consideradas como pecado por seus escritores, haveria licitude para tais práticas. Se a lei diz que é proibido adulterar, não é conveniente deixar-se dominar por tal prática. Se pensar o adultério pela ótica do Imperativo Categórico kantiano, quem gostaria que tal prática se tornasse norma universal? Se pensar o adultério teleologicamente, quem teria previsão de felicidade concordando que seu cônjuge deitasse com outra pessoa? Sem contar, principalmente, que Deus não se sentiria glorificado naquela prática que ele mesmo condena. E o que mais quer um cristão, senão agradar à sua divindade? Então qual o sentido de licitude? Ora, o que é proibido não é lícito. Se a lei proíbe, então não é lícito? Então o que quer dizer Paulo com "todas as coisas me são lícitas"?
O texto grego traz o verbo impessoal ekseimi, que tem o sentido de "ser permitido", mas também pode ser traduzido por "ser possível". O sentido é o de que não haverá impedimento ativo a algum procedimento. Ou seja, o indivíduo é livre para agir. É fácil entender que ekseimi traz a idéia de permissão pelo prisma de que o livre arbítrio escolherá o caminho a ser seguido. Não significa que o indivíduo está liberado pela lei divina para tal prática. Se esse fosse o sentido, o texto seria uma liberação de afronta à divindade. Uma tradução possível da epígrafe seria: "Tenho liberdade para fazer tudo o que me for possível". Ou seja, Tenho liberdade para levar um irmão a juízo entre injustos? Da mesma forma, para adulterar, roubar, matar, ser avarento, etc.? Um ressonante sim é a resposta. Não entanto, o finado Paulo aduz: "Mas nem tudo me convém... não me deixarei dominar por coisa alguma... nem todas as coisas edificam". Pode-se questionar então: Mesmo que eu tenha liberdade para praticar tudo o que eu quiser, é conveniente levar um irmão a juízo entre injustos? Este ato contribuiria para a glória de Deus? Devo deixar-me dominar pela prática do roubo? Estas e questões semelhantes teriam um "sim" como resposta?

Deixar-se dominar pelo que convém e pelo que edifica
            De forma direta, em primeira instância, o apóstolo diz que os critérios do que lhe domina são a conveniência e a edificação. Se algo não lhe convém ou não lhe edifica, não deve lhe dominar. Em segunda instância vem o critério da conveniência e da edificação: "fazer tudo para glória de Deus". Neste passo apresenta-se uma problemática difícil de resolução: Que ética está implicada na seleção do que convém ou do que edifica? Que ética é vigente na prática de algo para a glória de Deus?
            A idéia de seleção é compreensivelmente captada na epígrafe. Faz-se necessária uma seleção do que é conveniente e do que não é conveniente dentre todas as coisas possíveis ao meu livre arbítrio. Se há seleção, existem critérios que dirigem a mesma. Quais são, pois, os critérios e de quem são os mesmos? De imediato, em se tratando de critérios, questiona-se sobre qual ética estará no controle de tal seleção; qual ética estará em foco como marco teórico: se a ética deontológica, ou a ética teleológica, ou uma ética hedonista, ou ainda outra qualquer ética possível. Mesmo que se arvore o critério de "fazer tudo para a glória de Deus". Este mesmo está condicionado a uma ética.
            A ética deontológica (do grego δέον, deon: "dever, obrigação" + λόγος, lógos, "ciência") é também conhecida por "Teoria do Dever" ou "o estudo do que convém"[1]. O termo foi introduzido em 1834, por Jeremy Bentham, para se referir ao ramo da ética cujo objeto de estudo atém-se aos fundamentos do dever e às normas morais. O ponto básico e fundamental sobre esta ética prescreve que as escolhas são moralmente necessárias, proibidas ou permitidas. Um baluarte desta ética foi o filósofo Emanuel Kant, com o seu Imperativo Categórico, segundo o qual a vontade deve submeter-se à obrigação. E neste diapasão, só deve ser praticado por alguém aquilo que o tal desejaria que se tornasse lei universal para todos os humanos, e isto independentemente dos resultados.
            A ética teleológica tem Aristóteles como seu mentor mais ilustre. É uma ética que prescreve que a boa ação deve ser medida pelas consequências. Isso significa que a previsão do resultado de uma ação é o que determina em que direção o agente procederá em suas decisões e ações. Para Aristóteles, toda ação deve visar como fim a felicidade do homem. Daí o termo teleologia, do grego: télos, fim, finalidade + lógos, estudo, ciência. Parece que há uma afinidade entre a ética teleológica e o critério de "fazer tudo para a glória de Deus". Se este alvo for visto como finalidade precípua das ações humanas e se isto é o que traz felicidade ao homem, há uma possibilidade de que Paulo, pelo menos nesse particular, afinasse o seu instrumento ético pelo diapasão aristotélico, de vez que um cristão "ajustado" buscaria sempre a felicidade de "fazer tudo para a glória de Deus".
            Uma ética hedonista, mesmo que use o critério de "tudo para a glória de Deus", estaria a escolher o seu próprio desejo porque "tudo para a glória de Deus" resultaria em seu prazer. Este é o bem maior de um hedonista. Não seria mesmo a própria divindade. Nesse particular, não quer calar a questão: O que na verdade desejamos quando buscamos a uma divindade?
            Bom! Essas são apenas algumas possibilidades de direcionamento ético na seleção do que é conveniente a alguém enquanto agente moral. Na verdade, cada ramo filosófico pode ser apresentado com a sua abordagem ética. Seja o utilitarismo, o hedonismo, o epicurismo, o estoicismo, o kantismo, o aristotelismo, o existencialismo, etc.. Todas essas filosofias possuem linhas de encontro e de alinhavamento entre si que, no fim das contas, suas éticas poderiam ser resumidas a duas, três ou poucas mais. Mesmo o pensamento cristão não perde o seu viés filosófico, por mais teológico que seja, e, em função disso, é mais uma ética entre as outras, passível de revisão e de condicionamentos humanos.
            O fato é que toda a abordagem ética, seja de que ordem for, redundará numa ética egotista. Isto significa que toda e qualquer ação humana sempre se volta para o ego. Nada foge aos ditames dos interesses pessoais, particulares. Minhas conveniências estão em função dos meus critérios, que estão em função de minha ética, que está em função do que eu entendo como mais viável, fiável, crível e aceitável nos sistemas humanos, um dos quais, ou um que eu mesmo crie, direciona meu raciocínio na escolha do que me convém, com meios e fins a serem alcançados, na busca de agradar seja a quem for, o que resultará em minha própria realização enquanto alvo alcançado, seja de prazer ou sofrimento, seja de vida ou de morte, se tudo isto implicar em minha realização. Em palavras finais: só busco o que me realiza e tem sentido para mim. Se isso for interpretado como reducionismo, será uma possibilidade.
            Como este momento não serve a uma expansão maior do assunto, volte-se à epígrafe.

De quem é o critério do que não me convém? Se for dito que é da Bíblia, entra em cena o critério (ou critérios) que leva alguém a adotar este texto como autoridade para o que lhe convém ou não. Conclusão: o que me convém não passa de mera questão de escolha particular, muitas vezes induzida emocionalmente; pura realidade de adesão partidário-denominacional, mediante um convencimento ou uma persuasão do que me é mais patente num dado momento. Amanhã posso ter outra perspectiva de compreensão e passarei a pensar diferentemente do que penso hoje. Quem testemunha que isto acontece é o próprio Paulo: "Quando eu era menino, falava como menino; pensava como menino; raciocinava como menino. Mas quando me tornei homem, deixei as coisas de menino" (I Coríntios 13, 11). O próprio apóstolo fez uma revisão de sua ética quando aderiu ao Cristo em detrimento de sua tradição judaica.
Nessa esteira, observem-se exemplos de práticas políticas e religiosas no meio cristão-anglicano. Na África, setores anglicanos praticam a poligamia, porém rejeitam a homossexualidade. Enquanto setores anglicanos nos USA elegeram em 2009 uma bispa homossexual e rejeitam ferrenhamente a poligamia dos seus irmãos africanos. Quem julga se a homossexualidade e a poligamia contribuem para a glória de Deus, desde que a Bíblia prescreve que tudo seja feito para a glória da divindade? Matar homossexuais contribuiria para a glória de Deus? Parece que muitos anglicanos na África entendem dessa forma, pois que prescrevem tal prática. Mesmo que alguém avente textos bíblicos que combatem a homossexualidade, entrarão em palco várias correntes de interpretação, chamadas cristãs, que possibilitarão visões as mais diversas sobre o fato.
Se assim é, decorre que a conveniência de alguém possui em si uma tônica teleológica, com a possibilidade de os fins justificarem os meios. Dessa perspectiva, desde que o homem é quem toma a decisão, ele é o centro de tudo. É a medida última de todas as coisas. Não é o Cristo. Muito menos Deus. Estes são apenas meios para se chegar ao que é, em última instância, conveniente: o seu ego. E não há como escapar desta realidade. Todas as decisões sempre partem da perspectiva de quem as toma. Mesmo as decisões que são entendidas como da vontade de Deus são tomadas a partir do que entendemos como vontade de Deus. Esta realidade leva um homem a tomar decisões que diferem das decisões de outrem sobre o mesmo assunto nas mais diversas áreas das ações humanas.
Portanto, parece melhor assumir-se que as decisões não devem necessariamente envolver ou responsabilizar a divindade. Uma vez que as mesmas são sempre reflexos da subjetividade de quem as toma. Deve-se assumir a responsabilidade total dos atos praticados, consciente de que tudo é mesmo, em última instância, pelo que convém ao interessado na decisão. É uma questão de se assumir a maioridade. Usando da analogia da paternidade atribuída à divindade, tão praticada entre os religiosos, que pai se sentiria satisfeito ao ver um filho adulto, em tudo que fosse fazer, perguntar-lhe como, quando, com quem, para que, o que, etc.? Que pai não se sentiria frustrado se seus filhos não aprendessem a tomar decisões por si próprios? Seria Deus menos maduro que um pai humano maduro? Se for, dá licença! No entanto, é isso que o sistema religioso vigente estimula nos cultuantes: uma dependência de Deus absurda. Por sua vez, Deus talvez esteja insatisfeito e contra esta corja de guias religiosos que, à custa da ignorância popular, ensina o que lhe convém ao próprio bolso e aos seus preconceitos.
Partindo do pressuposto de que todas as coisas estão à mercê do meu livre arbítrio (e isto não foi Paulo quem descobriu), posso ter a ética que bem me convier. E no âmbito dos meus critérios, a ética que me convém é aquela que me permite conviver bem em sociedade, sem tampouco me privar dos prazeres que a vida me permite desfrutar. Não será nenhum sistema ético-humano que não o meu próprio, que me conduzirá na relação comigo mesmo e com a sociedade. E, à medida que minha sociedade se libera de tantas amarras éticas mesquinhas, fico livre, cada vez mais livre, para expandir as minhas possibilidades de desfrute dos prazeres da vida, dentro das minhas condições e da minha consciência. Pois quem me seria autoridade quanto ao que devo ou não devo realizar senão a minha subjetividade? Ninguém se exaspere se o que me convém "não fecha" com os seus sonhos do que seja uma ética cristã. Até porque existem muitas éticas chamadas cristãs a gosto do freguês. E se alguém tem uma ética diferente, deve-se isto ao critério hermenêutico adotado como conveniente por cada um dos supostos cristãos.
A questão do critério do que me convém em minhas decisões leva à questão da liberdade. Nesse ponto, o pior de tudo para um suposto cristão seria admitir que nunca foi escravo de Cristo. Na verdade, somos escravos da compreensão que temos do Cristo. Subjugamo-nos ao que compreendemos como sendo o que Cristo ensinou. E isto mediado por tantos quantos nos ensinaram a interpretar. É preferível admitir uma escravidão às minhas limitações quanto a compreender o que Cristo disse, mediado por seus supostos escritores.
A pior escravidão é a que milhões de religiosos estão vivenciando sob o jugo férreo de quererem fazer o que seus mentores lhes prescrevem, enquanto em suas mentes não entendem o porquê das prescrições seguidas, por mais que se esforcem, nem porque não podem ser diferentes. O remédio buscado é a medíocre escapatória paulina do "aquilo que quero fazer não faço, mas o que não quero, isso faço". Haja conflito! Por isso a própria conclusão paulina: "miserável homem que sou". Então vem a escapatória final: crer que o Espírito de Cristo habita em si, mesmo numa condição como essa. Quando o que na verdade está em si é uma compreensão de quem seja o Cristo ou o seu Espírito. Quando houver libertação dessa compreensão do Cristo a la Paulo, haverá outra perspectiva de liberdade que talvez favoreça melhor à existência. Para Paulo convinha viver se anulando ("não mais eu vivo, mas Cristo vive em mim"). O fato é que ele não admitia em si a existência de uma compreensão apenas particular do Cristo, que, inclusive, possuía opositores dentro da própria Igreja. Diga-se de passagem, não há pior escravidão do que esta: anular-se em função de outrem. A liberdade integral, porém não absoluta, é aquela na qual o homem assumi-se em todas as suas condições e limitações possíveis. Se Deus, que não se anula em função de outrem, mas só faz o que lhe convém, exige minha anulação, então Ele não passa de mera projeção humana afeita a impor aos outros os ditames de sua vontade, expressão de rasteira imaturidade. Assim como um pai maduro que estimula o filho a se independer de sua paternidade, não seria essa a imagem mais adequada à divindade? Se assim não é, dá licença! Entenda-se independência de Deus não em termos absolutos. O poeta grego, citado pelo próprio Paulo no Areópago, estava certo: "Nele nos movemos e existimos". Mas isso não significa que tenhamos de ser dependentes quanto às nossas decisões ético-morais, existenciais, práticas e diárias. A devida consciência das implicações ideológicas que são substratos da suposta ética cristã que dizemos defender deve abrir portas para a tolerância necessária a uma convivência pacífica e conveniente à maturidade humana. Quem sabe, a prática de tal tolerância seja mais conveniente à glória da divindade do que um fundamentalismo grotesco a prescrever uma tirania malfazeja sobre a vida ético-moral dos humanos.

5 comentários:

Cartas para João disse...

Esse seu texto tem o impacto de um tisumami abala, faz sofrer e nos alivia; Na realidade não se pode negar,a responsabilidade de todos os nossos atos é apenas nossa e de mais ninguém.....Solange

Débora Aquino disse...

adorei, fiz questão de ler com calma.

edvardeoliveira@gmail.com disse...

Um dia destes vou pregar sobre este assunto só pra ter o prazer de citar seu trabalho, dando crédito ao autor, claro!!!

Anônimo disse...

Edvar,
Vc é meu amigo.
Obg pela consideração.
Saúde muita para vc.

carlos medeiros disse...

MUITO BOM PROFESSOR TODAS MINHAS DUVIDAS FORAM TIRADAS SOBRE ESSE ASSUNTO.