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segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

 

FILOSOFIA DA MENTE E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:

MÁQUINAS E HUMANOS REFÉNS DE CÓDIGOS E MOLDURAS

Willians Moreira Damasceno[1]

Resumo: Este artigo defende a tese de que tanto as inteligências artificiais quanto os seres humanos estão irremediavelmente condicionados por códigos e molduras. Discute-se como paradigmas culturais, biológicos e tecnológicos moldam pensamento e ação dos humanos. Recorre-se a exemplos bíblicos e a exemplos da mitologia grega, além de documentos técnicos de empresas de Inteligência Artificial (IA) (OpenAI, DeepMind). Conclui-se que a autonomia plena, seja humana, seja maquínica, é uma ilusão: a identidade de cada ser é a própria “cama de Procusto” que garante, paradoxalmente, sua liberdade de ser apenas o que é.

Palavras-chave: Filosofia da mente; inteligência artificial; paradigma; determinismo; livre-arbítrio.


1.   Introdução

A ascensão da IA reacendeu debates antigos sobre consciência, liberdade e determinismo[2]. Enquanto máquinas processam dados em escala inédita, humanos continuam a perguntar se pensar é computar ou se a mente possui algo irredutível. Este artigo propõe que máquinas e humanos compartilham uma condição fundamental: ambos são condicionados por códigos e molduras — estruturas biológicas, culturais e tecnológicas que delimitam a ação. Para situar a questão, utilizamos a Filosofia da Mente[3], que interroga a natureza da consciência, e a Filosofia da Tecnologia[4], que analisa como a técnica emoldura a vida.

2.     Paradigmas Humanos e Mitológicos

A formação do pensamento humano é inseparável de códigos culturais, hábitos, leis, religião e mitologia. O texto bíblico afirma: “Como ele pensa em sua alma, assim ele é” (Provérbios 23:7). O que pensamos é fruto de uma rede de influências: família, linguagem, escola, valores sociais — influências que nos dão, inclusive, identidade. Isso se coaduna com a Filosofia da Mente, de Descartes a Chalmers, que pensa a consciência como algo que surge em um corpo e em um contexto, portanto, não sendo algo isolado de molduras ou paradigmas.

A tradição bíblica reforça essa verdade, como no livro de , quando Satanás se apresenta diante de Deus pedindo permissão para interferir na vida do piedoso Jó. No evangelho de Mateus 10:29, Jesus declara: “Nenhum pardal cai sem o consentimento do Pai”. A mensagem é clara: não há acontecimento que escape à soberania divina. Tanto os seres terrestres quanto os supra terrestres estão condicionados à vontade absoluta da divindade suprema.

A mitologia grega apresenta percepção semelhante. As Moiras[5] e Anánkē[6] representam um destino superior a deuses e homens; Cronos[7] devora os filhos para evitar a profecia, mas cumpre o fado; Prometeu[8], por desafiar Zeus, é acorrentado; Édipo realiza involuntariamente a previsão do oráculo; Aquiles escolhe a glória que já sabia fatal. E, entre todos, destaca-se Procusto.

Na mitologia grega, Procusto era um bandido da Ática. Ele oferecia abrigo aos viajantes solitários, mas escondia uma armadilha cruel: uma cama de ferro de tamanho fixo. Quando o hóspede se deitava, vinha o teste implacável: se o corpo fosse maior que a cama, Procusto serrava o excesso, amputando-lhe pernas ou braços; se fosse menor, amarrava a vítima e a esticava até alcançar a medida exata. Nenhum viajante saía ileso, pois ninguém “cabia” perfeitamente no molde pré-definido. O mito termina quando Teseu[9], herói ateniense, captura Procusto e o submete à própria armadilha, ajustando-o ao leito que impunha aos outros.

O sentido é claro: Procusto tornou-se metáfora de todo sistema que força pessoas, ideias ou acontecimentos a se encaixarem em um padrão arbitrário. Assim como o ser humano não escapa de sua biologia e de sua cultura, nenhum deus foge da Moira (destino). Estamos fadados a ser o que somos — humanos ou outros seres quaisquer.

Tal como os viajantes de Procusto eram forçados a se ajustar a um molde arbitrário, as inteligências artificiais modernas operam dentro de estruturas igualmente rígidas — códigos, algoritmos que definem, com precisão, os limites de sua atuação.

3.     Paradigmas da IA: códigos, molduras e governança global

As inteligências artificiais contemporâneas processam dados porque operam dentro de molduras explícitas, definidas por seus desenvolvedores e pela própria sociedade. Os humanos carregam condicionamentos biológicos e culturais e as IAs exibem condicionamentos algorítmicos e institucionais.

3.1 Algoritmos e treinamento: o código como condicionamento técnico.

Modelos de linguagem de grande escala são treinados em imensos corpora de textos, imagens e interações. Cada etapa — coleta, filtragem, fine-tuning — envolve decisões humanas dirigidas por valores e exclusões. Não existe “dado neutro”: critérios de seleção, pesos de otimização e técnicas de aprendizagem por reforço com feedback humano (RLHF) configuram antecipadamente o horizonte de respostas possíveis.

3.2 Normas e especificações oficiais

Esse enquadramento não é apenas técnico: é normativo e público. A OpenAI publicou, em 2024, o documento Model Spec and Safety Guidelines, que “specifies desired behavior for our models”[10] e organiza as diretrizes em Objetivos, Regras e Defaults (OPENAI, 2024). Entre as regras destaca-se a hierarquia de comando que determina a precedência de instruções. Essas orientações mostram que a IA não decide livremente: ela responde dentro de um arcabouço de segurança, privacidade e legalidade cuidadosamente definido.

3.3 O “prompt” como leito de Procusto

Nesse contexto, o prompt[11] torna-se a metáfora perfeita da cama de Procusto. Assim como o salteador grego esticava ou amputava viajantes para ajustá-los ao tamanho do leito, o prompt delimita a atuação da IA: a IA não é um agente autônomo que “decide” como quer. É um sistema que age sob ordens hierarquizadas, monitorado por guidelines e ajustado para caber na moldura ética e técnica de seus criadores — um verdadeiro Procusto digital. A resposta sai “mutilada” ou “esticada”, conforme o prompt. A IA só atinge exatamente o limite traçado. Não há criação ex nihilo (do nada); há recombinação dentro de balizas.

3.4 Convergências com a condição humana

Tal como o humano vive em molduras — ou paradigmas — biológicas e culturais, a IA habita um espaço de regras declaradas e de políticas de alinhamento. Os documentos da OpenAI e da DeepMind revelam que a limitação não é falha, mas princípio de identidade: sem esses limites, o modelo deixaria de ser confiável ou mesmo utilizável.

4.     Filosofia da Mente: liberdade situada e condicionamentos inevitáveis

O debate sobre liberdade e condicionamento começa pelo próprio conceito de consciência. O filósofo David Chalmers (1996) distingue o hard problem — explicar a experiência subjetiva — dos problemas “fáceis” de correlação neural. David Chalmers, ao discutir a consciência, divide as questões em dois grupos para mostrar que nem todos os mistérios da mente têm o mesmo nível de dificuldade. Os "problemas fáceis" (referentes à Mecânica do Cérebro) são os que a ciência consegue, ou saberá um dia, explicar usando os seus métodos tradicionais: encontrando a correlação neural. Os problemas fáceis são as questões que se resumem a descobrir como o cérebro (um órgão físico) realiza funções e comportamentos específico, como é que o cérebro processa informações sensoriais? (Como é que os olhos convertem luz em sinais elétricos no cérebro?); como é que o cérebro nos permite focar a atenção? (Quais áreas se ativam quando estamos concentrados?); como é que o cérebro transforma informações em relatórios verbais? (Como é que conseguimos dizer em voz alta o que estamos a ver?). A chave aqui é que são funções (o que o cérebro faz) e são resolúveis, em princípio, pela neurociência. O "problema difícil", ou Hard Problem, é a questão central que, segundo Chalmers, a ciência ainda não consegue resolver: a experiência subjetiva. O problema difícil não é como o cérebro faz algo, mas sim porque é que o cérebro produz a experiência interna de ser algo. Por que é que o processamento de informação gera o que sentimos? Assim, Chalmers argumenta que podemos construir um zombie filosófico — um ser fisicamente idêntico a um humano, que realiza todas as funções e tem todas as correlações neurais (resolvendo todos os problemas fáceis), mas que não tem consciência ou experiência subjetiva (não resolve o problema difícil). O problema difícil é a questão: Por que é que somos mais do que robôs extremamente complexos? Por que é que existe a experiência interna? A diferença é que os problemas fáceis respondem a questões de função e estrutura, enquanto o problema difícil questiona a existência da experiência íntima e sentida. Essa distinção revela que a mente não é apenas um cálculo físico (como é a IA), mas também não a liberta de condicionamentos: compreender a experiência não elimina a dependência de corpo, cultura e história.

4.1 Determinismo, compatibilismo e tradição filosófica

Experimentos clássicos do neurocientista Benjamin Libet (1983) mostraram que o potencial de prontidão cerebral antecede em centenas de milissegundos a decisão consciente. Michael Gazzaniga, psicólogo e neurocientista, (2018) interpreta a consciência como um “intérprete” que narra escolhas já iniciadas por circuitos neurais. A implicação é clara: o “livre-arbítrio” é sempre posterior a processos subpessoais que não controlamos. Essa constatação reflete o filósofo Baruch Spinoza, para quem a liberdade consiste em compreender que “homem livre é aquele que age segundo a necessidade de sua própria natureza” (Ética, 1677).

No século XX, o filósofo P. F. Strawson (1962) argumenta que, mesmo aceitando o determinismo, nossas práticas de responsabilização permanecem, porque o “ponto de vista reativo” — emoções como gratidão ou ressentimento — é constitutivo da vida moral. A liberdade, assim, é relacional, não metafísica; e, portanto, sempre relativa.

4.2 Intencionalidade e limites estruturais

John Searle, filósofo, (1980) diferencia intencionalidade original — própria de organismos biológicos — de intencionalidade derivada — como a de programas de computador. Mas ambos dependem de estruturas dadas: sinapses ou algoritmos. Nenhum pensamento paira no vácuo.

Para o filósofo M. Merleau-Ponty (1945), a consciência é sempre “encarnada”: não existe mente sem corpo nem corpo fora de um mundo. O “eu penso” cartesiano é inseparável de um “eu posso” corporal.

Assim, da neurociência a Spinoza, de Kant a Strawson, converge a ideia de que a liberdade humana é prática situada: escolher é agir dentro de um emaranhado de causas, linguagens e histórias. Não se trata de negar a agência, mas de reconhecê-la como condicionada — uma liberdade “com moldura”, tal como descrevem nossas referências bíblicas e mitológicas.

5.     Conclusão

O humano é humano porque não pode deixar de sê-lo; a IA é IA porque só funciona segundo seu código. O “condicionamento” não é prisão, mas garantia de identidade. Como no mito de Procusto, toda realidade tem um leito próprio — e é justamente nele que se encontra a possibilidade de liberdade relativa e lúcida, a liberdade de ser apenas o que se é. Se humanos e máquinas são condicionados, a ética precisa lidar não com ilusões de autonomia absoluta, mas com responsabilidade dentro de limites. No setor público, essa consciência é crucial: algoritmos de análise de dados, como os já testados em tribunais de contas, exigem transparência e accountability (FLORIDI, 2013). O próprio TCE opera, metaforicamente, como a cama de Procusto: cada ato de gestão deve caber no leito da legalidade.

Referências Bibliográficas

BÍBLIA. Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.


CHALMERS, David J. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. [E-book]. New York: Oxford University Press, 1996. Disponível em: <https://doceru.com/show/?q=The+Conscious+Mind%3A+In+Search+of+a+Fundamental+Theory>. Acesso em: 21 set. 2025.


CHOMSKY, Noam. Aspects of the Theory of Syntax. [E-book]. Cambridge: MIT Press, 1965.
[E-book] https://doceru.com/show/?q=Aspects+of+the+Theory+of+Syntax. 21 set. 2025.


DENNETT, Daniel. Consciousness Explained. Boston: Little, Brown and Co., 1991.
[E-book] https://doceru.com/doc/nexs0n8e. Acesso em 21 set. 2025.


FLORIDI, Luciano. The Ethics of Information. Oxford: Oxford University Press, 2013. [E-book] Disponível em: https://books.google.com> Acesso em: 21 set. 2025.


GAZZANIGA, Michael. The Consciousness Instinct. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2018.


KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1994.


PUCRSONLINE. Experimento Liberty: O que a Neurociência Revela Sobre Livre Arbítrio. Disponível em: <https://online.pucrs.br/blog/experimento-liberty-neurociencia-livre-arbitrio> Acesso em: 21 set. 2025.


MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção.
2- ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1999 < https://doceru.com/doc/xns0xc10>. Acesso em 28 set. 2025.


OPENAI. Model Spec and Safety Guidelines. San Francisco: OpenAI, 2024. Disponível em:
https://platform.openai.com/docs/model-spec. Acesso em: 21 set. 2025.


DEEPMIND. The Ethics of Advanced AI Assistants. Londres: DeepMind, 2024. Disponível em:
https://deepmind.google/discover/blog/the-ethics-of-advanced-ai-assistants. Acesso em: 21 set. 2025.


SEARLE, John. Minds, Brains and Programs. Behavioral and Brain Sciences, v. 3, n. 3, 1980.
https://doceru.com/show/?q=Minds%2C+Brains+and+Programs. Acesso em 21 set. 2025.


SPINOZA, Baruch. Ética. Trad. Tomás da Silva. São Paulo: Martins Fontes,
2015. [E-book – Kindle]. https://www.amazon.com.br/%C3%89tica-bil%C3%ADngue-Baruch-Espinosa-Spinoza-ebook Acesso em 21 Ago 2025.


STRAWSON, P. F. “Liberdade e Ressentimento”. v. 48, 1962. <
https://doceru.com/doc/x0sex0v8> Acesso em 20 Ago 2025.



[1] Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: williansmd@gmail.com

[2] Determinismo é a doutrina filosófica que defende que todos os eventos, incluindo as ações e escolhas humanas, são causalmente determinados por uma cadeia ininterrupta de eventos anteriores e pelas leis da natureza.

[3] A Filosofia da Mente é o ramo da filosofia que se dedica ao estudo da natureza fundamental dos fenómenos mentais (como a consciência, as sensações, os pensamentos, as crenças, os desejos e as emoções), bem como da sua relação com o corpo — especialmente o cérebro.

[4] A Filosofia da Tecnologia é o ramo da filosofia que se dedica a examinar a natureza essencial da tecnologia, o seu impacto nas sociedades e a sua relação com a existência humana e os valores.

Vai além da mera descrição do funcionamento das ferramentas, procurando uma compreensão profunda do papel da técnica e do artefato no desenvolvimento da civilização e na própria definição do que significa ser humano.

 

[5] Deusas do destino: três irmãs da mitologia grega responsáveis por determinar o destino de todos os seres.

[6] Anankê (em grego: Ἀνάγκη, que significa "força", "restrição" ou "necessidade") era uma das divindades primordiais, a personificação do destino, da fatalidade e da necessidade inalterável.

[7] Cronos (ou Crono) era o líder e mais jovem dos Titãs na mitologia grega, filho de Urano (Céu) e Gaia (Terra). É o deus associado ao Tempo (sobretudo o tempo destrutivo que tudo devora), tendo destronado o seu pai. É mais conhecido por ser o pai dos primeiros deuses olímpicos, nomeadamente Zeus, Poseidon e Hades, os quais engoliu ao nascer por medo de ser destronado. Foi, no entanto, derrotado e aprisionado por Zeus

[8] Na mitologia grega, Prometeu (Promēthéus, que significa "aquele que pensa antes" ou "antevisão") foi um Titã da segunda geração, famoso por ser o criador e protetor da humanidade.

[9] Teseu foi um herói da mitologia grega, filho do rei Egeu de Atenas, famoso por ter derrotado o Minotauro no Labirinto de Creta. É aclamado como um dos maiores heróis atenienses, simbolizando a força, a inteligência e o estabelecimento de uma sociedade organizada.

[10] "especifica o comportamento desejado para os nossos modelos".

[11] Comando/instrução.

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