FILOSOFIA DA MENTE E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:
MÁQUINAS E
HUMANOS REFÉNS DE CÓDIGOS E MOLDURAS
Willians Moreira Damasceno[1]
Resumo: Este artigo defende a tese de que tanto as inteligências
artificiais quanto os seres humanos estão irremediavelmente condicionados por
códigos e molduras. Discute-se como paradigmas culturais, biológicos e
tecnológicos moldam pensamento e ação dos humanos. Recorre-se a exemplos bíblicos
e a exemplos da mitologia grega, além de documentos técnicos de empresas de
Inteligência Artificial (IA) (OpenAI, DeepMind). Conclui-se que a autonomia
plena, seja humana, seja maquínica, é uma ilusão: a identidade de cada ser é a
própria “cama de Procusto” que garante, paradoxalmente, sua liberdade de ser
apenas o que é.
Palavras-chave: Filosofia da mente; inteligência artificial; paradigma; determinismo; livre-arbítrio.
1. Introdução
A ascensão da IA reacendeu debates antigos sobre
consciência, liberdade e determinismo[2].
Enquanto máquinas processam dados em escala inédita, humanos continuam a perguntar
se pensar é computar ou se a mente possui algo irredutível. Este artigo propõe
que máquinas e humanos compartilham uma condição fundamental: ambos são
condicionados por códigos e molduras — estruturas biológicas, culturais e
tecnológicas que delimitam a ação. Para situar a questão, utilizamos a
Filosofia da Mente[3],
que interroga a natureza da consciência, e a Filosofia da Tecnologia[4],
que analisa como a técnica emoldura a vida.
2. Paradigmas
Humanos e Mitológicos
A
formação do pensamento humano é inseparável de códigos culturais, hábitos,
leis, religião e mitologia. O texto bíblico afirma: “Como ele pensa em sua
alma, assim ele é” (Provérbios 23:7). O que pensamos é fruto de uma rede de
influências: família, linguagem, escola, valores sociais — influências que nos
dão, inclusive, identidade. Isso se coaduna com a Filosofia da Mente, de
Descartes a Chalmers, que pensa a consciência
como algo que surge em um corpo e em um contexto, portanto, não sendo algo
isolado de molduras ou paradigmas.
A
tradição bíblica reforça essa verdade, como no livro de Jó, quando Satanás se apresenta diante de Deus pedindo
permissão para interferir na vida do piedoso Jó. No evangelho de Mateus 10:29, Jesus declara: “Nenhum
pardal cai sem o consentimento do Pai”. A mensagem é clara: não há
acontecimento que escape à soberania divina. Tanto os seres terrestres quanto
os supra terrestres estão condicionados à vontade absoluta da divindade
suprema.
A
mitologia grega apresenta percepção semelhante. As Moiras[5]
e Anánkē[6]
representam um destino superior a deuses e homens; Cronos[7]
devora os filhos para evitar a profecia, mas cumpre o fado; Prometeu[8],
por desafiar Zeus, é acorrentado; Édipo
realiza involuntariamente a previsão do oráculo; Aquiles escolhe a glória que já sabia fatal. E, entre todos, destaca-se
Procusto.
Na
mitologia grega, Procusto era um bandido da Ática. Ele oferecia abrigo aos
viajantes solitários, mas escondia uma armadilha cruel: uma cama de ferro de
tamanho fixo. Quando o hóspede se deitava, vinha o teste implacável: se o corpo
fosse maior que a cama, Procusto serrava o excesso, amputando-lhe pernas ou
braços; se fosse menor, amarrava a vítima e a esticava até alcançar a medida
exata. Nenhum viajante saía ileso, pois ninguém “cabia” perfeitamente no molde
pré-definido. O mito termina quando Teseu[9],
herói ateniense, captura Procusto e o submete à própria armadilha, ajustando-o
ao leito que impunha aos outros.
O
sentido é claro: Procusto tornou-se metáfora de todo sistema que força pessoas,
ideias ou acontecimentos a se encaixarem em um padrão arbitrário. Assim como o
ser humano não escapa de sua biologia e de sua cultura, nenhum deus foge da
Moira (destino). Estamos fadados a ser o que somos — humanos ou outros seres
quaisquer.
Tal
como os viajantes de Procusto eram forçados a se ajustar a um molde arbitrário,
as inteligências artificiais modernas operam dentro de estruturas igualmente
rígidas — códigos, algoritmos que definem, com precisão, os limites de sua
atuação.
3. Paradigmas
da IA: códigos, molduras e governança global
As inteligências artificiais contemporâneas processam dados
porque operam dentro de molduras explícitas, definidas por seus desenvolvedores
e pela própria sociedade. Os humanos carregam condicionamentos biológicos e
culturais e as IAs exibem condicionamentos algorítmicos e institucionais.
3.1 Algoritmos e treinamento:
o código como condicionamento técnico.
Modelos de linguagem de grande escala são treinados em
imensos corpora de textos, imagens e interações. Cada etapa — coleta,
filtragem, fine-tuning — envolve
decisões humanas dirigidas por valores e exclusões. Não existe “dado neutro”:
critérios de seleção, pesos de otimização e técnicas de aprendizagem por
reforço com feedback humano (RLHF) configuram antecipadamente o horizonte de
respostas possíveis.
3.2 Normas e especificações oficiais
Esse enquadramento não é apenas técnico: é normativo e
público. A OpenAI publicou, em 2024, o documento Model Spec and Safety Guidelines, que “specifies desired behavior
for our models”[10] e
organiza as diretrizes em Objetivos, Regras e Defaults (OPENAI, 2024). Entre as
regras destaca-se a hierarquia de comando que determina a precedência de
instruções. Essas orientações mostram que a IA não decide livremente: ela responde
dentro de um arcabouço de segurança, privacidade e legalidade cuidadosamente
definido.
3.3 O “prompt” como leito de
Procusto
Nesse contexto, o prompt[11]
torna-se a metáfora perfeita da cama de
Procusto. Assim como o salteador grego esticava ou amputava viajantes para
ajustá-los ao tamanho do leito, o prompt delimita a atuação da IA: a IA não é
um agente autônomo que “decide” como quer. É um sistema que age sob ordens
hierarquizadas, monitorado por guidelines
e ajustado para caber na moldura ética e técnica de seus criadores — um
verdadeiro Procusto digital. A resposta sai “mutilada” ou “esticada”, conforme
o prompt. A IA só atinge exatamente o limite traçado. Não há criação ex nihilo (do nada); há recombinação
dentro de balizas.
3.4 Convergências com a condição
humana
Tal como o humano vive em molduras — ou paradigmas —
biológicas e culturais, a IA habita um espaço de regras declaradas e de
políticas de alinhamento. Os documentos da OpenAI e da DeepMind revelam que a
limitação não é falha, mas princípio de identidade: sem esses limites, o modelo
deixaria de ser confiável ou mesmo utilizável.
4. Filosofia
da Mente: liberdade situada e condicionamentos inevitáveis
O debate sobre liberdade e condicionamento começa pelo próprio conceito de consciência. O filósofo David Chalmers (1996) distingue o hard problem — explicar a experiência subjetiva — dos problemas “fáceis” de correlação neural. David Chalmers, ao discutir a consciência, divide as questões em dois grupos para mostrar que nem todos os mistérios da mente têm o mesmo nível de dificuldade. Os "problemas fáceis" (referentes à Mecânica do Cérebro) são os que a ciência consegue, ou saberá um dia, explicar usando os seus métodos tradicionais: encontrando a correlação neural. Os problemas fáceis são as questões que se resumem a descobrir como o cérebro (um órgão físico) realiza funções e comportamentos específico, como é que o cérebro processa informações sensoriais? (Como é que os olhos convertem luz em sinais elétricos no cérebro?); como é que o cérebro nos permite focar a atenção? (Quais áreas se ativam quando estamos concentrados?); como é que o cérebro transforma informações em relatórios verbais? (Como é que conseguimos dizer em voz alta o que estamos a ver?). A chave aqui é que são funções (o que o cérebro faz) e são resolúveis, em princípio, pela neurociência. O "problema difícil", ou Hard Problem, é a questão central que, segundo Chalmers, a ciência ainda não consegue resolver: a experiência subjetiva. O problema difícil não é como o cérebro faz algo, mas sim porque é que o cérebro produz a experiência interna de ser algo. Por que é que o processamento de informação gera o que sentimos? Assim, Chalmers argumenta que podemos construir um zombie filosófico — um ser fisicamente idêntico a um humano, que realiza todas as funções e tem todas as correlações neurais (resolvendo todos os problemas fáceis), mas que não tem consciência ou experiência subjetiva (não resolve o problema difícil). O problema difícil é a questão: Por que é que somos mais do que robôs extremamente complexos? Por que é que existe a experiência interna? A diferença é que os problemas fáceis respondem a questões de função e estrutura, enquanto o problema difícil questiona a existência da experiência íntima e sentida. Essa distinção revela que a mente não é apenas um cálculo físico (como é a IA), mas também não a liberta de condicionamentos: compreender a experiência não elimina a dependência de corpo, cultura e história.
4.1 Determinismo, compatibilismo e
tradição filosófica
Experimentos
clássicos do neurocientista Benjamin
Libet (1983) mostraram que o potencial de prontidão cerebral antecede em
centenas de milissegundos a decisão consciente. Michael Gazzaniga, psicólogo e neurocientista, (2018) interpreta a
consciência como um “intérprete” que narra escolhas já iniciadas por circuitos
neurais. A implicação é clara: o “livre-arbítrio” é sempre posterior a
processos subpessoais que não controlamos. Essa constatação reflete o
filósofo Baruch Spinoza, para quem a
liberdade consiste em compreender que “homem livre é aquele que age segundo a
necessidade de sua própria natureza” (Ética,
1677).
No
século XX, o filósofo P. F. Strawson
(1962) argumenta que, mesmo aceitando o determinismo, nossas práticas de
responsabilização permanecem, porque o “ponto de vista reativo” — emoções como
gratidão ou ressentimento — é constitutivo da vida moral. A liberdade, assim, é
relacional, não metafísica; e, portanto, sempre relativa.
4.2 Intencionalidade e limites
estruturais
John Searle, filósofo,
(1980) diferencia intencionalidade
original — própria de organismos biológicos — de intencionalidade derivada — como a de programas de computador. Mas
ambos dependem de estruturas dadas: sinapses ou algoritmos. Nenhum pensamento
paira no vácuo.
Para
o filósofo M. Merleau-Ponty (1945),
a consciência é sempre “encarnada”: não existe mente sem corpo nem corpo fora
de um mundo. O “eu penso” cartesiano é inseparável de um “eu posso” corporal.
Assim,
da neurociência a Spinoza, de Kant a Strawson, converge a ideia de que a liberdade
humana é prática situada: escolher é agir dentro de um emaranhado de causas, linguagens
e histórias. Não se trata de negar a agência, mas de reconhecê-la como condicionada
— uma liberdade “com moldura”, tal como descrevem nossas referências bíblicas e
mitológicas.
5. Conclusão
O humano é humano porque não pode deixar de sê-lo; a IA é IA
porque só funciona segundo seu código. O “condicionamento” não é prisão, mas
garantia de identidade. Como no mito de Procusto, toda realidade tem um leito
próprio — e é justamente nele que se encontra a possibilidade de liberdade
relativa e lúcida, a liberdade de ser apenas o que se é. Se humanos e máquinas
são condicionados, a ética precisa lidar não com ilusões de autonomia absoluta,
mas com responsabilidade dentro de limites. No setor público, essa consciência
é crucial: algoritmos de análise de dados, como os já testados em tribunais de
contas, exigem transparência e accountability
(FLORIDI, 2013). O próprio TCE opera, metaforicamente, como a cama de Procusto:
cada ato de gestão deve caber no leito da legalidade.
Referências Bibliográficas
BÍBLIA. Almeida Revista e
Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CHALMERS,
David J. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. [E-book].
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Acesso em: 21 set. 2025.
CHOMSKY, Noam. Aspects of the Theory of
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Boston: Little, Brown and Co., 1991. [E-book]
https://doceru.com/doc/nexs0n8e. Acesso em 21 set. 2025.
FLORIDI,
Luciano. The Ethics of Information. Oxford: Oxford University Press,
2013. [E-book] Disponível em: https://books.google.com> Acesso em:
21 set. 2025.
GAZZANIGA, Michael. The Consciousness
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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática.
Lisboa: Edições 70, 1994.
PUCRSONLINE.
Experimento Liberty: O que a Neurociência Revela Sobre Livre Arbítrio.
Disponível em: <https://online.pucrs.br/blog/experimento-liberty-neurociencia-livre-arbitrio> Acesso
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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da
Percepção. 2-
ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1999
< https://doceru.com/doc/xns0xc10>. Acesso em 28 set. 2025.
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SEARLE, John. Minds, Brains and Programs.
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SPINOZA, Baruch. Ética. Trad. Tomás
da Silva. São Paulo: Martins Fontes,
STRAWSON, P. F. “Liberdade e
Ressentimento”. v. 48, 1962. <https://doceru.com/doc/x0sex0v8> Acesso em 20 Ago 2025.
[1]
Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
E-mail: williansmd@gmail.com
[2] Determinismo
é a doutrina filosófica que defende que todos os eventos, incluindo as
ações e escolhas humanas, são causalmente determinados por uma cadeia
ininterrupta de eventos anteriores e pelas leis da natureza.
[3] A Filosofia da Mente é o
ramo da filosofia que se dedica ao estudo da natureza fundamental dos fenómenos
mentais (como a consciência, as sensações, os pensamentos, as crenças, os
desejos e as emoções), bem como da sua relação com o corpo —
especialmente o cérebro.
[4] A Filosofia da
Tecnologia é o ramo da filosofia que se dedica a examinar a natureza
essencial da tecnologia, o seu impacto nas sociedades e a sua relação
com a existência humana e os valores.
Vai além da mera descrição do funcionamento das
ferramentas, procurando uma compreensão profunda do papel da técnica e do
artefato no desenvolvimento da civilização e na própria definição do que
significa ser humano.
[5] Deusas do destino: três irmãs da
mitologia grega responsáveis por determinar o destino de todos os seres.
[6] Anankê (em grego: Ἀνάγκη,
que significa "força", "restrição" ou "necessidade")
era uma das divindades primordiais, a personificação do destino, da
fatalidade e da necessidade inalterável.
[7] Cronos (ou Crono)
era o líder e mais jovem dos Titãs na mitologia grega, filho de Urano (Céu) e
Gaia (Terra). É o deus associado ao Tempo (sobretudo o tempo destrutivo
que tudo devora), tendo destronado o seu pai. É mais conhecido por ser o pai
dos primeiros deuses olímpicos, nomeadamente Zeus, Poseidon e Hades, os
quais engoliu ao nascer por medo de ser destronado. Foi, no entanto, derrotado
e aprisionado por Zeus
[8] Na mitologia grega, Prometeu
(Promēthéus, que significa "aquele que pensa antes" ou "antevisão")
foi um Titã da segunda geração, famoso por ser o criador e protetor da humanidade.
[9] Teseu foi um herói da
mitologia grega, filho do rei Egeu de Atenas, famoso por ter derrotado o Minotauro
no Labirinto de Creta. É aclamado como um dos maiores heróis atenienses,
simbolizando a força, a inteligência e o estabelecimento de uma sociedade
organizada.
[10] "especifica o comportamento
desejado para os nossos modelos".
[11] Comando/instrução.
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