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quinta-feira, 6 de novembro de 2008

QUAL O FUNDAMENTO DA AUTORIDADE DA BÍBLIA


Weldon E. Viertel, em seu livro “A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA”, editado em português pela JUERP, diz: “Durante a Idade Média, a Igreja Católica Romana tinha se tornado autoridade suprema em todas as questões eclesiásticas. A Bíblia oficial da Igreja Romana era a tradução feita por Jerônimo (a Vulgata) [...] A hierarquia da Igreja reivindicava autoridade para interpretar as Escrituras. E também reclamava o mesmo direito para interpretar a tradição não-escrita. O Movimento Protestante transferiu para a Bíblia, em sua forma colecionada, a infalibilidade que antes se pressupunha residir na hierarquia da Igreja. Esta decisão teve por efeito a renovação dos debates a respeito do Cânon”[1].

Viertel não diz o acima transcrito sem base em historiadores. E é este testemunho histórico que deve levar-nos a refletir sobre um aspecto muito importante da prática religiosa.

Em Concílio para ordenação pastoral, pergunta-se, não esporadicamente, em que reside a autoridade do pregador. E a resposta deve ser a doutrinária e tradicionalmente aceita: “Na Bíblia”. Claro está que esta resposta é ressonância da tese Protestante, a qual, na época da pretendida Reforma, não passava de antítese da tese católico-romana. Verdade seja dita: a tese do Movimento Protestante não surgiu da noite para o dia; não caiu da “regiões celestes”, e muito menos foi dada por um mensageiro divino. Foi fruto de um confronto constante entre pensamentos divergentes dentro da própria Igreja Católica Medieval.

Ao investigar a história da Igreja Católica desde os seus primórdios até à Reforma, percebe-se que aconteceram lutas constantes e acirradas sobre os mais variados temas doutrinários (como até hoje ainda acontece). Debatia-se sobre tudo e contra quase tudo. Um dos temas extremamente controvertidos foi a formação da própria Bíblia. É importante esclarecer este assunto, pois que uma grande maioria de cristãos idolatra “o livro”, pensando, inconscientemente, que Deus deve ter tomado uma corda e, amarrando-a na Bíblia, pendurou-a do céu e a Igreja aqui, “em baixo”, recebeu-a. Outros pensam que os homens que a escreveram, fizeram-no tão mecanicamente que quase não passou de pura “psicografia”.

Advoga bom número de estudiosos que o processo histórico de formação da Bíblia durou aproximadamente 1600 anos. Assim pode ser, a contar desde Moisés até o primeiro século da Era Cristã. Este é um fato abrangente. Sabe-se, no entanto, que a coleção de livros sagrados da igreja do primeiro século, incluía apenas os livros do Antigo Testamento; sendo inclusive aproveitados, por escritores neo-testamentários, alguns livros apócrifos do Antigo Testamento, por força do uso da tradução grega da Bíblia hebraica, chamada Septuaginta (ex.: os autores das cartas de Judas e I Pedro; sem contar os paralelos entre textos do Novo Testamento e Livros Apócrifos).

Durante todo o primeiro século (para a tradição) surgiram os livros do Novo Testamento. Apareceram em contextos específicos e previamente orientados. Não foi nada aleatório; nada inconsequente. Também não traziam sobre si a sacralidade que hoje lhes é devotada. Outras escrituras dos apóstolos circularam, as quais não chegaram às nossas mãos (ex.: carta à Igreja de Laodicéia, referida em Colossenses 4:16; duas outras cartas aos Coríntios, sugeridas pelos exegetas e outras que são suspeitadas). Escreviam aqueles homens para solucionar problemas e dificuldades das igrejas, como líderes da igreja no decorrer dos séculos e até hoje fizeram e ainda fazem.

Com a morte dos apóstolos, testemunhas oculares do acontecimento-Jesus, e em face de perseguições do Império Romano e também em face do surgimento de movimentos considerados heréticos dentro da Igreja, nutriu-se a necessidade de se fixar uma medida de aferição doutrinária, exortativa e eliminadora de tensões.

Lançou-se a Igreja, na personalidade de seus líderes, a definir quais livros deveriam ser aceitos como autoridade. Foram estabelecidos critérios pelos quais os livros seriam examinados e escolhidos. Aqui se chama a atenção do leitor para os critérios usados pelos cristãos primitivos.[2] Comungam os historiadores na apresentação de quatro critérios básicos: a) Aceitação e uso em congregações ortodoxas; b) Consistência doutrinária; c) Origem apostólica e d) Inspiração.
Levando em consideração estes critérios, a Igreja, já perto do fim do segundo século (170 a. D.), nutria como autoridades todos os livros do Novo Testamento com exceção de Hebreus, Tiago, II Pedro, II e III João, Judas e Apocalipse. Estes eram lidos universalmente embora não confirmados pela Igreja como canônicos.

Quem era a autoridade nas decisões? A Igreja ou os livros? Os livros passavam pelos critérios da Igreja, os quais atendiam a necessidades básicas, objetivas e contextualizadas.

Para o Novo Testamento chegar ao que se conhece, passaram-se ainda dois séculos. Somente em 397 a. D., no Concílio de Cartago, a Igreja, sob a influência da autoridade de Agostinho de Hipona (354 – 430 a. D.) e Jerônimo (345 – 430? a. D.), completou o Novo Testamento que está em suas mãos. Antes desta data, aconteceram outros concílios para definição do número de livros do Novo Testamento, mas sempre quedava a inconstância.

Até o primeiro século, 1.600 anos; mais 300 anos até o quarto século (ano 397), chega-se a um total de 1.900 anos. Quase dois milênios para a Bíblia ser completamente definida.
Eis o quinto século (início da Idade Média) e constata-se algo curioso: A Igreja continuou a usar livros não canônicos em suas reuniões. Usava-os para instrução. Durante os 1.000 anos da Idade Média, muita doutrina foi definida com base em livros apócrifos, chamados Deuterocanônicos no concílio de Trento.[3]

No século XVI, surgem os supostos Reformadores que, instigados por muitos motivos, atacam sua própria igreja. Aliás, ao se identificar aqueles homens como reformadores comete-se um erro. Eles não reformaram a Igreja; tentaram; mas não conseguiram e foram expulsos. Formaram, sim, suas próprias igrejas ou movimentos. Aqueles “Reformadores” tinham seus próprios conceitos alicerçados em critérios pessoais e visão contrastante com a realidade religiosa tradicional de sua época. Não há negar que eles, com a sua autoridade argumentativa, influenciaram nas mudanças. Quando eles transferiram para a Bíblia (a coleção de livros tão debatida e fixada num período de quase dois milênios) a infalibilidade que antes era reivindicada pela Igreja, abriram espaço para novas discussões sobre o número de livros bíblicos e esqueceram de que suas declarações tinham autoridade sobre muitos contemporâneos seus. Lutero concluiu que alguns livros do Novo Testamento eram superiores a outros (ex.: Ev. de João; Epístolas de Paulo e I Pedro). Declarou ainda que Tiago era de menor importância em relação aos outros livros. Questionou Hebreus, Tiago, Judas e o Apocalipse. Considerava o Apocalipse como “profecia muda”. Por sua vez, Calvino deixou de lado II e III João e o Apocalipse e aceitou Hebreus.

Percebe-se que homens sempre exerceram autoridade sobre a própria coleção de livros canônicos em face de seus conceitos e critérios para escolha.

Depois do chamado “Movimento Protestante” para cá, testemunha-se a força que as igrejas exercem para respaldarem a sua coleção de livros religiosos. Criaram até um mito chamado “BÍBLIA”. Ao se pensar neste livro, corre pelo corpo e mente um espectro de veneração inconsciente que tolhe a criatividade do próprio discípulo que diz ser habitação do Espírito Santo. Quando Este não está limitado a letra qualquer de quem quer que seja; mas usa a quem quer, como quer, aonde quer, o quanto quer, para os Seus objetivos. Essa é a doutrina pneumatológica.
Portanto, em que se baseia a autoridade da Bíblia? A autoridade da Bíblia está na relatividade de um contexto no qual os seus textos foram escritos; na relatividade de indivíduos que resolvem submeter-se aos seus princípios; e na relatividade de sua aplicação prática a uma situação objetiva. Neste contexto de compreensão, como Deus usou Nabuconozor, Assurbanipal, Ciro e outros para agirem sobre o seu povo, pode Deus usar “outras letras” para também edificar a Sua Igreja. Letras estas já existentes ou que venham a existir, que supram as necessidades do homem, sem desvirtuar o caráter básico e sustentador do corpo de Cristo no decorrer dos séculos.

[1] 2ª edição, 1979. Pág. 125.
[2] Os historiadores situam a Igreja Primitiva nos primeiros quatro séculos da Era Cristã.
[3] O Concílio de Trento foi convocado pelo Papa Paulo III, a fim de estreitar a união da Igreja e reprimir os abusos, isso em 1546, na cidade de Trento, no Tirol italiano. No Concílio tridentino os teólogos mais famosos da época elaboraram os decretos, que depois foram discutidos pelos bispos em sessões privadas. Interrompido várias vezes, o concílio durou 18 anos e seu trabalho somente terminou em 1562, quando suas decisões foram solenemente promulgadas em sessão pública.