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quinta-feira, 9 de maio de 2024

PROBLEMAS EM CONCÍLIOS PARA CANDIDATOS AO PASTORADO

 

Desde os tempos em que fui seminarista, lá pelos idos 1979 a 1983, frequentei, e ainda frequento, os eventos conciliares para ordenação de seminaristas ao pastorado. Sempre me detenho em observar os tipos de perguntas e como as mesmas eram, e são, apresentadas aos candidatos. Nesses eventos, sempre me intrigaram as perguntas retóricas, as "cascas de banana" e as perguntas para as quais as respostas fogem ao consenso doutrinário dos Batistas. Por este prisma, parece que o problema dos concílios não são os candidatos, mas os examinadores (quase escrevo: exterminadores, pois que, no mais das vezes, aniquilam um bom senso razoável).

A referência a perguntas retóricas leva em consideração o fato de que há certas questões cujas respostas são conhecidas mesmo antes de sua emissão. Perguntas como: Você pretende ter um bom relacionamento com a Ordem dos Pastores?; Se você encontrar um dinheiro, esquecido pelo tesoureiro da igreja após o culto, você entrega a quantia ao responsável ou fica com ela?; Se uma irmã da igreja insinuar-se para você, qual será sua reação? Você seguirá as decisões da assembléia administrativa de sua igreja? Para estas perguntas e outras do tipo, que resposta espera-se do candidato? Por acaso, a resposta fugirá ao esperado? No entanto, esse tipo de pergunta é apresentado ao candidato, por parte do examinador, com a maior aparência de sabedoria.

Quanto às cascas de banana, são feitas abordagens com a intenção, aparente ou não, de encurralar o candidato e vê-lo ficar nervoso ou na condição de ignorante; perguntas que não são prerrequisitos para habilitação ao pastorado, até porque ninguém é obrigado a saber de tudo, mas apenas o necessário à sua aprovação. Perguntas do tipo: qual o assunto da carta aos colossenses? Perguntas sobre calvinismo e arminianismo, como se essas posições teológicas esgotassem as possibilidades de enxergar a soteriologia e os batistas fossem unânimes sobre esse ponto. Neste particular, lembro-me da pergunta que me foi feita, no meu concílio: Qual o termo do pastor? Eu fiquei a pensar, mas não conseguia responder. Um dos presentes insurgiu-se e bravejou: "Diz a ele para ser objetivo!". Infelizmente o tal examinador não foi objetivo.

Por fim, as respostas que fogem ao consenso doutrinário dos Batistas. Nesse particular, entendam-se as questões que não encontram acordo nas respostas entre as cabeças pensantes da denominação e muito menos entre os leigos, por mais que se esmerem na busca de acordos ideológicos. Há questões que jamais serão definidas de forma a um entendimento unânime na compreensão sobre as mesmas. São aquelas perguntas sobre a posição escatológica assumida pelo candidato; perguntas sobre a posição teológica do candidato sobre o tipo de ceia correto; perguntas sobre o tempo da grande tribulação; e outras nesta esteira. São questões que não encontram unanimidade nas respostas por parte dos teólogos batistas.

Em função destes pontos apresentados, parece haver a necessidade de que os examinadores também sejam orientados sobre como serem mais objetivos e racionais em suas inquirições. Parece ser também necessário uma orientação sobre uma objetividade nas questões pertinentes. Estas questões são aquelas que não devem faltar num concílio, mas que devido à falta de preparação do examinador, são esquecidas ou mal elaboradas, muitas vezes prejudicando o examinando.

A esperança é que, quem sabe, um dia haja um melhor direcionamento nos concílios e uma satisfação mais recomendável aos futuros participantes.

Antes que eu esqueça: A resposta quanto a qual seja "o termo do pastor", acreditem, é o termo "ternura". E o texto bíblico: Salmo 23. Pasmem!

Finalizo, parabenizando aos que conseguem se safar de examinadores medíocres, os quais se portam como se fossem sumidades nos assuntos conciliares.

Willians Moreira Damasceno

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Teologia como ciência

 

De um ponto de vista prático, até que ponto é possível conceituar a Teologia como uma ciên­cia?

Se dependermos de uma verificação dos postulados teológicos em laboratórios, não é possível (este é o ponto culminante da ciência conceitualmente padronizada). No entanto, quanto aos aspectos metodológicos, estatísticos, e de sistematização, a teologia anda em paridade com a ciência, pois que procede igualmente quanto ao objeto apreendido em seu estudo. Nestes aspectos também está no mesmo diapasão da filosofia.

Quanto à questão de verifica­bilidade, concebe-se que os teólogos procedem a uma verificação dos seus postulados. Enquadra-se nesse âmbito a verificação de aplicabilidade de suas conclusões à situação humana à qual o estudo teológico é dirigido. Em teologia, como em ciência, não se permite radicalização. Se no passado foi assim, hoje não mais se permite absolutizações de conceitos que são passíveis de reexame.

Dizer que a teologia é um conhecimento infalível é desviar-se do objetivo buscado pelos próprios teólogos. Estes entendem que suas proposições podem ser revistas diariamente, em face de novos raciocínios. Isto evidencia que a ciência teológica, como qualquer ciência, é passível de erros. É precária a teologia que não aceita um reexame dos seus postulados. É inadmissível considerar indiscutíveis as supostas verdades teológicas. O próprio fato de haver várias e diversas teologias (como há várias e diversas abordagens científicas de um mesmo fenômeno) implica na discutibilidade da ciência teológica.

Quanto à exatidão, só é possível ratificar a teologia quanto ao aspecto da razão e/ou da lógica (a verificabilidade dos postulados teológicos não é possível em termos de ciência tecnológica). Isto significa que toda e qualquer conclusão teológica dependerá sempre e puramente dos ditames do raciocínio.

Assim, tanto características científicas quanto filosóficas são aplicáveis à Teologia; nunca esquecendo que a teologia possui car­acterísticas que só a ela são peculiares: quanto ao aspecto valorativo (proposições a respeito do sagrado) e ao aspecto supostamente inspiracional (lidar com a revelação sobrenatural).

Como diz David Clark, “Ciência não é apenas uma coleção de fatos, mas a desco­berta e a afirmação das leis que a regem” (CLARK, 1988, pág. ___)¹. Sendo assim, a Teologia, como ciência, junta e dispõe os supostos fatos teológicos, indicando a relação que há entre eles.

Por um prisma teológico, a teologia estuda o que se pode conhecer do ser divino e tudo aquilo que se relaciona ao mesmo. A teologia está, via de regra, relacionada à religião. No dizer de Langston, “a teologia esta relacionada com a religião, assim como a botânica com a vida das plantas” (Langston, 1991)². Assim pensa Langston, pois crê que a religião é algo natural e instintivo ao homem. Para Langston seria impossível haver teologia sem religião. Esta asseveração parece um tanto presunçosa. Isto não seria o mesmo que dizer que a existência das drogas requer, necessariamente, o viciado ou que o cientista precisa ser necessariamente um toxicômano? Esta maneira de pensar parece refletir a crença de que é impossível ser teólogo sem ter fé. O que é completamente questionável. Que a botânica depende das plantas, não se discute. Um fato é o fenômeno; outro fato é o estudo do mesmo. Aquele é necessário; este é contingente. A teologia pode estar relacionada com a religião, mas a sua dependência está em relação apenas ao metafísico, ao fenômeno estudado, no caso, uma divindade e suas supostas manifestações. A existência de uma divindade não requer necessariamente um venerador seu, nem um estudo a seu respeito. Quem estuda o fenômeno divino pode até ser seu venerador, mas não necessariamente. E, como se prescreve em ciência, um estudo devido de um fenômeno requer o máximo de afastamento subjetivo do objeto estudado. Se não se consegue afastamento absoluto, pelo menos o máximo possível.

 

Toda teologia é antropológica

 Como extensão desta abordagem, pode-se dizer ainda que não há teologia que, em sua natureza, não seja puramente antropológica. Dizer “teologia teológica” é o cúmulo do absurdo. Quem faz teologia não é a divindade. Assim como quem faz a botânica não são as plantas. O religioso, via de regra, não questiona os dogmas de sua fé. O teólogo faz isto constantemente. Um problema no qual muitos incorrem é o de não transporem a linha entre religião e teologia. E isto compromete irracionalmente o labor teológico.

 

O Laboratório da teologia 

Entendendo-se a teologia como ciência, onde estaria o seu “laboratório”? Ora, as ciências fatuais têm os seus laboratórios para praticarem a investigação científica. A investigação teológica tem o seu “laboratório” na bibliografia, nos congressos teológicos e na relação interdisciplinar com outras ciências humanas. Nesta empreitada, o teólogo é tão cientista quanto qualquer outro pesquisador. A elaboração de documento acadêmico é imprescindível. A discussão com objetivo de intercâmbio das idéias deve ter obrigatoriedade. O encontro com o diverso requer-se improrrogável. Nesta atmosfera, até que ponto seria viável esperar que o teólogo labore a sua tarefa ao mesmo tempo em que ora (se for religioso)? Não seria o mesmo que exigir que o farmacêutico seja também um toxicômano, embora, em certa dose, o estudo possa admitir certo uso de droga em si mesmo, com consciência dos perigos envolvidos na experiência. Até que ponto o teologar religiosamente não comprometeria as conclusões teológicas? Não seria o mesmo que abraçar o assassino do próprio filho. A teologia, como qualquer ciência, exige o máximo de desprendimento emocional. É evidente que ao homem é impossível o isolar-se cabalmente do objeto estudado. Mas a exigência do distanciamento não deve ser relaxada. Se o teólogo não consegue ser filosófico em relação ao seu objeto de estudo, o comprometimento com a unilateralidade estará patente. Eis um dos problemas de alguns teólogos: religiogizar a teologia. É o caso de Libanio e Murad, quando dizem que “teologia é diálogo entre o homem e Deus na comunidade eclesial” (Libanio & Murad, 1996, pág. 71)³. O diálogo com a comunidade é imprescindível, mas se não “sair” da comunidade, tenderá a dizer somente o que ela quer ouvir.

            Portanto, como ciência, a Teologia é uma disciplina antropológica que estuda a divindade e o sagrado, supostamente revelados, na busca de direções para a existência humana, verificando e reconhecendo suas limitações de raciocínio quanto ao alcance do possível conhecimento exato sobre o sobrenatural ou metafísico.

Willians Moreira

 

Referência Bibliográfica

1. CLARK, David S. Compêndio de teologia sistemática. 2ª ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1988.

2. LANGSTON, A. B. Esboço de Teologia Sistemática. 10ª ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1991.

3. LIBANIO, J. B. & MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

 

 

http://teo-filo-lit-wm.blogspot.com/2009/05/teologia-como-ciencia-de-um-ponto-de.html#links

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

TEMPO E ETERNIDADE

Que é o tempo?

Como explicar a natureza do tempo?

Tempo absoluto e/ou tempo relativo?

Quais as implicações do pensamento sobre a natureza do tempo?

Como se sabe que o tempo passa?

Que é eternidade?

Qual a diferença entre tempo e eternidade? Existe uma diferença?

 

A noção comum que se tem de tempo, mesmo que seja complicado explicar a sua natureza, parte de como o mesmo é medido ou contado. Para medir o tempo o homem criou o calendário, o relógio, e tantos outros apetrechos que para isso lhe servissem. Estes dispositivos estão vinculados basicamente à mudança dos astros, sol e lua, na sua trajetória pelo firmamento. Os dias passam porque o sol nasce e se põe, num período de 24 horas, de um nascer do sol a outro. A cada 24 horas, portanto, convencionou-se que se passa um dia. A passagem dos dias gera a passagem dos meses e assim sucessivamente. Portanto, é a partir do movimento do sol que se concebe, basicamente, a passagem do tempo. Numa perspectiva popular, isso significa que o tempo está vinculado à percepção do movimento dos astros. É este movimento que imprime nos homens a sensação da passagem do que se chama tempo. Não é à toa que o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, no seu primeiro capítulo, vincula o tempo aos astros celestes. O tempo, portanto, pode ser dito como sendo a presença de movimento de referenciais que aponta para uma transformação na aparência das coisas observáveis. Coisas observáveis podem ser entendidas como coisas objetivas; objetivas enquanto concretas, como o sol, a lua, um carro, um corpo, uma árvore, etc.

Diz-se que o tempo passou quando um homem de 49 anos se vê no espelho e percebe a mudança em sua aparência porque se lembra de quando tinha 14 anos de idade ao ver uma foto daquela época. Em face de uma dieta que mude a aparência do corpo humano, pensa-se no antes, no agora e no depois de tal dieta. Com esta visão diz-se que o tempo passou. Por quê? Porque o "antes" refere-se ao dia no qual foi iniciada tal dieta; o "agora" pode estar duas semanas após o início da dieta e o "depois" está no projeto de como se pretende parecer após o término da dieta.

O que é, pois, o tempo?

De uma perspectiva subjetivista, O tempo é também o transcurso entre a memória do "antes", a sensação do "agora" e a esperança do "depois". Tempo é nada mais, nada menos que a sensação de movimento acontecido no reino do observável.

            Nesta compreensão de tempo envolve-se a subjetividade quanto à memória do passado e a esperança ou projeto de resultados, como também a sensação do presente que envolve tanto a subjetividade quanto a objetividade de quem observa o movimento dos acontecimentos.

Pode-se então conjecturar sobre a eternidade como a ausência de movimento. Assim sendo se a eternidade for entendida como dimensão fora do tempo.

Se a eternidade existe, como conceber nela objetos observáveis, referenciais que, a depender do observador, apontariam para o fato do movimento, desde que se pense no movimento como vinculado ao tempo, porque dependente de referenciais?

E, como se não bastasse, se existe um ser na eternidade, não estaria sujeito a movimento ou a qualquer sombra de variação. Seria um ser estático, cuja natureza seria inconcebível por seres que estão no reino do movimento.

Decorre deste raciocínio a impossibilidade de seres temporais ou do reino do movimento viverem de per si na eternidade, se esta for concebida como realidade à parte do tempo. A menos que estes seres entrem no estado de estaticidade, portanto de nenhum movimento. Assim, se há algum tipo de vida na eternidade, não seria de forma alguma parecida com esta do reino do movimento. A menos que se pense a eternidade como tempo sem fim e não como dimensão paralela ao reino do movimento, o que implicaria num tempo absoluto, sem necessidade de referenciais, contendo o próprio tempo que depende de referenciais percebidos pelos seres humanos.

Outra forma de pensar o tempo é entendê-lo como vinculado ao movimento do pensamento, afinal o movimento implica num "antes" pensado e num "agora" também pensado. O que parece ser difícil é pensar situado num "depois", pois que o pensar estar sempre num presente. É possível a memória de se haver pensado ontem. Porém, um pensar amanhã é apenas um projeto não realizado, portanto, não existente como pensamento e sem garantia de que acontecerá. Assim sendo, o tempo, pela perspectiva do movimento do pensamento, só acontece, só é real (se assim pode ser dito) no presente. Dessa forma, duas dimensões, passado e futuro, são eliminadas; na verdade, ambas, de fato, não existem, pois que uma é só memória e a outra é só projeto.

Partindo-se do pressuposto de que o tempo está na dimensão do movimento e se eternidade é o seu contrário, ou seja, é realidade estática, ou seja, nela não há movimento, até que ponto é possível conceber um ser eterno, ao mesmo tempo em relação com seres vinculados à dimensão do tempo, entendendo-se que toda relação entre seres interagentes implica movimento? Como entender que um ser alheio ao movimento, à mudança, não limitado por uma percepção vinculada a referenciais, pode, ao mesmo tempo, ser referencial para outros seres? Haveria possibilidade de existir um referencial que não tivesse referenciais? Ser referencial parece implicar em se vincular ao tempo. O que, por sua vez, é estar vinculado ao movimento e, portanto, à perecibilidade. Isto parece não se vincular a um ser eterno, desde que se pense a eternidade como realidade diversa do tempo. E se assim não o for? A menos que eternidade seja apenas um sinônimo de tempo absoluto, o qual conteria o tempo relativo. Neste caso, o que teria dado início a este movimento? Questionando-se desta forma, chega-se à pergunta pela possibilidade de um ser que extrapole o tempo e a eternidade. Assim, em que dimensão se enquadraria esta entidade? Parece que neste ponto a linguagem torna-se precária para apresentar termos que nomeiem tal ser. Admitir por outro lado que a eternidade é a dimensão da entidade criadora do tempo relativo é admitir que há algo não criado paralelo àquela entidade, o que vem a ser a própria eternidade ou tempo absoluto.

Se o tempo for pensado pela perspectiva da Teoria da Relatividade de Einstein, parece ratificar-se mais ainda o fato de que o tempo é puro movimento sujeito à relatividade da velocidade de um objeto em movimento. A sua passagem ou o seu movimento não terá a mesma percepção, dependendo do observador e de como se processa a velocidade do movimento. Ora, se quanto mais velocidade houver, mais lentamente o tempo passará, que velocidade poderia haver na eternidade que levaria o tempo a praticamente parar? Mas como pensar num tempo estático, absoluto, se é dependente do movimento? Seria possível pensar em eternidade vinculada à velocidade, se isto vincularia aquela ao movimento? E uma vez havendo movimento na eternidade, existiria nela também perecibilidade necessariamente? A menos que, repita-se, eternidade seja tempo sem fim. E se assim o for, até que ponto o próprio ser eterno não perderia seu caráter de eternidade? O que se torna um paradoxo, para não dizer uma contradição. Parece que a questão mais fundamental passa a ser a natureza do ser vinculado ao tempo absoluto e dos seres vinculados ao tempo relativo e a possibilidade de estes participarem daquele.

Questione-se!!!!!

Willians Moreira Damasceno

domingo, 17 de março de 2013

HOMOFÓBICO OU MISÓHOMO?

HOMOFÓBICO OU MISÓHOMO?

Saltou ao meu juízo o questionamento sobre o porquê de se identificar como homofóbico alguém que tem aversão a homossexual. Fiquei a considerar a etimologia da palavra. Logo surgiu a pergunta: O que é fobia? Em grego[1], o vocábulo é phobos. Sua semântica original aponta para temor, terror ou espanto (susto). Outro vocábulo é déos, com o sentido de medo, respeito, reverência, temor respeitoso. E mais outro, deima, também com o sentido de temor, espanto (susto)[2]. O sentido que a palavra fobia adquiriu na língua portuguesa não tem, necessariamente vínculo semântico com o phobos em seu sentido etimológico. Na verdade, em português, phobos adquiriu um sentido técnico-científico, relacionado à psicologia e à psiquiatria. Nestas ciências, phobos identifica enfermidade. Se alguém tem fobia precisa de tratamento. Que o digam os profissionais das áreas referidas.

O neologismo homofobia foi cunhado pelo psicoterapeuta norte-americano George Weinberg[3], desde a década de 60, século XX,  apresentado no ano de 1972, com o livro “Society and the Healthy Homosexual”[4], [5]. Naquele momento, o senhor Weinberg usou o termo homofobia para se referir a um estado irracional de mente, literalmente: “suffering from a psychological malady”[6], que seria manifestado por alguém que tem aversão a homossexual. Há muito tempo, esse termo assumiu um significado que vai muito além daquele que o psicoterapeuta norte-americano intencionou. Hoje o termo refere-se a atos de discriminação contra homossexual. Significa dizer que uma conceituação de homofobia ao pé da letra não faz jus ao seu significado popular. Um conceito ao pé da letra também não faz jus ao sentido que o psicoterapeuta deu, quando cunhou a palavra. Percebe-se, pois, que o uso corrente encarregou-se de somar mais e mais sentidos ao termo, como é comum no fenômeno linguístico.

O dicionário de psicologia, a partir do Blog PSICOLOGIA ACADÊMICA, conceitua fobia como termo que vem

(do gr. Fóbos, meter medo, espantar). Medo irracional e obsessivo de certos objectos, seres vivos ou situações, segundo a -> psicanálise, é um sintoma de ---> neurose ou de ---> angustia que tem origem num ---> conflito ---@ inconsciente. S. ---> Freud designou-se por histeria da angústia[7].

As palavras irracional, obsessivo e neurose apontam para uma condição de enfermidade.

O glossário de psiquiatria, contido no blog: Psiquiatria Geral[8], apresenta fobia como

Medo irracional e persistente de um objeto, atividade ou situação específicos (o estímulo fóbico), ocasionando um intenso desejo de evitá-los. Isto frequentemente leva o indivíduo a se esquivar do estímulo fóbico ou a enfrentá-lo com temor. A Fobia é um medo específico intenso o qual, na maioria das vezes, é projetado para o exterior através de manifestações próprias do organismo. Essas manifestações normalmente tocam ao sistema neurovegetativo, tais como: vertigens, pânico, palpitações, distúrbios gastrintestinais, sudorese e perda da consciência por lipotimia. As manifestações autossômicas externadas pela fobia têm lugar sempre que o paciente se depara com o objeto (ou situação) fóbico.

Portanto, este conceito também aponta para uma situação enfermiça. Fica mais patente que o indivíduo fóbico precisa de tratamento especializado.

Os humanos sofrem de muitas fobias. Algumas podem ser citadas: Acrofobia (medo de altura), agorafobia (medo de multidão), aracnofobia (medo de aranha), hidrofobia (medo de água, e no caso, águas profundas), hematofobia, claustrofobia, antrofobia, androfobia e outras tantas.

Neste passo, merece atenção um texto encontrado no site da ONU:

Em última análise, a homofobia e a transfobia não são diferentes do sexismo, da misoginia, do racismo ou da xenofobia. Mas enquanto essas últimas formas de preconceito são universalmente condenadas pelos governos, a homofobia e a transfobia são muitas vezes negligenciadas[9].

Nesta citação, a palavra fobia está associada a outros termos para nivelá-los no sentido de serem reações problemáticas que precisam de reação dos governos. O meu questionamento é: Como os governos tratarão os fóbicos, citados no texto da ONU? Ou seja, desde que fobia é enfermidade, como será tratado o transfóbico (discriminação contra transexuais e transgêneros), o homofóbico e o xenófobo (do grego, medo de estrangeiro, mas o sentido técnico usado é o de aversão a estrangeiro). Prendê-los-á, como pode ser o caso de procedimento contra ativistas racistas, sexista, e outros? Não seria melhor colocá-los num hospital psiquiátrico? Afinal eles estão enfermos. Eles contraíram uma fobia. Alguém dirá que o autor deste texto está errado, pois o sentido de fobia quando aplicado ao sentimento de ódio a homossexual é outro. Como já foi visto, é verdade. Mas o argumento em princípio é o de que o termo, no varejo, está mal empregado. Desde que o seu criador era um psicoterapeuta, certamente o sentido do termo era atinente à saúde mental. Porque se aquele psicoterapeuta houvesse dado ao termo em questão o sentido que hoje campeia, teria sido muito infeliz na criação do neologismo. Observem-se as outras palavras identificadoras de problemas a serem tratados pelos governos: sexismo, misoginia, racismo e xenofobia. Parece que os termos associados a fobia foram “inventados”, a partir do grego, por alguém que não pensou melhor sobre o sentido dos mesmos; ou não atentou para a existência de termos mais adequados ao que eles queriam expressar. Ou, quem sabe, o uso social vai modelando os sentidos destes termos com o passar do tempo, ocasionando um sentido bem diverso do que idealmente deveria ter ocorrido.

O que é sexismo, por exemplo? Quando se diz que alguém é sexista, geralmente quer se dizer que o tal é machista. E, neste caso, até mulher pode ser sexista. Neste sentido há um sentimento de menosprezo ao sexo feminino. Em sentido restrito e devido, sexismo implica em procedimentos, concretos e teóricos, que beneficiam a um determinado gênero ou orientação sexual.

O que é misoginia? Este termo foi elaborado a partir das palavras gregas, mísos (ódio) e gynê (mulher), implicando no sentido de ódio, desprezo à mulher. Um misógino é alguém que não gosta de mulher. E, neste caso, a misoginia pode ser sentimento tanto de homem, como de mulher. o sociólogo Allan G. Johnson disse: "a misoginia é uma atitude cultural de ódio às mulheres porque elas são femininas"[10]. Pode acontecer o fato de alguém que é misógino tornar-se sexista, com possibilidade também do contrário acontecer.

Agora, o que é racismo? Trata-se de ideologia que preconiza a existência de raças humanas e da superioridade de uma sobre outra ou outras. Essa ideologia pode envolver um pensamento mais ou menos elaborado, partindo preconceituosamente de teorias biológicas. Racismo envolve um sentimento de aversão a outros povos, etnias, etc. Estas três manifestações humanas são evidentemente problemáticas e passíveis de reação política governamental.

Ora, diante destas conceituações, pode-se depreender que os termos não são escolhidos com o devido esmero linguístico. Escolhe-se tal palavra grega, sabe-se lá como, e todo mundo passa a utilizá-la sem uma análise crítica da mesma.

Qual é o problema a enfrentar? Ora, se alguém padece dos sintomas seguintes, como transpiração excessiva, taquicardia, náusea, vertigem, calafrios, dor no peito, sensação de falta de ar e formigamento (sintomas de fobia) quando se aproxima de uma pessoa homossexual, então é passível de ser tratado por um profissional da saúde. Mas se o indivíduo apenas não gosta ou tem aversão a homossexual, então podem entrar em campo os emissários do governo, como propõe o texto da ONU. Qual é o mal do racista, por exemplo? É ter aversão a alguém que não tem as suas mesmas características raciais[11]. Mas se o cidadão não tem aversão nenhuma, nem sofre dos sintomas citados, apenas não concorda com a prática homossexual, que outro nome pode ser dado ao tal? Da mesma forma que alguém não concorda com outras práticas consideradas por ele como imorais e faz resistência às mesmas, pode também considerar a prática homossexual como imoral e, por conta disso, ser contrário à mesma. Não devendo, evidentemente, usar de termos agressivos contra os praticantes daquela suposta prática sexual. Assim, já não se trataria de aversão qualquer ou enfermidade, mas de uma questão de princípios pessoais adotados por tal pessoa. Consequentemente não cabe à mesma o termo homofóbico.

Daí então a pergunta: Diante do conceito técnico-científico dado à fobia, qual seria o melhor termo grego para expressar a aversão que alguém sente pela homossexualidade, chegando mesmo a usar de agressividade?[12] Existe termo grego adequado ao caso. É o que se verá a seguir.

Siga-se o raciocínio seguinte: A palavra homossexual foi forjada a partir do grego, homós [13] (igual) e do latim, sexus (sexo). Resultado: homossexual. Ou Seja, sexo igual, mais propriamente a ideia é: ter atração sexual por alguém do mesmo sexo. Para se identificar a reação contrária a este interesse sexual, pensou-se na palavra grega phobia, unindo-a a palavra homós, surgindo assim, homofobia. Por que o criador de tal proeza linguística não atentou bem para o sentido de phobos, pelo fato de que seu significado é apenas medo? Será que o seu criador queria mesmo dizer que se alguém é homofóbico está mesmo enfermo? Ou será que ele não gostou da palavra mísos?

Como foi visto, do grego, mísos (ódio, aversão) e gynê (mulher). Partindo-se do pressuposto de como a palavra homofobia foi forjada, pode-se fazer uma mudança, colocando-se a palavra “mísos” no lugar de fobia. A palavra proposta apareceria assim: homómiso ou “misóhomo”; literalmente: Ódio ao igual, aversão ao semelhante, ou, como aconteceu com homofóbico, aversão a quem gosta de sexo com pessoa do mesmo sexo. Acredito que, desta forma, melhor estaria identificado o indivíduo que tem aversão ao homossexual. Esse sim, estaria no mesmo pé de igualdade com o racista, com o misógino, com o misantropo, com o xenófobo (e por que não misóxeno?). E assim os governos poderiam agir devidamente em suas políticas antiperversidade.

Agora não sendo mudada a palavra que identifica os que têm aversão ao homossexual, há de se enfrentar a consideração de enfermidade atribuída aos chamados homofóbicos por conta do peso técnico-científico de quem é identificado como fóbico. É aí que mora outra problemática: os identificados como homofóbicos pelos homossexuais poderão recorrer também à justiça para denunciar o fato de que estão sendo discriminados como enfermos, quando, na realidade, não o são. E se o são, por que não são tratados como tais? Poderiam requerer laudo médico diante do juiz, por parte de quem os discrimina. Resolva-se o caso! Ora! O problema se agrava, de vez que os homossexuais estão a rejeitar o termo homossexualismo como referência à pratica homossexual, alegando que o tal termo refere-se a enfermidade, como é o caso de botulismo, raquitismo, etc. E homossexual não se considera enfermo. Por que o indivíduo que tem aversão a homossexual aceitaria ser colocado entre os fóbicos? Pior ainda, os cidadãos que não tem aversão a homossexual, mais apenas rejeitam a prática como obscena, poderiam também recorrer aos tribunais, pois que também não estão enfermos.

En passant, alerto aos amigos homossexuais, que precisam entender que a sociedade sempre faz resistência ao que é “novo” para ela. Uma resistência semelhante aconteceu em relação a outras aproximações de mudanças. O desquite e o divórcio receberam resistências semelhantes. É sabido como os divorciados são vistos ainda em alguns setores da sociedade; a segregação que sofrem e os vitupérios que são forçados a ouvir, por conta de serem considerados adúlteros se contraem novas núpcias, por exemplo, por muitos religiosos. Portanto, caros amigos homossexuais, tenham paciência. Paulatinamente, a sua hora chegará. Lutem, mas não agridam! Se assim o fazem, igualam-se aos seus aversivos. E se não seriam considerados fóbicos, sê-lo-iam, no mínimo, mísos, pois estariam também expressando uma aversão aos seus contrários.

Vale aqui o estribilho da Canção dos Tamoios, de Gonçalves Dias:

A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

Willians Moreira Damasceno


[1] Por conta de muitos internautas não possuírem a fonte de letra grega que poderia ser usada pelo autor, as palavras gregas serão transliteradas.
[2] A língua grega ainda possui outras palavras que são associadas ao medo, como panikós, tromára, phríkê, phikaleótêta.
[3] Se interessar a leitura de uma entrevista com o psicoterapeuta: http://www.pflagdetroit.org/george_weinberg.htm
[4] http://en.wikipedia.org/wiki/George_Weinberg_(psychologist) – site visitado em 17 de março, às 05:40 h.
[5] Comments on the psychological factors underlying hostile public attitudes toward homosexuals and offers counseling to help individuals accept their homosexuality”. http://us.macmillan.com/societyandthehealthyhomosexual/GeorgeWeinberg.
[6] Idem – em 17 de março, às 05:40 h.
[8] http://www.psiquiatriageral.com.br/glossario/f.htm. Consultado em 14/03/2013, às 09:21 h.
[11] O conceito de raça perdura apenas no âmbito social e político, embora cientificamente não seja mais adequado esse conceito.
[12] O questionamento é pertinente, pois que os homossexuais, já instruídos, preferem a palavra homossexualidade à palavra homossexualismo, pois que ismo, neste caso, refere-se a doença. E homossexual não se como alguém portador de enfermidade por conta de sua sexualidade.
[13] Esta palavra grega possui um sinal sobre a sua primeira letra (omicrón), chamado aspiração áspera (um apóstrofo ao contrário – ‘ ) que tem o som do hagá inglês (house). A nossa palavra hora também vem do grego e tem o mesmo sinalzinho. Por isso que se coloca um hagá antes de hora, homossexual, hospital, e outras palavras. Mas a nossa palavra “rodovia”, que vem também do grego, hodós (pronúncia: rodós - caminho, estrada), é pronunciada levando-se em consideração o som do hagá inglês, que resultou em som de erre. De sorte que, em grego, a pronúncia de hora é rôra; a de homós, é romós.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O PERFIL PSICOLÓGICO DO PROFETA JEREMIAS

A PARTIR DE SUAS CONFISSÕES
1ª CONFISSÃO

Jeremias e seu desejo de vingança
 

As confissões do profeta Jeremias são encontradas nos capítulos 11: 18-23; 12: 1-6; 15: 10-21; 17: 12-18; 18: 18-23; e 20: 7-18. Nestes textos há expressão considerável da subjetividade de Jeremias, transmissora de um perfil psicológico capaz de desmontar um esteriótipo do profeta, articulado por conta de uma tradição doutrinária, caracterizadamente emocional e destituída de certo senso crítico. O esteriótipo aqui referido reporta-se à imagem de um profeta modelo a ser seguido por qualquer um que queira ser servo de Deus. No entanto, os textos bíblicos enfocados neste artigo são atestados de uma imagem de Jeremias em muito destituída de atributos recomendáveis a quem deseja uma existência psicologicamente equilibrada.
Por outro prisma, as confissões de Jeremias apresentam um conteúdo teológico, ou seja, uma palavra que se pode interpretar como divina. E neste ponto a tese é a de que Deus, independentemente das mazelas existenciais do ser humano, pode usar a quem lhe interessar, para a missão que bem lhe aprouver. Assim aconteceu a Jeremias, a despeito de sua subjetividade marcada por muitas amarguras.
A atuação do Profeta Jeremias deu-se por um período de 50 anos (627 a. C. a, provavelmente, 580 a. C). Este período abrangeu os governos de Josias (629 – 609 a. C), Joaquim (609 – 598 a. C), Sedecias (597 – 586 a. C.) e Godolias / ida de uma parte do povo para o exílio (586 – 580 a . C). Portanto, quatro períodos.
Neste texto, estará em foco a existencialidade do profeta. A revelação mediada pelo texto pode até ser comentada, mas será enfocada prioritariamente a situação da subjetividade de Jeremias.
            O objetivo é mostrar que homens, mesmo aqueles considerados como de Deus, às vezes, enfrentam desequilíbrio psicológico e, por conta disso, quedam-se a precisar de ajuda de um profissional da saúde mental. Não se nega que muitos resistem à busca dessa ajuda, mas esta necessidade, vez ou outra, bate-lhes à porta. Vale lembrar aqui um pároco que, depois de passar por experiências que lhe revelaram suas marcas emocionais a si mesmo desfavoráveis, disse: “Parece que eu tenho o dedo podre”. Referia-se ao fato de que seus relacionamentos, se o entendi bem, sempre entravam em colapso. O cúmulo da situação, após vários episódios de desenlaces de relacionamentos, inclusive de entrave com a própria liderança de sua denominação, foi querer abandonar a batina, com certa expressão de revolta. Como, pois, negar que as relações sociais interferem nas relações profissionais e no cumprimento da suposta missão dada por Deus? Esta é tese caduca, mas parece que poucos estão atentos para isto.
Como aquele que intentou desertar de sua missão, o profeta Jeremias expressou o mesmo desejo de desertar do seu compromisso com Iavéh, mas não conseguiu realizar tal feito. O registro desse momento está em seu livro no capítulo 20: 9, nas palavras: “Então, disse eu: Não me lembrarei dele (Iavéh) e não falarei mais no seu nome; mais isso foi no meu coração como fogo ardente, encerrado nos meus ossos; e estou fatigado de sofrer e não posso”. [1] Percebe-se aqui a incapacidade de Jeremias de se afastar de sua missão.[2]
            Acrescente-se ainda que a análise de cada confissão usará estratégia simples: Depois de breve verificação dos aspectos culturais, Abordar-se-á o ponto principal aqui proposto: a subjetividade de Jeremias. E ao final de cada análise, apresentar-se-á a mensagem teológica veiculada pelo texto.
            O pressuposto de que todo texto está circunstanciado por uma cultura é substrato na análise do texto; circunstanciado em termos linguístico-gramaticais, em termos sociais, em termos históricos, e em tantos outros aspectos mais que apresentem imagem cultural no texto.
            De início, será abordada a primeira confissão, encontrada no capítulo 11: 18-23. Uma divisão deste texto é possível: a) Versos 18 – 19: Jeremias jurado de morte; b) 20 – 21: Desespero e desejo de vingança; e, c) 22 – 23: Iavéh anuncia desastre sobre os anatotitas.
Qualquer análise superficial desta primeira confissão percebe a imagem de um tribunal, no qual há juiz, réu e promotores. Num tribunal apresentam-se esses constituintes, sem olvidar um júri e advogados. Neste texto, no entanto, não há alguém que se identifique com advogado, nem há um júri. Neste texto há juiz, promotores e réu. O réu tenta ser seu próprio advogado. Jeremias diz: “A ti expus a minha causa”. O texto hebraico traz:
וַיהוָה צְבָאוֹת שֹׁפֵט צֶדֶק בֹּחֵן כְּלָיוֹת וָלֵב אֶרְאֶה נִקְמָתְךָ מֵהֶם כִּי אֵלֶיךָ גִּלִּיתִי אֶת-רִיבִי: ס” (Jer. 11: 20).[3]
A palavra hebraica aponta para o sentido de uma apresentação de requerimento (ybi(yrI), ou um recurso apresentado na corte, face a acusação contra o réu, Jeremias. Os promotores não estão presentes. Mas são lembradas as suas palavras e ações.
            O texto hebraico da primeira confissão inicia (Jer. 11: 18), dizendo:
וַיהוָה הוֹדִיעַנִי וָאֵדָעָה אָז הִרְאִיתַנִי מַעַלְלֵיה”.
Para a tradução, considere-se: 1) o verbo Yada’, conhecer, saber, no hiphil perfeito, 3ª pessoa do singular, com sufixo da 1ª pessoa comum singular (הוֹדִיעַנִי – hôdi‘ani). Gramaticamente, entende-se que o hiphil tem o sentido de voz ativa causativa. Ou seja, o sujeito causa algo. No caso do verso 18 do cap. 11, a ação de conhecer ou saber é causada. Tendo-se aqui o sufixo pronominal da 1ª pessoa, singular, referindo-se a Jeremias, Iavéh fez Jeremias tomar conhecimento de algo. Em seguida, tem-se וָאֵדָעָה) (Va’êda‘ah): Tem-se a conjunção (w) “vav”[5] mais o verbo no QAL imperfeito, 1ª pessoa comum, singular, e no final tem-se um (h) Hê coortativo[6]. Neste caso, Jeremias não meramente soube, mas quis mesmo saber o que Iavéh lhe deu a conhecer. Portanto, nesta primeira instância, pode-se traduzir: “E Iavéh me fez saber, e eu o quis saber...” (11: 18). O verso completo: “E Iavéh me fez saber, e eu o quis saber. Então tu me fizeste perceber as suas ações”. Parafraseando: “Iavéh me fez tomar conhecimento das ações dos meus parentes contra mim, e eu quis mesmo ficar a par de tudo”.
Um primeiro ponto a enfocar questiona sobre o como do conhecimento das ações dos seus parentes chegarem ao profeta. Essa questão instaura curiosidade: Jeremias ouviu uma voz externa (supostamente de Iavéh) que lhe revelou o que ele soube ou ele ouviu uma “voz” interna? Ou seja, Iavéh o fez saber de forma objetiva ou a subjetividade do profeta entrou em cena para intuir o tal conhecimento? Pode-se ainda pensar se a comunicação foi através da consciência do profeta. No caso de uma “voz interna” pode ser pensada uma intuição. Quem sabe um processo psicológico em que um “insight” aflora do subconsciente para o consciente. Ou quem sabe um processo de raciocínio mesmo, pelo qual seria também natural chegar ao conhecimento que chegou. Há de se levar em consideração que os processos mentais pelos quais percebemos uma suposta realidade não são nem de longe devidamente conhecidos pelos humanos. Portanto, daqui a garantir qual destas possibilidades ou outra qualquer foi a acontecida, leva-se tempo incomensurável; o que impossibilita o alcance desta informação de forma absoluta. Em outras palavras, qualquer apologia não passa de mera especulação. Pode-se pensar, por outro lado, que Deus deu conhecimento ao profeta através de alguém que o abordou contando-lhe a trama dos seus inimigos. Isso é comum acontecer com muitos, quando algo de que se necessita saber; e a surpresa é tão grande quando se toma ciência que se exclama: “Deus me fez saber”. No entanto, sabe-se que os meios foram naturais: Alguém nos disse; ou ouvimos por algum meio de comunicação; ou ouvimos uma conversa que não se dirigia a nós diretamente, ou raciocinamos e concluímos algo, etc., e dizemos que o Senhor nos fez saber. O problema de se esperar que a vontade de Deus (na Bíblia) se manifeste sobrenaturalmente é tão grande que o homem se esquece de que Deus pode manifestar-se por meios naturais.
            O fato é que o profeta teve conhecimento de um complô armado contra ele.
            Em face de não ter tido antes conhecimento do que Iavéh deu-lhe a conhecer, o profeta se sente como um animal indefeso, sem saber para onde estava sendo conduzido; ou sem saber que estava a ser dirigido para a morte. A sensação é de que o profeta pratica autocomiseração: sente-se um coitadinho. 
            A figura de um cordeiro, indefeso, vem de kéves, que significa um animalzinho pronto para ser sacrificado, e não meramente ser morto em um matadouro; um animalzinho que, junto com outros, será imolado em sacrifício no templo. É curiosa a figura escolhida, pois que lembra também um animal inocente, tomado para ser morto pelos pecados de alguém. A figura argumenta a favor de Jeremias, apresentando-o como indefeso e inocente. O argumento do profeta, diante de Iavéh, é: “eu sou inocente e indefeso. Meus acusadores são maus”. É uma figura forte e triste usada pelo profeta para se defender e, ao mesmo tempo, denunciar seus algozes. Ele parece mesmo apelar para o fator emocional. Na verdade, nada impede de se pensar que ele estava a querer conscientizar-se do que ele queria que fosse verdade sobre si próprio. Esse fenômeno é comum entre pessoas que se sentem culpadas e tentam de todos os modos possíveis desvencilharem-se de suas culpas.
Parafraseando a primeira parte do verso: “Eu me via como um cordeiro, inocente e indefeso, dirigido ao templo para ser sacrificado”. Esta paráfrase parte do pressuposto de que Jeremias usa a figura ovina para argumentar a seu favor, diante de Iavéh, ou mesmo para se eximir de sua consciência de culpa. Mas qual seria a culpa do profeta?
            A continuação do verso 19 diz que Jeremias, antes de Iavéh o avisar, não sabia que seus inimigos queriam matá-lo. As palavras hebraicas hashvu mahashavoth significam intentar, pensar planos contra Jeremias. A Septuaginta usa palavras sugestivas para expressar a ideia do texto hebraico: “enlogisanto logismos”. O verbo está no aoristo indicativo médio, 3ª pessoa plural de logizomai, que implica num pensamento, numa atividade de raciocínio. O termo traz em si a ideia de ação racional. Em outras palavras, Jeremias quis dizer que seus opositores eram calculistas nos planos para matá-lo. A tradução-paráfrase continua:
 
Iavéh me fez tomar conhecimento das ações dos meus parentes contra mim, e eu quis mesmo ficar a par de tudo. Eu me via como um cordeiro, inocente e indefeso, levado ao local de seu sacrifício. E eu não sabia que planejavam friamente contra mim.
Vê-se claramente que o profeta procura reverter o quadro contra os seus opositores. É como se Jeremias dissesse: “Meus opositores são frios, calculistas, e se aproveitam de minha condição para me prejudicar diante de ti, Iavéh”. Em seguida, o profeta coloca palavras nos lábios dos seus perseguidores. Aquelas palavras podem ter sido proferidas pelos seus acusadores, mas até que ponto elas não refletem o estado emocional alterado do profeta?
            Segundo Jeremias, dizem os seus acusadores: “ht'y“xiv.n:”. Aqui se encontra o verbo tx;v' (shahath = tornar-se corrupto) no Hiphil Imperfeito, 1ª pessoa comum, plural coortativo. Como já foi dito, o Hiphil tem sentido de voz ativa causativa. Assim, a ação do verbo neste contexto é de causar o tornar-se corrupto. Como há também o detalhe do coortativo, há a implicação de uma ação deliberada. Os opositores estão resolutos em querer prejudicar o profeta. “Querem” mesmo vê-lo prejudicado. A tradução mais comum para este verbo, nesta passagem, tem sido: “destruamos”. Pode-se dizer que no verso há a implicação de um processo: Primeiro, corrupção e depois o corte (‘WN“t,r>k.nIw>). Aqui se apresenta o verbo “tr;k'” (cortar) no Qal imperfeito, 1ª pessoa comum plural com sufixo da 3ª pessoa masculino singular, com “nun” coortativo em sentido, mais uma forma do coortativo. A tradução: “Corrompemos a árvore... e logo, logo, e o destruiremos”. O verso, pois, pode ser completado como segue: 
Iavéh me fez tomar conhecimento das ações dos meus parentes contra mim, e eu quis mesmo ficar a par de tudo. Eu me vi como um cordeiro, inocente e indefeso, levado ao local de seu sacrifício. E eu não sabia que planejavam friamente contra mim. Dizem eles: nós já corrompemos a árvore com o seu fruto. Logo, logo, nós o cortaremos da terra dos viventes, e não haverá mais memória do seu nome.
Na última instância do verso, Jeremias apresenta seus algozes com o desejo de homicídio contra o profeta.
            Diante de tal situação, o profeta encontra-se desequilibrado em suas emoções. E nesta situação o seu temperamento colérico apresenta-se vingativo. O seu rancor vem juntar-se a traços que pintam uma personalidade enferma e depressiva, como ficará mais e mais patente à medida que as confissões forem analisadas.
            Cá está o texto (Jer. 11: 20):
וַיהוָה צְבָאוֹת שֹׁפֵט צֶדֶק בֹּחֵן כְּלָיוֹת וָלֵב אֶרְאֶה נִקְמָתְךָ מֵהֶם כִּי אֵלֶיךָ גִּלִּיתִי אֶת-רִיבִי: ס
 
O ponto culminante para o nosso objetivo neste verso está nas palavras: “אֶרְאֶה נִקְמָתְךָ" (’er’eh nikmathka). Primeiro, o verbo ra’ah (ver) no Qal imperfeito, 1ª pessoa comum, singular, tendo o significado de “vejo” ou “veja eu” (como trazem algumas traduções. Parece melhor, por conta da presença do “h” (He) coortativo, traduzir o verbo por “quero ver”, indicando assim, o desejo decisivo do profeta de que uma vingança caísse sobre os seus opositores. É aqui que se instaura uma problemática superlativamente séria. Qual o motivo da vingança sobre os habitantes de Anatote? O motivo era a satisfação do desejo de Jeremias ou o motivo era unicamente divino e o profeta apenas manifesta-se satisfeito por conta de que Iavéh o fará? O texto é de Jeremias. E isto labora contra o próprio profeta, pois que ele poderia escrever algo como se fosse a divindade a dizer o que ele diz. Assim, Jeremias, na verdade, é vingativo e faz Iavéh compactuar com o seu desejo de forma sutil. No texto, o profeta se refere a “נִקְמָתְךָ" (nikmathka), tua vingança, e aqui, vingança de Iavéh. E o profeta livra-se da imagem de vingativo. Mas é alguém que quer ver a vingança. Seja como for, o profeta introduz, neste ponto, uma questão torturante para muitas mentes: A divindade é vingativa? Qualquer pessoa que conheça a história de Israel e saiba que houve realmente um massacre em Anatote, concluirá que foi mesmo uma vingança. Mas a pergunta não cala: Iavéh satisfez o desejo do profeta ou a vingança era apenas da divindade? Essa imagem de Iavéh era uma imagem curtida por muitas gerações anteriores a Jeremias e, na verdade, era uma imagem que os povos antigos atribuíam aos seus deuses. Israel não ficou fora daquela tradição. Então Iavéh prometeu a vingança ou o profeta colocou palavras nos lábios da divindade? Eis o problema? Deus se vinga, manda matar homens pela mão de outros homens? A divindade apresentada por Jesus atenderia a um pedido de vingança, quando o próprio Jesus disse: “Se te baterem numa face, dá-lhe também a outra”? Se for dito que o motivo da vingança era apenas divino, então como explicar o texto como resposta à oração do profeta? Exegeticamente tem-se um problema: O texto é apenas uma confissão de Jeremias, que coloca palavras na boca de Iavéh, e isto seria apenas um momento poético-literário, ou o texto é palavra de Deus? Se Jeremias é, tipologicamente, alguém que aponta para o Cristo, em que sentido o desejo de vingança seria compatível com o Cristo?[8] Mas será dito, entretanto, que a interpretação tipológica não deve ser levada absolutamente às ultimas consequências. Vê-se nisso tudo que fazer exegese não é uma tarefa simples. Fazer perguntas ao texto em função daquilo que o mesmo possibilita não é algo tão fácil de ser enfrentado. O que é dito pelo texto apresenta possibilidade de reflexão que precisa ser resolvida. Na verdade, aqui se tem um texto no qual está um homem avariado existencialmente e que, em função disso, toma o seu desejo e o atribui à sua divindade.
            O texto em sua tradução apresenta-se:
E Iavéh me fez saber, e eu o quis saber. Então tu me fizeste perceber as suas ações. Eu me via como um cordeiro, inocente e indefeso, levado ao local de seu sacrifício. E eu não sabia que planejavam friamente contra mim. Dizem eles: nós já corrompemos a árvore com o seu fruto. Logo, logo, nós o cortaremos da terra dos viventes, e não haverá mais memória do seu nome.
Iavéh dos Exércitos, justo Juiz, que provas os rins e o coração, veja eu a tua vingança sobre eles; pois a ti descobri a minha causa.
A Septuaginta, no lugar de “וַיהוָה צְבָאוֹת” (Iavéh Tseva’oth), “Iavéh dos exércitos”, ou mesmo “Iavéh da guerra”, ou ainda “Iavéh do poderes”, apresenta apenas “ku,rie” (kírie), o vocativo de “ku,rioj” (senhor). Há a omissão da tradução de Tseva’oth. O que não deixa de ser curioso. O verso seguinte (11: 21) traz:
לָכֵן כֹּה-אָמַר יְהוָה עַל-אַנְשֵׁי עֲנָתוֹת הַמְבַקְשִׁים אֶת-נַפְשְׁךָ לֵאמֹר לֹא תִנָּבֵא בְּשֵׁם יְהוָה וְלֹא תָמוּת בְּיָדֵנוּ: ס
            A referência aos homens de Anatote (אַנְשֵׁי עֲנָתוֹת) é uma referência aos parentes do profeta. É uma referência aparentemente absoluta. Todos os homens daquela cidade seriam incorridos na punição de Iavéh, segundo o profeta.
Neste ponto (Jer. 11: 22), Iavéh apresenta a sua promessa de punição.[9]
לָכֵן כֹּה אָמַר יְהוָה צְבָאוֹת הִנְנִי פֹקֵד עֲלֵיהֶם הַבַּחוּרִים יָמֻתוּ בַחֶרֶב בְּנֵיהֶם וּבְנוֹתֵיהֶם יָמֻתוּ בָּרָעָב
A ideia em poked (פֹקֵד) é a de visitar a alguém não para, necessariamente, congratular-se. E neste caso, a ideia de castigo ou vingança que algumas traduções atribuem a este verbo, neste ponto, deve-se ao restante do verso que fala da morte dos jovens pela espada e pela fome. A tradução de uma palavra pode dar-se, assim, pelo seu contexto mais do que pelo seu sentido lexical.
            O último verso (Jer. 11: 23),
וּשְׁאֵרִית לֹא תִהְיֶה לָהֶם כִּי-אָבִיא רָעָה אֶל-אַנְשֵׁי עֲנָתוֹת שְׁנַת פְּקֻדָּתָם: ס
 
enfatiza mais ainda a punição, o castigo. Algumas traduções trazem o substantivo visitação e outras trazem punição ou vingança para traduzir pekudatham (פְּקֻדָּתָם). Substrato deste substantivo é o verbo pakad [11], já referido no verso anterior como Qal particípio masculino singular com o sentido de visitação. A Septuaginta neste passo traduz pekudatham (פְּקֻדָּתָם) por episképseos, que se traduz por visitação. Assim, a tradução desta palavra por punição ou castigo trata-se de adaptação do sentido do contexto a pekudatham. Literalmente a palavra não quer dizer punição, castigo ou vingança. Pode-se traduzir o verso como segue:
E não haverá deles resto nenhum, porque farei vir o mal sobre os homens de Anatote, no ano da sua visitação.
Apesar da subjetividade de Jeremias extremamente estampada no texto, há uma mensagem que se entende teológica. Deus está acima das condições e limitações humanas a tal ponto de usar um homem como Jeremias, avariado, com limitações emocionais consideráveis, para atender a seu propósito. Deus não procura homem perfeito para servi-lo, mas usa mesmo um que tem debilidades, como Jeremias ou semelhante.
Willians Moreira Damasceno

[1] ALMEIDA, João Ferreira, Bíblia revista e corrigida, Rio de Janeiro – Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
[2] Não é bom entrar aqui no mérito da questão: Se o ministro anglicano aqui referido era de fato ou não chamado por Deus. Esta questão é um tanto melindrosa e não é cabível emitir juízo de valor sobre a mesma no momento. Mesmo porque é sempre precipitado falar sobre esse assunto, pois um parecer sobre o mesmo seria resultado de um conhecimento superlativamente limitado.
[3] BHS [or WTT] - Biblia Hebraica Stuttgartensia (Hebrew Bible, Masoretic Text or Hebrew Old Testament), edited by K. Elliger and W. Rudolph of the Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, Fourth Corrected Edition. Copyright © 1966, 1977, 1983, 1990 by the Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society), Stuttgart. Used by permission (BibleWorks for Windows – Versão 7.0.018x. 14).
[4] Idem.
[5] Um vav consecutivo, usado para expressar o passado narrativo. Neste caso o “vav” converte as formas do imperfeito em formas do perfeito.
[6] o coortativo é usado para expressar desejo, intenção, autoencorajamento ou determinação do sujeito  de realizar certa ação. Um verbo auxiliar pode ser usado para esclarecer melhor o sentido do verbo, como, por ex. o verbo “querer”.
[7] BHS [or WTT] - Biblia Hebraica Stuttgartensia (Hebrew Bible, Masoretic Text or Hebrew Old Testament), edited by K. Elliger and W. Rudolph of the Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, Fourth Corrected Edition. Copyright © 1966, 1977, 1983, 1990 by the Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society), Stuttgart. Used by permission.
 
[8] Deve ser lembrado aqui que, quando soldados buscaram prender Jesus no Getsêmani e Pedro desembainhou um espada, Jesus mandou que a guardasse.
[9] ou esta palavra é colocada em sua boca
[10] Verbo dq;P' no Qal particípio masculino singular absoluto. A tradução pode ser: “Diz Yavéh dos Exércitos: Eis que eu os visitarei...”
[11] Comparecer, convocar, numerar, calcular, visitar, punir, nomear, cuidar de, tomar conta. DICIONÁRIO BÍBLICO STRONG, Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong, Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.